terça-feira, 28 de maio de 2019

A inocência de uma criança

Recentemente, dois tipos de compartilhamento me chamaram a atenção pelas redes sociais: um deles de um grupo de crianças que, não tendo um celular para fazer uma selfie, utilizavam o chinelo de dedo como se equipamento fotográfico fosse... e outra bem humorada da criança que liga para a avó pedindo socorro já que a mãe não sai da Internet e ela quer atenção e precisa se alimentar.
Num outro plano, acompanhei postagens do menino desafiado por um de seus seguidores a atirar água num mendigo que ficava na sua calçada. Depois de conversar com a mãe, resolveram fazer exatamente o contrário: foram até ele para alcançar comida e minorar seu sofrimento. A reação da pessoa em situação de miséria foi de emoção que parece não ter surpreendido a mãe, mas surpreendeu o filho...
A reação da criança, em todas as idades, é de espontaneidade, mesmo que, num primeiro momento, possa parecer incomodada por estar numa situação inusitada. Mas, seguindo o exemplo de alguém que a oriente, é capaz de entender, aceitar e se tornar protagonista de ações que fazem o diferencial no tratamento de outras pessoas, porque ainda não está eivada do preconceito, seja da diferença de classe, sexo ou de cor.
Seguidamente este tema vem à discussão quando se trata de educação. Um problema sério para a geração que está sendo criada por babás eletrônicas de todas as formas - televisão, computador, tablets, smarthphones... O meu pai, seu Manoel, em muitos momentos, levava as crianças para ambientes abertos - pracinhas, parques, ou apenas para a rua - onde pudessem, segundo ele "escramuçar", "soltar os burros".
Em algum lugar, a energia precisa ser gasta. A criança passando a maior parte do tempo na companhia de outros, ao longo do dia, quando está com os pais quer tirar os atrasos. Só que os pais, por já estarem um bagaço, desejam apenas um tempo para descansar e reorganizar as próprias vidas. Gastando o mínimo necessário com os filhos, justificando-se de que passaram o dia lutando pela sobrevivência...
Criança não vem com manual de instrução e seu desenvolvimento afetivo e psicológico depende do que bebe de pessoas próximas... especialmente os pais. A inocência da crianças está sendo perdida em tenra idade. e os educadores se assustam com transtornos cada vez mais cedo.  Diante de tantos desafios, uma suposta independência justifica a omissão e a ausência, que não pode ser compensada por nenhum instrumento de comunicação, nem pelo divã do psicólogo. Tristemente, são crianças que, desde cedo, se tornaram órfãs de pais vivos...

terça-feira, 21 de maio de 2019

Passageiros prestes a partir...

Pedro viaja pelo Mundo. Faz suas andanças pelos cinco continentes. Nos programas que grava para a televisão a cabo há cenas por ruas, estradas, monumentos, encontrando gente, conhecendo a arquitetura, costumes, hábitos alimentares, a alma de um povo que, em qualquer lugar, é apenas gente, buscando o direito de existir, usufruir da vida em grupo e enfrentar desafios do dia a dia.
Tenho santa inveja de quem se aventura, nem que seja em excursões. Ao voltarmos das férias, na Universidade, professores contavam de andanças por praias do Brasil, Europa, Estados Unidos... Ao perguntarem por onde andara, um deles respondia: em Morro Redondo! Onde tinha um sítio - recanto do coração - para onde se recolhia fazendo do seu pequeno mundo um lugar privilegiado para suas "andanças".
Mas é quando se abre nem que seja um pouco da possibilidade de que se conheça mais da cultura de um outro povo que nos enriquecemos e damos valor à nossa própria identidade. Recentemente, na Geórgia - que se tornou independente da União Soviética, exprimida entre a Europa e a Ásia - foi convidado por sua intérprete para jantar em casa de amigos. Um violão e as músicas típicas levaram-no a se emocionar.
O que tornou inesquecível foi o relato de que constituem um país por onde muitos povos passaram, de um lado para o outro, mas a marca que o conquistado deixou nos conquistadores foi de que era uma gente que transformava suas emoções, sua história, suas esperanças em melodias: cantavam as tristezas da dominação, as batalhas, as perdas, também a certeza de que, um dia, seriam um povo independente... e feliz!
Numa outra ocasião, no Nepal, brincou com a palavra que ouvia na rua: "namastê". Soava bem e via o sorriso no rosto das pessoas que por ele passavam. Quando a utilizou para o escritor de uma obra sobre a religiosidade naquele país ficou preocupado. A expressão, literalmente, se traduz por: "saúdo (o) Deus que habita (existe) em você!" Não era sua intenção brincar com o sagrado, mas a adrenalina de conhecer novas gentes e novos costumes o levaram a cometer um pequeno deslise...
Vou continuar assistindo à série "Pedro pelo Mundo". Recomendo seguidamente que as pessoas que não têm oportunidade de viajar - idosos, doentes, com falta de recursos... - ao menos abram uma janela para outras realidades. Conhecer faz ver que não somos melhores... nem piores! Em qualquer país, em qualquer continente, apenas pessoas buscando dar sentido à própria vida. Como diz Ana Vilela, "a vida é trem-bala, parceiro. E a gente é só passageiro prestes a partir!"

terça-feira, 14 de maio de 2019

Deixamos rastros...

O rapaz que desceu do carro não tinha pressa. O cuidador segurou a porta e a conversa fluiu como se fossem velhos amigos. Quando saiu, tinha nas mãos uma mochila e o casaco, pronto para uma reunião ou atender a um cliente. Nos poucos minutos que ficaram juntos falaram de futebol, como ficaria o tempo e ainda perguntou pelo filho mais novo do flanelinha que estivera doente. Mas foi o olhar com que seguiu o jovem "executivo" que chamou a atenção: encontrara alguém que o respeitava, se importava com ele e não o tratava como apenas pertencendo a uma estatística social.
O jovem faz parte daquele grupo de pessoas que não faz "discursos" (possivelmente também não escreva textos a respeito) sobre as desigualdades sociais, mas tem, na sua própria carga genética, a compreensão de que as diferenças de classe tornam-se mais difíceis de serem superadas se não houver, de ambas as partes, preocupação com o elemento chave de qualquer relação: o respeito pela pessoa!
Lya Luft fala do acumulo do lixo moral: "o cinismo, a ganância, a fome de poder, as negociações disfarçadas com palavras rebuscadas e até solenes..." de pessoas que prostituem o sentido  das palavras até que elas se tornem insossas e sem graça. Mensagens ouvidas nos cansados e surrados discursos políticos e também parte da argumentação de lideranças de todos os níveis - inclusive religiosas.
Gosto de perfumes marcantes. Não aqueles que poluem o ambiente, mas os que deixam flagrância no ar. Um deles - do desodorante masculino que uso - brinco, é o perfume de "talco de velhinhas" - memória de pessoas idosas, avós... Sensação de que está no ar um pouco da identidade de alguém, faz procurarmos no entorno pessoa diferenciada, por ter deixado uma marca afetiva em nossas lembranças ou chamado a nossa atenção. J.J. Camargo fala da "generosidade do silêncio", onde o rastro que deixamos é proporcional ao interesse que demonstramos pelas pessoas.
Na forma como cuidamos e nos preocupamos com as pessoas estabelecemos marcas que somente a vivência de um amor recíproco e generoso é capaz de deixar. No olhar do cuidador de carros - assim como das pessoas com as quais se convive e são, de alguma forma, especiais - aprende-se que é impossível conjugar o amor no passado: as pessoas que partiram não podem "ter sido amadas", pois perde o sentido de terem frequentado nossas vidas se não fizerem parte, no presente, da realidade afetiva: é o rastro de generosidade de quem reparte um pouco de si nas próprias lembranças, mas também quando fala de futebol, do tempo, da saúde do filho de um amigo...

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Cansados de viver...

Visitávamos um idoso numa tarde de domingo quando a conversa enveredou para o lado da segurança de quem precisa de cuidados. Uma possibilidade muito comum, especialmente para quem está fragilizado, dorme em cama de solteiro e tem a possibilidade de cair durante a noite. Sugeri o que utilizamos com a mãe: uma grade protetora que é colocada entre o estrado da cama e o colchão. A parte lateral é removível, facilitando tanto a colocação quanto a retirada da pessoa que está no leito.
Pensei no quanto ainda temos problemas com a informação a respeito de recursos que facilitem a vida de quem depende de outros para os cuidados elementares do dia a dia. Coisas simples: grades de proteção, escora de espuma para levantar o paciente no leito comum, colocação de um travesseiro embaixo do colchão para evitar o refluxo, exercícios com bolinhas ou pequenos pesos, uso de andador, bengalas, apoio metálico no banheiro etc...
Não sou geriatra e nem médico, mas a experiência em cuidar dos meus pais alertou para coisas práticas que fazem a diferença na qualidade de quem é cuidado - assim como do cuidador. Acompanho seguidamente notícias de trabalhos realizados por Universidades preparando pessoas que acompanhem idosos e doentes. Hoje, é indispensável que estes profissionais sejam municiados de informações a respeito da necessidade de serem a extensão dos serviços básicos de cuidados com a saúde.
E por "cuidados com a saúde", aqui, estou entendendo ser veículo de informação para pessoas que muitas vezes gastam o que têm e o que não têm pagando por camas especiais e demais equipamentos caros, necessários para casos mais difíceis em que não há a colaboração da pessoa cuidada. Mas que, com um pouco de criatividade, podem tranquilamente ser substituídos por elementos próximos, à disposição nas próprias residências ou em instituições - Feira da Fraternidade, paróquias, sindicatos - que recebem doações e disponibilizam este material.
Cuidar não precisa ser um tormento. Alguém me disse que os idosos morrem, muitas vezes, porque cansaram de viver. Verdade. A ausência de familiares e de recursos que facilitem a interação e o convívio restringe e isola quem, muitas vezes, foi razão e sentido da proximidade de amigos e familiares. Não é "o que eu poderia ter feito e não fiz?" que dá razão ao cuidar, mas o fato de que - idoso ou doente - são os mesmos que, um dia, nos envolveram com a ternura de quem desejou viver intensamente toda uma vida com cada um de nós, que consideravam "seres amados"...

Missa, crianças e o "louquinho"...

Estava sentado esperando iniciar a Missa quando chegou o Miguel com seus avós. Como toda a criança de três anos, curioso por caminhar e ver o que havia naquele amplo espaço, sem perder a referência do banco onde nos encontrávamos. Mas foi no momento em que começaram os cânticos que se deu o inusitado: toda a vez que um deles acabava, batia palmas. A explicação era simples: na creche, os orientadores ensinavam que aplaudissem sempre que terminavam uma das canções.
Sexta-Feira Santa. Na celebração das 15 horas não há Missa, faz-se memória da paixão e morte de Jesus. No dia anterior é consagrada a eucaristia para que as pessoas possam ter aquele alimento também num dia de dor. Voltava para meu lugar quando ouvi um choro forte... A mãe tentava explicar para a criança - que foi no seu colo para a comunhão - porque não podia comer o "pãozinho" que o adulto havia recebido. Não havia explicação que a consolasse...
Na mesma cerimônia, há o beijo na cruz. O diácono, em frente do altar, oferece às pessoas o madeiro que recebeu o corpo do Senhor. O "louquinho" se aproxima murmurando uma mistura de trechos de canções religiosas antigas com músicas não tão cristãs assim... Oferecem-lhe a cruz para beijar e ele vira de lado... A fila anda. Quando se volta para ele, novamente, aproxima-se, beija a imagem e silencia... Afaga a representação do corpo de Jesus e dá duas batidinhas nas costas do diácono...
Gosto das igrejas como espaço em que se pode parar para rezar - ou apenas silenciar... Mas, especialmente, onde há o encontro com pessoas... Homens, mulheres, crianças e "louquinhos" num lugar sagrado vivenciando uma forma especial de proximidade com Deus. Muito tempo atrás, ouvi de um padre que a maior parte dos que participam de uma Missa não tem a compreensão total do que seja. Sabem que estão diante do Sagrado para pedir ou agradecer, consagrar ou apenas existir...
As crianças e os "louquinhos" desafiam nos momentos em que desejamos apenas o "nosso" silêncio. O jeito como Deus nos retira de nossas redomas, mostrando a procissão dos que andam, dos que correm, dos que gritam, dos que se arrastam, dos que fazem a vida ser o permanente desafio de comprender o que nos leva a murmurar uma prece, apenas uma prece... na certeza de que em todas as formas de celebrar sente-se a presença de algo que supera o conhecimento e as fragilidades. O dedo de Deus que brinca nas palmas e no choro das crianças, nas palavras altas e sem nexo do "louquinho" que silencia diante do Mistério...