sábado, 30 de abril de 2011

O cheiro da terra


O cheiro da terra
Libertou-se com os primeiros
Pingos da chuva.

Aos poucos, em seu ritmo dolente,
Como quem não tem pressa alguma,
As árvores foram sendo lavadas
E recuperando as cores
Até então encobertas pela poeira.

A vontade era de sair andando,
Percorrer caminhos não marcados
Na grama molhada.

E deixar que meu rosto
Pudesse, finalmente,
Dizer que sente saudades
Do tempo em que dizer
Era apenas dizer
E chorar era misturar
As lágrimas com os
Pingos da chuva que
Rolam em direção ao chão.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

O espetáculo da realeza

O casamento real já aconteceu. Ao redor do Mundo, mais de dois milhões de pessoas assistiram a um autêntico espetáculo, com toda a pompa e circunstância. A Inglaterra redimiu a família real e, ao mesmo tempo, faturou nos direitos de transmissão, de imagem e no turismo de eventos.
Foi bonito. No meio de tantos problemas que vivemos, presenciamos o sonho de nove entre dez garotas: encontrar o seu príncipe encantado. Embora ele ainda tenha o cheiro de brejo, pois para tomar jeito teve que levar um "para te quieto", deixas as muitas "namoradas" e acertar os ponteiros com uma que tinha todas as características necessárias para um bom lance de marketing, mas que exigia exclusividade.
Depois que a rainha teve problemas com a princesa Diane, agora a mídia faz questão de mostrar as inúmeras diferenças entre umas e outras. Embora internacionalmente a ideia que se tem é que Diane tinha uma personalidade própria e forte, os desencontros do casamento a afastaram da realeza. Com esta ainda não se sabe, mas parece que o gene passa de pai para filho e ambos buscam uma "suplente" para emergências.
Se nada mais restar além do marketing e do comércio, ao menos que os súditos possam proclamar em alto e bom tom: "Deus salva a rainha!"

terça-feira, 26 de abril de 2011

Antes prevenir do que remediar

Políticos são especialistas em criar factóides. Não é diferente com o senhor governador. No último final de semana, visitando as áreas atingidas pelas cheias, cheio de preocupação, manifestou-se dizendo que as autoridades estaduais e municipais deveriam prestar mais atenção às áreas de risco.
Elementar, meu caro Watson. Até eu, com 52 anos de cidade, sei que permitir que famílias se instalem à beira dos córregos está se colocando em risco os poucos bens que possuem, assim como as próprias vidas.
Infelizmente, a mesma motivação política que leva à visita, também autoriza - ou ao menos não inibe - quando as pessoas, na maior parte das vezes, por absoluta falta de alternativa, vão morar em área de deslizamento ou de enchentes.
O exemplo clássico é Pelotas, situada a 7 metros acima do nível do mar (em média). O desaparecimento dos grandes canais, assim como a ocupação dos banhados, leva a uma situação preocupante, pois, embora todos os recursos existentes hoje, como é o caso das bombas para retirada de água, a natureza tem sido pródiga quando quer derramar autênticos dilúvios. Sem usar dos recursos naturais, resta o estrago e a perda de patrimônio.
Mapear as zonas de risco é uma medida elementar. Conscientizar a população que ali busca se instalar é mais difícil, mas não impossível. No entanto, mesmo com o direito de ir e vir, um policiamento forte também é necessário. Afinal, as cenas em que se deploram perdas com lágrimas nos olhos estão se tornando tão costumeiras que não dão mais espetáculo. Quem sabe possa valer o velho ditado: antes prevenir do que remediar.

domingo, 24 de abril de 2011

Não partas com a chuva


Cada pingo da chuva que cai,
cada parte da música que toca,
o vento que brinca em minha janela.

Já não me alegram mais.
São velhos tempos, velhos dias,
como me diz a música,
tempos em que ouvíamos juntos
a sinfonia dos pingos na janela,
as músicas especiais para dois,
o vento que teimava em brincar com teus cabelos.

E cada vez que um destes pequenos milagres acontecia,
ficavas distante,
silenciosamente dentro de ti.
Em meu desespero, procurava ir ao teu encontro.
Não havia tempo suficiente,
já estavas voltando,
sorrindo,
quebrando com a minha angústia.

Será que hoje, onde quer que estejas,
ouves a chuva, a música, o vento?
E se ouves, lembras de mim?

Porque, por detrás da chuva,
da música e do vento,
vejo teus olhos distantes,
implorando que eu vá ao teu encontro,
mesmo que nunca tenhas me permitido
chegar aonde te recolhias
em teus pensamentos.

Ei de te encontrar,
trazida pela chuva e pelo vento,
com a música que dizias ser de nós dois.
E não te deixarei mais partir,
nem para dentro de ti mesma.

sábado, 23 de abril de 2011

Bem antes da hora

As imagens dos primeiros dias de feriado chocam: filas e mais filas de carros em direção à serra ou ao litoral norte. Menos, mas do mesmo jeito, em direção ao centro do estado. E as tenebrosas estatísticas: o maior número de mortos por acidentes de trânsito em um meio feriado.
Infelizmente, as estradas continuam sendo praticamente as mesmas, mas um aumento assustador do número de veículos circulando. O que se previa, aconteceu: em determinados momentos, o trânsito trancou. Nem ir, nem vir.
Pior ainda, acrescentam-se aos aventureiros de sempre  - irresponsáveis, mesmo - pessoas despreparadas para a direção, mas que se acham. O desconhecimento e o pouco treinamento são compensados pela adrenalina de poder afundar um pouco mais o acelerador.
Resultado: o número de mortes, situação finita. Mas, também, um número que não recebe destaque nas estatísticas: os inúmeros casos de sequelas, dos pequenos aos grandes traumas; das pequenas às grandes marcas; do sentimento de pavor aos traumas permanentes.
Poderíamos viver sem isto. No entanto, o sentimento de que "nada acontece conosco" leva a imprudências, descuídos elementares, uma direção agressiva e não co-responsável. Ainda não se fecharam os números, mas já há muito o que lamentar: as estradas estão sendo marcadas por muitas cruzes, as vidas que foram ceifadas bem antes da hora.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Reinventar a própria vida


Semana Santa. Para os cristãos, é óbvio, tempo de refletir sobre a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus. Parada obrigatória para rever atitudes, atividades, até mesmo (porque não?) linhas de pensamento e de reflexão. Mas, também, para quem não é cristão, um tempo em que se respeita mais o silêncio, a introspecção, a busca de espaços de sanidade mental, um tempo de reinvenção.
A palavra está na moda, significando a capacidade de se desinstalar das nossas acomodações e lançar, em perspectiva, desafios e metas. Quem tem esta visão olha as rotinas do dia a dia de outra forma: não é apenas fazer comida, limpar a casa, preparar uma aula, fazer compras, ir para o trabalho. É fazer a comida e limpar a casa para alguém; preparar a aula para uma turma de alunos; fazer compra com uma pretensão; ir ao trabalho como um contínuo e novo desafio.
Fácil? Claro que não. Vão me dizer que, em muitos casos, fazer comida é apenas uma necessidade física; limpar a casa, um hábito de higiene; preparar a aula, uma prática profissional; fazer compras, um costume consumista; ir ao trabalho, a necessidade de manter a subsistência.
Que pena, realmente, quem pensa assim, vai sofrer mais e ter mais dificuldade de viver a sua Páscoa. No significado da morte de Jesus, estão as nossas muitas “mortes”, que acontecem nas perdas de pessoas que amamos, ou na incapacidade de dar real sentido aos diversos atos do existir.
Pois a Páscoa retempera estes elementos e oferece uma nova chance: deixar que as perdas se curem, embora deixando cicatrizes com suas marcas na nossa lembrança e no nosso agir, mas olhando no horizonte o dia da Ressurreição. Jesus chegou à ressurreição porque teve coragem de assumir a sua vida. Sabia que o Pai esperava dele mais do que viver o quotidiano, a vidinha simples da Palestina: precisava ser provocador e indicar caminhos, especialmente para aqueles que, hoje, têm uma chance – e precisam - reinventar a própria vida.

domingo, 17 de abril de 2011

Fugindo das ruas


Não há sol.
As sombras, junto com a neblina,
dão aparência confusa,
às formas
que teimam em se deslocar nas ruas.

Uma árvore dormita
no silêncio daqueles
que se encolhem,
aconchegam-se para fugir
ao frio e aos pingos da manhã,
rebeldes a se envolverem
com cabelos, rostos, roupas.

Os vidros embaçados
tornam o mundo
ainda mais distante.

O frio consegue me atingir.
Quero cerrar os olhos,
mas, mesmo assim,
há neblina
que tolda o meu ser,
Entristece-me.
Não quero voltar às ruas.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Armas de fogo e segurança

Posso até estar enganado, mas creio que somente uma vez na minha vida tive uma arma em minhas mãos. Na verdade, era uma arma de competição, nos idos de Seminário, para acertar alvos parados. A minha bala passou a alguns metros. Se dependesse de pontaria para sobreviver, literalmente, estaria liquidado.
Mas a idéia que se estabelece, agora, é de um plebiscito para o desarmamento da população. Algumas idéias até que são interessantes: o ladrão é melhor preparado, não tem nada a perder. A arma, normalmente, está escondida, em lugar de difícil acesso, dando vantagem ao assaltante e colocando em risco quem se atrever a buscar uma reação.
No entanto, o que impressiona é que esta discussão mascara e lança uma nuvem de fumaça sobre a realidade: o estado se mostra incompetente para impedir que as armas entrem no país, que circulem em mãos dos bandidos e que sejam usadas nas ruas.
O que, supostamente, seria um benefício para o cidadão, esconde algo pior: a falência do estado em garantir não apenas a segurança, mas a sensação de segurança, nas ruas, nos lugares públicos e nas casas.
Recentemente, amigos vindos de alguns países mais desenvolvidos, comentavam que um dos primeiros sinais de que as economias andam mal é que, andando pelas ruas, se tem a idéia de estar no Brasil, com pedintes, moradores de ruas e assaltos na tão sonhada e sempre admirada Europa.
Creio que o plebiscito vai nascer morto. Mas não podemos deixar de exigir que o poder público - em todas as instâncias - cumpra com o seu papel, para o qual é pago e bem pago. A União faz o discurso que deveria se concretizar no município, o que não acontece. O Estado anda de pires na mão buscando desemperrar uma máquina já ultrapassada. O município começa a colocar placas de velocidade onde vai postar os radares. No frigir dos ovos, sobram as multas, que nós acabamos pagando, sem ver que, com armas ou sem armas, possamos deixar nossos filhos fazer as coisas mais elementares: visitar seus amigos, sair para a balada de final de semana ou apenas andar pelas ruas sem ter que grudar ao próprio corpo qualquer coisa de valor que transporte.

domingo, 10 de abril de 2011

Flagrei-te


Flagrei-te com o olhar
perdido lá onde o mar
completa a moldura do céu.

Não pude decifrar
o que os traços de teu rosto
diziam.

Havia dor?
Teu rosto se contraia.
Havia saudade?
Uma serenidade encantada.
Havia uma doce lembrança?
Todo o teu ser transpirava
a sede de um encontro.

Só pude ser solidário
com teu silêncio.

E também perdi meu olhar
imaginando
que o mar e o céu
haviam tomado teu corpo:
fazias parte de um todo,
mar, céu e um rosto silencioso.

sábado, 9 de abril de 2011

Não tenho tempo


Eu já não tenho o tempo que imaginava.
Não tenho o tempo do sol,
Falta-me o tempo do vento,
Desapareceu o tempo da presença.

E como faz falta o tempo da presença!

O tempo em que já não se pensa no tempo,
Porque é o momento em que se partilha
Da eternidade.
Dividir o tempo é como se o Divino
Brincasse com o efeito multiplicador:
Sempre falta tempo.

É quando se mede o tempo por carícias;
Não são estabelecidos padrões para os beijos
E deixar olhar no olhar é, apenas,
Viver o tempo presente.

Eu já não tenho o tempo que imaginava.

Mas chega o tempo da eternidade.
Muito tempo. Pouco tempo.
Com que medida se mede este tempo?

sexta-feira, 8 de abril de 2011

O massacre dos sonhos

O massacre acontecido em uma escola pública na última quinta-feira, no Rio de Janeiro, expõe uma das muitas mazelas do ensino: o nosso desconhecimento da matéria prima com a qual estamos lidando. Aquele rapaz que matou e provocou a própria morte demonstrava sinais que a sociedade - incluíndo aí a comunidade educacional - preferiu desconhecer.
Tudo o que se fala, hoje, a respeito de processos vividos na escola causa uma certa surpresa e um constrangimento ainda maior: queremos que os alunos "evoluam" sem que rodem nas quatro séries iniciais; na maior parte das escolas, não há presença de supervisores em momentos de recreio, causando, por um lado, o tão malfadado bullyng, e de outro a presença descarada de tranficantes do lado de fora das grades e dos muros. E mais, o grande volume de alunos em sala de aula impede um tratamento personalizado e a identificação precoce de problemas.
Mas, infelizmente, da forma como são preparados nossos professores, também dificilimente detectariam estes problemas, porque já vivem os seus e fazem do espaço em sala de aula apenas uma jornada a ser cumprida.
Falo da escola, porque estou neste meio, mas também poderia olhar o lado da família, vizinhança e do trabalho: familiares o achavam estranho, a vizinhança o afastara e perdera o emprego por suas vestes, atitudes e posições religiosas.
Não adianta, agora, querer erguer cercas e um policiamento ostensivo. Nos Estados Unidos, onde a segurança é quase doentia, isto acontece regularmente. Precisamos de novas políticas educacionais, focadas no aluno, onde se trabalhe todos os aspectos de uma formação integral. Se não, este foi o primeiro, mas pode não ser o último dos massacres sofridos por aqueles que morreram sem saber porquê: tiveram suas vidas abreviadas sem a menor chance de realizar os sonhos que acalentavam.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Viver para ser feliz

Missa de 7º dia do Pai. Também de 7º dia de uma criança. O paralelo: nascemos com uma única certeza: um dia haveremos de morrer. E o que faz a diferença: procurar viver bem, procurar a felicidade. Engraçado é que esta tal felicidade tem algumas manhas interessantes. Ela não se deixa apanhar se não brigarmos para que outros sejam felizes.
Naquela noite, envolvido pela aura dos amigos que nem sempre podem estar presentes no dia a dia, pude sentir que incontáveis pessoas lutavam pela nossa felicidade, sem pedir nada, oferecendo seus braços, seus abraços, seus sorrisos, algumas palavras de consolo.
Vindos de todos os cantos, fizeram-se presença. E mesmo que não dissessem nada, teriam o significado da eterna luta por ser feliz.
Ao mesmo tempo, também davam sentido a continuar a viver. A imagem das amarras que a vida nos impõe e quando elas são quebradas - pela morte - faz sentido se olharmos como impulsionadora na direção de um futuro melhor.
Neste momento, olhar para o mar é pensar em algo que se move como numa tempestada. Tudo parece fora do lugar. Tudo parece estranho. Possivelmente, o tempo seja o senhor da razão, acalme o mar e mostre os caminhos. Mesmo livres, ainda precisamos de um norte, que buscamos na nossa história, em tudo aquilo que a vida nos deixou.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Adeus, padre Roberto

Na terça (05), foi o dia de nos despedirmos do padre Roberto. Durante 23 anos, esteve no comando da paróquia de Santa Teresinha, no bairro do mesmo nome, em Pelotas (embora as divergências se o nome deve ser grafado com s ou com z). Durante a Missa de despedida, passou um filminho dos muitos momentos vividos, ora em confrontos com o padre, ora em conversas francas e divertidas.
A miséria dos primeiros anos e o preconceito pelo fato de ser negro, não o abalaram. Tornou-se um homem firme em seus propósitos, disposto a fazer o que lhe era possível para educar crianças de periferia, naquilo que, hoje, é chamado de ensino profissionalizante. Criou a Escola Paroquial Santa Teresinha, que, ao longo da história, sempre teve outro nome: Escola do Padre Roberto.
Seu espírito empreendedor também o levou a querer uma igreja apropriada e, saindo de um prédio reformado sobre um estábulo, passou para a igreja que é hoje, mesmo lembrando dos primeiros anos  de seu funcionamento apenas com o esqueleto montado. A primeira Missa, num Natal, foi com morros de terra no seu interior e a falta de janelas e telhado.
Criticado por muitos por ter ficado tanto tempo numa paróquia, fico me questionando sobre as pessoas que não são capazes de fazer uma análise do contexto histórico vivido. Naquele tempo - e ele não está tão distante assim - o padre era quase parte da família, acompanhando e aconselhando pais e filhos, num processo que demandava uma presença constante.
Quando deixei o Seminário, fiz questão de ir dizer a ele. Correu uma lágrima em seus olhos e eu pensei que tinha feito bobagem. Mas ele me disse que tinha sido o primeiro seminarista a sair que viera lhe dizer pessoalmente.
Creio que o pai foi antes pra receber o padre Roberto. Embora não fossem amigos, pois o convívio já não o permitia, tinham respeito um pelo outro. E ainda me lembro da procissão de homens que hoje estão todos na casa do Pai Eterno, levando a imagem de Santa Teresinha para a primeira celebração. O pai era um deles.
Estes últimos dias têm sido de muitas lembranças carinhosas. Que descansem em paz. Mas que também nos marquem com seus exemplos. Pois foram homens com presença marcante em nossas vidas e deixam o perfume de vidas bem vividas, testemunhos que não se apagarão enquanto vivermos.

domingo, 3 de abril de 2011

Estrela perdida


Uma estrela se perdeu.

Esqueceu-se de que era
Natal.

E no Natal, todas as estrelas
levam a Belém.

Mas, uma estrela solitária
marca o céu
como uma imagem de dor.

Não há sentido
em, sendo estrela,
não se ir a Belém,
no Natal.

Mas, se for uma estrela só,
o Filho do Homem
a resgatará.

sábado, 2 de abril de 2011

Dúvidas do revelar


Há momentos em que as palavras me faltam.
Tenho o sentimento,
tenho um arranjo mental,
que não se fundem na concretude
de acionar meus dedos,
deixar fluir o sentimento bloqueado.

Sinto-me incapaz de pensar uma imagem
- e todas elas estão lá.
De encontrar uma palavra -
e sei que elas também estão lá.
De brincar com um sentido.

É o sentimento de saber que
ao alinhar imagem, palavra, sentido,
estou revelando o que me é permitido.

Rebelo-me com a divindade
que só me permite alcançar o que deseja.
Mas, quando alcanço,
a sombra que se projeta na parede,
embriaga meus sentimentos.
E compensa cada instante da minha dúvida.

É neste momento
que a natureza parece sorrir,
de um modo estranho,
como se brincasse comigo.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Boa noite, meu filho

Meu pai partiu na quarta-feira - 30 de março. Durante a cerimônia de despedida, disse que tínhamos tido o privilégio de conviver com um homem que, durante 84 anos, nos deu exemplo natural de solidariedade, cumplicidade e bom humor. Depois, durante quase um ano, o Pai Eterno nos testou. Queria saber se, depois de tanto termos sido beneficiados, seríamos capazes de sermos bons filhos, acompanhando todo o processo de tratamento de um câncer e o definhamento que se seguiu.
Seu Manoel não morreu. Ele apagou. Foi perdendo a energia física, sem perder a energia espiritual. Mesmo quando o cuidávamos, o olhar era de quem pedia o possível, quando, em muitas ocasiões, tínhamos que buscar forças extras - de Deus, da solidariedade, da oração dos amigos - para que nossos corpos correspondessem à sua expectativa.
Numa daquelas noites de plantão, minha sobrinha disse que ele estendeu a mão pedindo ajuda. Mas ela já estava cansada das inúmeras vezes que o tinha levantado e estendeu a mão em retorno, como quem diz: por favor, eu também preciso de ajuda. Ele segurou a mão e sorriu.
Na despedida, colocamos em seu caixão seu boné e um relógio de toda a vida. O boné era sua marca, pois o pedia em cada ocasião que deixava a casa. O relógio balançava em seu braço já muito magro, depois de cada banho. O boné era um símbolo de que ele era homem do Mundo e que precisava sair de casa para conviver. O relógio marcava o tempo em que estava vivendo e aquele que o aguardava na eternidade.
A força da nossa família veio dos amigos que nunca nos desampararam. Na despedida, um homem que partia com 85 anos não era apenas alguém que definha e se vai. Era, angustiadamente, alguém que passava a fazer falta: do segurar a mão na madrugada, das inúmeras nebulizações ao longo do dia, ou apenas do beijo, à noite, com um "boa noite, pai". A retribuição, já baixinha, era a resposta: "boa noite, meu filho".