domingo, 30 de maio de 2021

Até tu, Francisco!

Quem já cuidou de um idoso sabe que uma das cenas mais ternas é quando dormita na patrona. Não é preciso horário especial, apenas o instante em que a sonolência bate e precisa tirar uma soneca. O corpo relaxa e, muitas vezes, a própria inatividade faz com que se encolha com frio nos pés e nas mãos, especialmente. Momento de pegar a mantinha que fica guardada e fazer um gesto de carinho. Às vezes, um semi-despertar meio assustado e, constatando que apenas teve seu corpo protegido, esboçar um sorriso, entre a realidade do presente e as lembranças que povoam seus sonhos.

Minha experiência em acompanhar meus pais até o seu fim – o pai com 85 e a mãe com 93 anos – fazem-me olhar de forma diferente para o papa Francisco, quando, cada vez mais, se mostra cansado. Em muitas cerimônias ou celebrações, ao sentar, cerra seus olhos, em atitude que pode demonstrar concentração, mas também a fadiga pela jornada de trabalho e envolvimento com situações das quais um idoso, de 84 anos e apenas parte do pulmão, deveria ser poupado. Mas não é o caso, e se alguém disser que ele dormiu, é capaz de concordar, sorrir e ainda dar uma bênção.

Figura pública, tem problemas com as diversas alas da sua organização, especialmente em países como a Alemanha, que foi taxada pela imprensa de “mais liberal”, porque abençoou uniões homossexuais. Uma discussão que o papa tem encaminhado com desvelo e carinho, mas que precisa ser colocada dentro da ótica do Catecismo da Igreja e das instruções dadas por seus dirigentes. Com a preocupação de agir menos tentando mostrar Deus aos homens (Teologia) e mais os homens a Deus (a Pastoral), o lugar onde se cuida de cada um, o respeita, sem estigmatizar opções…

Quem se debruça sobre os documentos que publicou percebe que, desde a “Alegria do Evangelho”, há um fio condutor com orientações focadas na atitude pastoral, sem perder a perspectiva do conhecimento teológico. Oito anos depois, ainda corre atrás de uma “igreja em saída”, fazendo com que prelados, padres e religiosos gastem mais sola de sapato andando por ruas e becos do que atrás de produções intelectuais e sacristias. Quem conhece a “lógica” como a Igreja Católica funciona sabe que serão necessários alguns “franciscos” para que as mudanças sonhadas se concretizem.

Recentemente, brincou com a cachaça, o brasileiro e a oração. Bastou para receber pedradas de diversos comentaristas de plantão. Convenientemente, esquecem que Francisco não é um homem preocupado com sua imagem pública. Seu olhar ultrapassa os muros do Vaticano e chega àqueles que ouvem suas palavras e ainda acalentam a esperança de superar as guerras, a fome, o frio e as calamidades. O que alguns consideram destempero fica na conta dos tempos em que andava pelas vielas de sua Buenos Aires e quando alguém aprontava alguma taxavam: "brasileños, brasileños"!

Me imagino puxando uma manta para encobrir seus pés e suas mãos: “dorme, Francisco, descansa. Muitas ovelhas te seguem. De outros rebanhos, olham com ternura o desvelo com que tratas cada uma. A perseguição de hoje é o jeito que os homens encontraram de tentar te mudar. Enquadrar como homem público comportado e os mais próximos sabendo que é impossível. Mesmo sendo argentino, para nós, também és o ‘Francisco de Deus’. Os que te amam te abraçam com a ‘cachaça’ das festas e a oração. Melhor que ninguém, sabes que é o sussurro com que a alma encanta a Deus!”

terça-feira, 25 de maio de 2021

A perda do afeto e da política

Corria a década de 80. Depois de um início difícil na administração de Pelotas, em 1983, sob o comando do prefeito Bernardo de Souza, quando ficamos com os salários atrasados por sete meses, as águas se acalmaram. No ano seguinte, apareceu a chance de fazer um curso de Marketing Político, em São Paulo, com o jornalista e escritor Gaudêncio Torquato do Rego. Oportunidade imperdível para quem fazia política com inocência e precisava de instrumental teórico para clarear os rumos do que poderia ser um sonho, mas também se transformar num pesadelo…

De mala e cuia, junto com o estudante de jornalismo Eduardo Mielke, seguimos para a formação de uma semana, com aulas noturnas. O dia era reservado para explorar a cidade. Nesta ocasião, graças ao fato do Eduardo ter uma tia trabalhando no arcebispado de São Paulo, tomamos um café da tarde e encontramos dom Paulo Evaristo Arns, uma das principais figuras da Igreja Católica de então e destaque na defesa dos direitos humanos, que apareceu e não se negou em conversar.

O tempo era de muita agitação. Vivia-se o fim da ditadura militar. Governadores eram nomeados, assim como prefeitos das capitais. Naquele ano, o estado de São Paulo estava com o MDB (oposição de então) e indicaria o administrador da capital. A disputa foi entre Orestes Quércia e Mário Covas. Nas ruas, havia uma grande rivalidade eleitoral. Visitamos o comitê que atraia nossa atenção pelas propostas mais ousadas: Mário Covas, na esperança de também encontrá-lo.

Isto não aconteceu. Conversamos com os organizadores da campanha e saímos com farto material. Não viramos “paulistuchos”, porém, durante longo tempo, tínhamos prospectos e adesivos em pastas e malas. O que se aprendia com aulas e palestras à noite foi reforçado, na prática, pelo testemunho de profissionais que sentiam a preocupação de entender quais os acertos e erros de quem, nas eleições de 82, trabalhou mais por sensibilidade do que por estratégias de marketing.

Mario foi referência como político de centro-esquerda - deputado federal, senador, governador e candidato à presidência. Diagnosticado com câncer, começou a aparecer com Bruno Covas, que morou com o avô e passou a frequentar a cena pública. Recentemente, os meios de comunicação destacaram a presença de Tomás, filho de Bruno, então prefeito de São Paulo, que esteve junto nas ruas, palanques e quartos de internação, quando seu pai se despedia, também vítima de câncer.

A cumplicidade se consolidou por laços de família, como quando Bruno sofreu para acompanhar o filho numa final de futebol. Cansado, fragilizado pelas medicações, sabia que o fim se aproximava, mas queria ser o companheiro e amigo que encontrou no avô e ter a mesma afinidade com o filho. Uma perda que deixa legado no mundo das ideias e de comportamentos. Não é apenas questão de discutir matizes ideológicas ou demonizar a política e a democracia. De geração em geração, aprenderam que a vida passa por estas instâncias e, sem elas, tudo se torna bem mais difícil..

domingo, 23 de maio de 2021

O abraço que não deixa morrer a esperança

Não sei se é conto, lenda ou história mesmo. Nos últimos tempos, são tantos os textos com conteúdos semelhantes que pensei em passar adiante. Porém, o “a mais” de uma amiga fez com que prestasse atenção. “Quando soldados americanos chegaram em um campo de concentração na Europa, no fim da Segunda Guerra, ficaram chocados com as cenas. Um deles, ao entrar na ala das crianças, chamou os colegas e decidiram dar alimentos para todos. Os pequenos estavam morrendo de fome. Formou-se então uma longa fila para receber a tão esperada refeição”.

Continua a narrativa: “de repente, um dos soldados olhou para o final da fila e lá estava um menino de mãos unidas, em gratidão ao Eterno, e lágrimas nos olhos, quietinho. O soldado foi até ele, comovido, ajoelhou-se e lhe deu um longo abraço. Algo inusitado aconteceu: esqueléticas, várias crianças saíram da fila da comida e formaram uma outra para ganhar um abraço”. Fiquei lembrando das cenas que já se viu em filmes, mas, especialmente, fotografias que mostravam adultos resgatados destas ante salas do Inferno, transformados em zumbis ambulantes e desfigurados.

Das crianças que os aliados resgataram dos lugares onde eram escravas, serviam de cobaias para experimentos ou aguardavam a morte, muitas sobrevivem e guardam nos braços as marcas da maldade humana com número de identificação gravado a ferro e fogo na própria carne. Impossível de retirar e se transformaram em pesadelo que levam para o resto de suas vidas. Olham, sem entender, para governantes que brincam com a vida de seus povos, em confrontos onde o que está em jogo é o comércio internacional de armas, a economia e a disputa por poder.

Quando bem contada, a História é uma mestra que ajuda a entender o presente, com os erros e acertos do passado. Em tempos de coronavírus, as questões levantadas pela pequena história têm todo o sentido. As guerras, não importando o seu tamanho e abrangência, são momentos de sofrimentos e privações, quando a morte marca as famílias e lhes subtrai, especialmente, os mais jovens: filhos, pais, maridos, amantes, amigos… Assim, também, a pandemia que se enfrenta é capaz de questionar quais são as necessidades que se estabelecem como prioritárias, hoje.

Básico dos básicos, a própria saúde, seguida da necessidade de, aqui no sul, ações que minimizem a fome e o frio. Impossível não se apelar à solidariedade, mostrando que são gestos positivos que energizam a própria vitalidade. A motivação é sua, a causa é de todos nós. Preste atenção ao seu final: “precisamos alimentar nossas almas. Precisamos do Amor do Eterno. Força para prosseguir. Gratidão e Amor são essências que se deve compartilhar para seguir em frente. Permita o abraço do Criador em sua vida. Talvez este abraço seja a prioridade de que mais se necessita!”.

Estou carente de um abraço, do olhar carinhoso convidando para a proximidade de dois corpos. Verdade que me sinto envolvido pela oração e forças positivas de amigos e familiares… Mas, a fila do soldado ajoelhado à espera de cada uma das crianças é provocação. Dificilmente se tem como não pensar: “eu também entraria nesta fila”. A procissão da esperança, quando se encontra um ombro amigo e percebe que nem tudo está perdido. Alguém que indica uma nova perspectiva. Quando tudo escurece, ainda se pode voltar para o Sol e as sombras haverão de ficar para trás!

terça-feira, 18 de maio de 2021

Democracia: oportunidades e oportunistas

A partir deste início de semana, as atenções se voltam para o Chile onde, sábado e domingo, a população elegeu os integrantes de uma assembleia que fará a sua nova constituição. Depois de grandes - e nem tão pacíficas - mobilizações populares, o país que vendia a imagem de que havia alcançado elevados níveis de bem-estar social reconheceu que, nos últimos anos, houve um aumento na desigualdade entre as classes, como sempre, em detrimento dos mais pobres. A mudança pretende enterrar de vez a herança política da ditadura do general Augusto Pinochet.

Com o descrédito dos velhos partidos e a fragmentação política (semelhanças com o Brasil, não são mera coincidência), inicia jornada de um ano para apresentar em plebiscito uma nova carta constitucional. Classificado pelo jornal El País como um salto para um futuro desconhecido”, inova ao ter representação quase paritária: 155 integrantes, sendo 50% de mulheres, 50% de homens e representação de povos originários, como mapuches e aimarás, com 17 parlamentares.

O que acontece no Chile tende a se alastrar pelos demais países da América Latina, que vivem problemas semelhantes. O Brasil, por exemplo, teve sua “constituição cidadã” apresentada em 1988. Infelizmente, o que se viu, depois de três décadas, é a existência de itens ainda não regulamentados e, em alguns casos, deformações que a colocaram a serviço de grupos econômicos e de quem “interpreta” seu texto, com altos ganhos, o que a transformou em autêntico “frankenstein”.

O quadro de pobreza e miséria a que chegou o país que costeia o Pacífico levou multidões às ruas, quando se deram conta de que os propalados avanços marginalizaram populações periféricas, indígenas, o sistema previdenciário faliu e a perspectiva de atendimento social tornou-se nula. O Chile serviu como modelo de desenvolvimento econômico no continente e a indignação patriótica da sua gente clamou por mudanças que, mais cedo ou mais tarde, também vão chegar por aqui…

No Brasil, não são apenas os desmandos do governo que paralisam a máquina pública, comprovado pelos cortes no orçamento da União e resulta em menos obras e serviços, ainda este ano, mas de uma sucessão de “erros”. O problema não começou com o coronavírus, mas se acentuou com ele. E tem tudo para ficar pior. A população mais pobre já sentiu que a água chegou ao nariz, para a classe média – que deflagra mobilizaçõesjá está no peito; indicativo de que o perigo está próximo

Tempos de crise são ninhos para oportunistas, como os desvios de recursosque já são poucos – na saúde. Também oportunidade de repensar a educação, emprego, moradia e segurança... itens básicos para quem nem sabe que é regido por uma constituição, mas ela lhe deve a proteção a fim de não perder a dignidade. Não é preciso temer a mudança. O povo do Chile mostrou que pode ser feita pela resistência pacífica e, se não der certo , é começar de novo... A causa é justa e a população já sofreu bastante e merece reencontrar os verdadeiros caminhos da democracia.


domingo, 16 de maio de 2021

A manta, o blusão de lã e o frio da miséria…

A costureira que desmancha blusões, faz mantas e doa para moradores de rua, contou sua história num programa da rádio Gaúcha. Recebe doações, mas também organizou “ação entre amigos”, rifando lençol para arrecadar recursos, ir aos brechós, comprar peças em boas condições, assim como novelos de lã. Ana Cláudia de Souza continua a obra iniciada pela avó e contou que “ver a carinha deles felizes porque vão se esquentar, não tem preço”. O repórter Tiago Boff detalhou: “ponto a ponto, tecidos são unidos por agulhas de tricô, trabalho manual repassado a gerações”.

Gostei da história. Na segunda-feira, por acidente (meu número apareceu no visor do celular e acabou me ligando), conversei durante bom tempo com o Firmino, que fez parte do Grupo de Jovens em Busca de Um Novo Sol (GEBUNS). Entre outras coisas, contei que pretendia fazer minha próxima crônica falando a respeito dos blusões de lã tricotados pelas mães e que nos salvaram de muitos invernos, sendo praticamente “uniformes”, naqueles dias que sempre pareciam ser muito frios. Em pontos diferentes da cidade, as histórias tinham sempre algo em comum...

No último domingo, quando falei a respeito do “ser mais chato que Deus já criou” (as mães), recebi o comentário de um amigo. Retribui dizendo que a mãe sempre falava dele com carinho. Cessadas as mensagens, vasculhei as memórias e lembrei da ocasião em que começou a trabalhar na paróquia e recebeu um outro padre vindo de Angola. Na entrada do Inverno, também rigoroso e com o que consideravam não ser roupas adequadas, dona França e a Regina Martins se organizaram para tricotar blusões de lã que eram autênticas cobertas para vencer as intempéries.

Mas o baú das lembranças tinha mais coisas para serem remexidas “pratrasmente” (como diria o filósofo Odorico Paraguaçu). A minha infância foi passada utilizando blusões tricotados pela dona França ou pela Loci, a mana mais velha. Utilizavam regra parecida: início de Inverno, “tirar” nossas medidas e, não tendo como comprar novo, tomar a decisão entre fazer barra, que aumentasse os braços e a zona da cintura, ou desmanchar todo e reutilizar a lã. Naquela idade, ainda não sabíamos o que era “moda” e importava que se tivesse algo para vestir e enfrentar os rigores do Inverno.

Os novelos de lã precisavam render e, muitas vezes, o ponto era mais aberto, significando que, ao se utilizar apenas a peça sobre a camisa, sentia-se frio. Sempre fiquei com a impressão de que o problema não era da Natureza, com suas mudanças climáticas, mas a pobreza que não permitia a aquisição de mais novelos e fazer uma peça mais densa. Maior dificuldade ainda quando se encontravam crianças que o material tinha “esgarçado” - o desgaste natural pelo uso e, em muitas ocasiões, o que salvava era dar um nó nos pontos rompidos e passar para dentro da roupa…

Ana é vendedora de rua e usa o tempo livre para minorar o sofrimento de desconhecidos, praticando o desapego, tão fundamental nos dias que correm. Quem experimentou o frio sabe que este é um bom momento para saldar a dívida social, com a prática da solidariedade. É preciso consciência e ações efetivas das autoridades, pois o degrau abaixo da pobreza se chama miséria: um ser humano que se encolhe junto à parede ou no vão de uma porta de loja e dorme, sobressaltado ou anestesiado pelo álcool, com lágrima ressecada no rosto e, mais triste, a angústia de não ter um jeito de compartilha com alguém...