domingo, 30 de abril de 2017

O fenecer da luz

Uma luz se apagou por detrás da janela.
A noite já ia longe.
Na esquina se formava a cerração da madrugada....
O frio decretou o silêncio que se acomodou por entre as pedras da rua.

Alguém sofrendo na angústia da solidão?
Uma mãe que varou a madrugada na cabeceira de um filho?
Um casal de amantes que agora se aconchega ao doce arfar do prazer de um sono?
As janelas são um mistério.
Quando veladas por uma cortina, preservam segredos.
E quando a primeira aragem agita o dia que vai chegando tornam-se murmúrios enlouquecidos a provocar olhares que fenecem com os primeiros raios de sol...

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Baleia azul: um jeito perverso de iludir

Na vida, há brincadeiras... e brincadeiras. Só  que o jogo “baleia azul” não  é  uma brincadeira, mas um crime. Que existem espaços  de entretenimento nas redes sociais de gosto duvidoso, existem. O problema está  na capacidade da criança em fazer o discernimento do que é bom ou a tentação em burlar a segurança que os responsáveis deveriam ajudar a estabelecer e observar.
Estes produtos de imaginação criminosa apelam para o sentimento de solidão, apatia e a insegurança própria de quem, mais do que passar para trás o controle de adultos, não encontrou uma referência que lhe desse a segurança necessária para entender os limites da própria liberdade.
Num destes “programas” de cuidar de sobrinhos, chamou a atenção desenho do “Bita” em que uma nave (objeto de adulto) precisa da imaginação (que se convencionou ser infantil) como combustível para voar. Analogia perfeita: um desenvolvimento consciente e equilibrado depende da criança  ampliar sua capacidade de sonhar e do que os adultos ajudam a construir no período de formação da personalidade.
Incentivar a imaginação  não  é  fugir da realidade. A fuga tem como resultado uma vida triste e deprimida. A imaginação é o combustível para se projetar o futuro, em alguns casos, sair de um presente difícil, alimentando a esperança. Falhamos com estes jovens. Tornaram-se reféns  da amargura, não conhecem suficientemente suas famílias e as famílias não os conhecem. Assim como seus educadores.
Estes e outros jogos são  apenas a ponta de um iceberg. Sinalizam que alguma coisa anda errada e não  basta coibir o acesso às  redes sociais. É  necessário  reestabelecer as pontes e os caminhos que, em algum momento, ruiram. A  mãe de uma garota reconheceu: obstáculos  foram sendo colocados de ambas as partes. "Nenhuma de nós teve coragem de ser a primeira a estender a mão". Ou dar o primeiro beijo.
Os cristãos  repetem que o primeiro elo a ser restabelecido é o da família, onde se recebe carinho e uma palavra de atenção, suficiente para saber que não se está  só. O diferencial para não se sentir deprimido ou buscar aventuras solitárias, que, no jogo "baleia azul", em alguns casos, chegou à mutilação e perda da própria vida.
Um alerta preocupante de que, na omissão dos educadores (família, escola), outros ocupam estes espaços num jeito perverso de iludir. Pior do que ser enganado e sentir isto na própria pele - para o jovem e criança - é não vislumbrar no seu horizonte algo que o faça feliz. E alguém que lhe estenda a mão. Pelo simples fato de que o ama.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Identidade ao envelhecer

O que faz a identidade de uma pessoa? As definições são muitas. Prefiro pensar ser aquilo que a torna diferente das demais, "especial", individualizada, com uma marca que a sua história construiu. A identidade é fruto de escolhas individuais, mas passa pela marca do social.
Foi o que tentei passar para as "meninas" do projeto da Universidade Católica de Pelotas, Voltando à Sala de Aula: chegamos à vida buscando nosso espaço, tentando dar sentido à nossa identidade; passamos o tempo construindo e podemos dizer que mesmo ao morrer ainda há um processo que não acaba até o último suspiro.
Não estou dizendo nenhuma novidade, mas envelhecer, na maior parte das vezes, é um privilégio. Muitos não chegam. Outros o fazem parecer um castigo. Neste meio, há muita gente que compreende ser uma nova etapa da vida, na qual temos problemas, mas também desfrutamos de momentos privilegiados.
Este "desfrutar" depende do que se fez nas etapas anteriores. Alcançar a velhice, mais do que vencer etapas, dá o direito de amadurecer. Com tudo o que daí advém: os protocolos não são mais da representação social, mas de viver em conformidade com aquilo que nos agrada e usufruir dos outros o que de bom nos podem dar.
Ouvi pessoas que precisavam criar sua identidade a partir de princípios falsos: ao invés de outros reconhecerem suas qualidades, repetem à exaustão que são isto ou aquilo tentando convencer. E se convencer. Se dizem "humildes" (mas são arrogantes!) ou "sinceras", gostassem os outros ou não.
Nos dois casos, ainda não se encontraram. Têm medo do que representam. O que as torna incapazes de viver a própria existência e se metem na vida dos outros para ter um sentido. Abandonam a própria felicidade, que não está no quintal alheio, mas esquecida de ser cultivada num recanto do próprio jardim.
Na maior parte das vezes, os espelhos e as fotografias não são justos conosco. O passar do tempo muda nossas aparências, é verdade. Mas quem percebe isto mais facilmente são os outros. Dentro de nós há um espírito brincalhão que nega. Diz que ainda somos os mesmos. Por mais que cansemos, ele não nos deixa desistir.
Dá sentido a anos serenos e produtivos centrados não apenas em buscar momentos felizes, mas vivê-los com quem deu sentido ao passar do tempo. Que cada ruga, articulação dolorida, esquecimento foi fruto de um viver intenso e nos fez mais próximos da realização maior: saber que cada instante valeu a pena... e alcançar a paz!


segunda-feira, 10 de abril de 2017

A energia de viver a Páscoa

Minhas lembranças mais antigas sobre a Semana Santa são de minha infância. Em alguns casos, não são situações que vivi, mas as que minha família trouxe do interior de Canguçu. Ter contato com a Igreja Católica quando chegamos a Pelotas me abriu a perspectiva de outro olhar, especialmente dos rituais, comuns a muitas igrejas cristãs.
Na quinta-feira, os homens recolhiam os animais, que seriam liberados no sábado. E juntavam forragem utilizada para mantê-los em confinamento. As mulheres cobriam as imagens de santos, retratos da família e espelhos. Depois, preparavam o almoço de sexta, à base de peixe, com moqueca e pirão.
Sábado de Aleluia. Madrugada, éramos tirados da cama com brincadeiras. Escapamos do pior, pois os mais antigos contavam que os pais "tiravam o Aleluia" dos filhos com palmadas e vara de marmelo! Havia reunião com avós, tios e primos, para um churrasco quando começava a aparecer os primeiros raios de sol.
Este era o Dia de Páscoa. Ovos eram preparados em "segredo" por uma tia que morava com minha avó: amendoim caramelizado, envolto por casca de ovo pintada, em que se retirara uma das extremidades e, depois de preenchido, selado por papel colorido e cola. Manjar dos deuses quando se ganhava um ovo de açúcar!
Os apelos da sociedade de consumo não chegara ao grupo familiar. As necessidades eram de uma religiosidade simples em que se sentia a grandiosidade da morte, mas não se entendia (para eles nem era necessário) a Ressurreição.
Somente num centro maior passamos a conviver com os rituais das Igrejas. Um mundo diferente, pois trocamos a solidariedade natural da família e de vizinhos por criar laços com um mundo que nos era estranho.
A população de periferia era de migrantes do interior. Cristãos, tendo na religião uma forma de manter a identidade. Os rituais mudaram, incluindo o Domingo de Ramos (ramo sobre a porta para proteger ou queimado para afastar tormentas); vigília toda a noite de quinta para sexta, até a morte de Jesus; colher macela ao amanhecer de sexta; peixe no almoço do mesmo dia e churrasco no domingo.
Não sei qual é a sua história com a Semana Santa. Mas, nos próximos dias, se estiver perto de uma igreja, entre e sente. Ali há a energia de muitas "Páscoas" - vidas, sofrimentos, "ressurreições". Ao seu jeito, faça a sua. Se lhe faltar palavras, silencie. Pode parecer loucura, mas a morte de Jesus foi também para que você encontrasse a vida. Nesta Páscoa, Deus está pedindo apenas uma chance para lhe alcançar a paz!

Feliz Páscoa!

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Entre o livro e a arma

A forma mais fácil das pessoas se acomodarem ao destino é apostar em máximas batidas de que tudo já está determinado e que, por fatalidade, o que tem que acontecer acontecerá. Como consequência, nos eximimos de responsabilidades e criamos um deus que traçou um roteiro, sem que se possa mudar a sequência das cenas. Somos refém de uma divindade que manipula seus cordéis.
Não é verdade. A história está cheia de pessoas com dificuldades em família, problemas sociais, mas, com garra, superam tudo e mudam seu futuro. Negando um dos seus mandamentos, por exemplo, de que quem nasce pobre vai morrer assim.
Num programa de rádio, sábado pela manhã, o apresentador contou a história de um vendedor de jornais no centro de Porto Alegre. Depois de alguma conversa ficou impressionado com a clareza de pensamento. Uma frase o convenceu a dar ainda mais atenção: "entre a arma e o livro, eu escolhi o livro."
O rapaz afirmou que ele mesmo fez as suas escolhas. Saindo do Morro, havia muitas histórias tristes para serem contadas. Como reconheceu: "dos meus amigos, muitos já estão na prisão. Outros acabaram mortos".
O fato de ser pobre e viver na periferia da cidade não o fez desistir. No horizonte dos seus sonhos há uma etapa importante: "quero estudar e vou chegar à faculdade". Com um grito de alerta e um pedido de socorro: "o que eu preciso é de uma oportunidade!"
Não sei o nome do personagem. No entanto, comprovou que alimentar o sonho é dar uma injeção de ânimo na esperança. Pela personalidade demonstrada tem consciência de que a maior de todas as vitórias não é a que arranca reconhecimento público e aplausos. Mas a que faz a gente se sentir melhor no dia a dia: alcança paz de espírito e a certeza de que me tornei melhor. E posso ser ainda melhor!
O rapaz pede - endossado pelo apresentador - uma oportunidade. Estudar e dar outros passos na vida. Numa época de desemprego, a força de vontade revela o potencial de um jovem desejando provar que, assim como cada um de nós - num passado não tão distante - idealizou uma vida que merece e julga ser capaz de concretizar.
Não se pode desperdiçar sonhos e deixar sem horizonte quem pede o direito de caminhar no rumo que idealizou. Já intuiu: negar a história é ser incapaz de construir a própria identidade. O que vai ser, não se sabe. Tem todos os elementos nas mãos para comprovar que fez a opção certa: entre o livro e a arma, aceitou o desafio do conhecimento. A sociedade precisa lhe mostrar que fez a escolha certa!