terça-feira, 25 de março de 2025

O último bicheiro da vila Silveira

O seu Laudelino Almeida partiu. Conhecido na vila Silveira, em Pelotas, por ser o esposo da Ana, pai do Marcos, Kátia, Carla e Fabiano. Bom vizinho, após sair do quartel trabalhou no Jockey Clube (creio até que foi jockey). Também atuou como frentista em posto de gasolina. Depois de aposentado, passou a ter uma outra atividade: era a última pessoa que conheço que ainda fazia jogo do bicho.

Para quem não sabe, jogo do bicho é uma loteria ainda ilegal, popular nas vilas e periferias, onde um apontador passa e recolhe os palpites de cada interessado, em centenas e milhares (se bem me lembro). Mas também por uma numeração que contempla (ou contemplava) a dezena, relacionada a diversos animais. Cada um dos 25 bichos tem quatro números correspondentes, e as opções de apostas e premiações variam conforme as combinações vencedoras. 

É um trabalho de "formiguinha" feito, normalmente, pela manhã. Minha primeira lembrança desta aposta é pelo início dos anos 60, quando meu pai nos trouxe do interior de Canguçu e comprou um ponto onde passou a existir o "Bar e Armazém Raulin" (que era seu sobrenome). O bicheiro, para fazer média, perguntou para mim, com cerca de 5 anos, em que bicho eu apostaria. Disse que no cachorro. E fizeram a "fezinha". Final da tarde, chegou todo contente e queria me dar o dinheiro. Recusei, eu queria era o cachorro que eu tinha ganho!

Embora proibido e criminalizado durante largo tempo, o jogo nunca deixou de existir. Até porque as autoridades faziam vistas grossas para os pontos de jogo ou seus ambulantes. Sua grande popularidade, fundamentada na imagem de confiança dos seus resultados, particularmente nos jargões "vale o escrito" e "ganhou, leva", e sua ampla difusão tornaram a repressão total impraticável, resultando em uma coexistência ambígua com os meios legais e institucionais. Tendo se corrompido em territórios periféricos das grandes cidades (como o Rio de Janeiro), onde sua estrutura foi associada ao crime organizado.

Na época de meu pai, outro vizinho também fazia jogo do bicho, o seu Bernardo, que tinha sido pedreiro, segurança... Eram velhos moradores da vila que entravam nas casas para que os fiéis clientes alimentassem a esperança de realizar um sonho. Com poucos recursos ou remediados, qualquer um tinha o direito de fazer a sua aposta. Uma dona de casa ou quem ia ou voltava do emprego compartilhava seu sonho da noite e apostava no bicho que o inspirava ou no número que imaginava ter visto...

Não são apenas pessoas que se despedem de nós. São histórias que, na maior parte das vezes, sequer foram contadas. Perde-se não apenas um vizinho, um amigo ou um parente, mas um estilo de vida em que o sentido das próprias vivências se dava pelas pessoas com as quais se convivia. Descobre-se que éramos felizes e não sabíamos. Pelo simples motivo de que a sua existência guardava um pouco do sentimento de pertencer a um tempo que desafiava a própria ausência… 


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