segunda-feira, 18 de março de 2019

Desarmando os espíritos

Semana passada, o padre Fábio de Mello teve um dos seus textos transformado em "fake". "Transformado" porque havia uma parte transcrita, vinculado pelo seu Twitter. Como sou dos "antigos" confesso que achei o texto fake mais forte que o original e embora as muitas pedras ideológicas e preconceituosas atiradas contra ele, com alta capacidade de convencimento e, especialmente, de reflexão.
O texto que não era do padre questionava o porte de armas, os jogos violentos, a omissão da escola, o bullying... Para além destes sinais, afirmava que o problema está na desestruturação e no fracasso das famílias que não cumprem seu papel de educadoras: "não se acompanha mais de perto, a tecnologia substitui o diálogo, presentes compram limites e não há o conhecimento e o respeito a Deus".
Apela para o senso de responsabilidades de quem se omite e transfere culpas, havendo a necessidade de apontar o dedo para os outros, mas também para cada um nós, aí incluindo pais, professores, religiosos..: "a culpa é minha, é sua, é de todos nós!" Cita, então, o padre Fábio: "a violência é o desdobramento de carências afetivas, da necessidade de ser visto e notado, ainda que da pior maneira".
O texto do padre Fábio fala da "vulnerabilidade social", mas que é na proximidade do núcleo familiar que se pode perceber as necessidades e os conflitos que o outro (no caso, o filho) está vivendo. Pode parecer chavão, mas no seu jeito tranquilo de se expressar, aponta o maior de todos os nossos problemas: "é justamente na construção da intimidade que erramos... O que nos vincula não é a obrigação, mas o amor".
O texto foca na tragédia de Suzano e fiquei preocupado com meus sobrinhos (não tenho filhos), filhos de vizinhos, de amigos, alunos... que vivem o que aparece quando se desnuda a ferida da violência: "o desamparo emocional alimenta uma desolação silenciosa. A partir dela a pessoa passa a nutrir ódio pelos que estão felizes".
Como compartilhei uma mensagem que não era do padre Fábio, fui para as redes sociais e encontrei no Twitter o seu original. Registrei, então, que mesmo assim sou contra a liberação de armas, por um motivo simples: há um estado com a obrigação de criar políticas e dar segurança ao cidadão, já que esta é a ponta do iceberg.
Olhando para as casas é que encontramos a origem de nosso problemas. Em tempos tão conturbados e de tantos apelos à violência gratuita, é fundamental recuperar e dar capacidade aos pais de serem educadores. Só assim os jovens terão a esperança de viver mais e melhor. E de serem felizes. Desarmando os espíritos ainda temos uma chance porque, no olhar de muitas crianças e jovens se percebe o medo da morte e um apelo silencioso por esperança... e um pouco de amor!

segunda-feira, 4 de março de 2019

Fraternidade e o silêncio dos bons

Você vai ao posto de saúde e não tem médico; com uma receita em mãos, vai até a farmácia popular, mas não encontra a medicação; pede atendimento porque aconteceu um assalto e não tem pessoal e viaturas à disposição; quer matricular seu filho nas séries iniciais e não tem vaga; quer andar pelas ruas da cidade mas não consegue porque a buraqueira transformou-a numa autêntica armadilha...
Tudo isto está dentro de um mesmo tema: políticas públicas. Ou, neste caso, a ausência das mesmas. Na Internet você vai encontrar a seguinte definição: "ações e programas desenvolvidos pelo Estado para garantir e colocar em prática direitos previstos na Constituição Federal e em outras leis. Medidas e programas criados pelos governos dedicados a garantir o bem estar da população."
Exatamente para refletir sobre este assunto, a Igreja Católica lança esta semana a Campanha da Fraternidade 2019 com o tema “Fraternidade e Políticas Públicas” e o lema “Serás libertado pelo direito e pela Justiça”, busca conhecer como são formuladas e aplicadas as políticas públicas estabelecidas pelo Estado brasileiro.
Cumpre o papel de conscientizar o cidadão de que ter garantia de serviço público não é regalia, mas direito - e obrigação por parte dos entes públicos. Enfatiza a função desempenhada pela sociedade no controle sobre os atores sociais. Como disse dom Leonardo Steiner, secretário-geral da CNBB: “política pública não é somente a ação do governo, mas também a relação entre as instituições e os diversos atores, sejam individuais ou coletivos, envolvidos na solução de determinados problemas”.
Como em anos passados, há uma proposta de reflexão de forma ecumênica - envolvendo outros credos - dentro da metodologia "ver, julgar e agir", alcançando aos cristãos instrumentos para que possam tomar conhecimento de como funcionam as atividades públicas, mas também de como pode influenciar nas suas decisões, se fazer presente - e cobrar - naquilo que é de interesse de todos.
O cidadão paga por uma máquina pública que funciona minimamente. Tem representantes eleitos, assim como aqueles que prestam concurso público, como "empregados", em muitos casos, como "empregados relapsos". Vale repetir Martin Luther King falando sobre quem acha que não tem nada o que fazer em política: "o que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons." A Campanha deste ano é um desafio. O desafio para uma sociedade cansada e amargurada. Descrente de seus agentes públicos e merecedora de respostas adequadas, sabendo que o Brasil tem jeito, mas que é preciso melhorar, em muito, o próprio brasileiro...

sábado, 2 de março de 2019

"Que nunca nos falte o ar"

A parte interna das alianças de compromisso é o lugar onde são colocadas as iniciais daqueles que se amam, assim como uma jura do tipo: "amor para sempre", "eternamente teu", "até que a morte nos separe"... Mas, daquele casal que se conheceu enquanto esperava pela doação de órgãos, havia um apelo: "que nunca nos falte o ar!"
Para quem está na fila à espera de um transplante que permita a continuidade da vida, a deterioração, muitas vezes, começa pelo cansaço, a dificuldade de fazer as coisas mais simples e a falta de ar. Nestes casos, o esforço a mais pode causar desgaste em busca de um ar que custa a encher os pulmões, transforma-se em energia desmedida que uma pessoa normal não pode avaliar, pelo simples motivo de que é um ato natural exercido por seu corpo.
A matéria chamava a atenção até pelo fato de que, com suas defesas baixas, não podiam sequer se aproximar muito. Mas tem o compromisso um com o outro: lutar pela vida e olhar para o horizonte pensando no dia em que a possam compartilhar. Encontraram um motivo que vai além da própria cura. O que deveria ser um tratamento difícil, com momentos carregados de angústias e tristezas se transformou em esperança. Apoiar e incentivar o outro torna mais fácil vencer a própria dor.
Neste período do ano, é comum que os hospitais e hemocentros façam campanhas pedindo que a população se conscientize. A mais elementar é a doação de sangue, gesto simples, que pode se transformar em corriqueiro, entrar na agenda individual ou feita por grupos de amigos, ao menos duas vezes ao ano. A medula é um exame realizado nos hemocentros, colocando à disposição mais um doador, que faz a diferença entre retomar a uma vida normal ou a morte...
A doação de órgãos ainda vem acompanhada de muitos preconceitos. Mas, cada vez mais, se vêem pais mais jovens doando órgãos de filhos vítimas de violência, procurando sentido para a interrupção de uma existência, a razão para não perder a fé na humanidade e acreditar que a vida do ser amado, de alguma forma, valeu a pena.
Quando a mãe faleceu, em meus braços, fez um último esforço ao fechar os olhos: a derradeira arfada em busca de um ar que não encheria mais seus pulmões. De uma coisa corriqueira que nem nos damos conta, para quem precisa de uma doação de órgãos se transforma em compromisso: "que nunca nos falte o ar!" O ar que dá sabor à própria vida, permite a caminhada, exercícios, cuidar da casa, trabalhar ou entrelaçar as mãos e jurar que se espera ficar sempre juntos... "até que a morte nos separe!"