segunda-feira, 31 de julho de 2017

O direito de voltar para casa

A violência, hoje, faz parte da rotina nos meios de comunicação, invade conversas no transporte coletivo e rodas de chimarrão. Quem mora na periferia das cidades perdeu o direito de ir e vir. Refém do medo de assaltos, não anda nas ruas a partir do final da tarde, combina com pessoas para efetuar saídas, vigia a proximidade da casa ao entrar a pé ou de carro.
Mesmo assim, não foge da paranoia de que será uma próxima vítima. Então, mulher sozinha, à noite, em deslocamento, passar por indivíduo também sozinho ou em grupo, "com jeito de marginal", causa um dos mais recentes fenômenos: o "quase assalto". Num primeiro momento achei engraçado quando ouvi esta expressão.
Mas não levou muito tempo para que ela se repetisse três vezes em menos de um mês. Deu para perceber que, embora todas as medidas tomadas - abandonar o uso de bolsas, andar simplesmente trajadas, não usar celulares e adereços na rua - o fato de passar por suspeito já causa temor. Fiquei pensando no passante em sentido contrário... Mas esta é outra história!
A Vânia é cuidadora nos finais de semana. Vem e vai de bicicleta porque acredita que o perigo é o mesmo da espera numa parada de ônibus. Quando sai, cuido e, quando chega em casa, liga para dizer que está tudo bem. Num retorno, numa rua sem movimento, um indivíduo atravessou a via para confrontá-la. Acelerou, escapando ao possível assalto.
Mas foi o que me disse depois que chamou atenção: "Não vou desistir. Não vou ficar em casa só porque esta gente anda por aí". Na simplicidade de quem vai trabalhar e também à noite vai para a sua Igreja é uma das respostas à crise da segurança: desistir, entregar os pontos, significa abrir mão de todas as possibilidades de uma convivência saudável.
No domingo, a Mariana lembrava do tempo em que podia andar de bicicleta até tarde da noite na rua com seus irmãos. Direito que, agora, passou para quem reside em condomínios e vê as crianças terem a chance de viver esta "liberdade" num espaço fechado. Por paradoxal que possa parecer, é o jeito de alcançar uma frágil sensação de segurança.
Os crimes cometidos - de todos os tipos - sempre causaram angústia e apreensão. No entanto, recentemente, as imagens que circulam nas redes sociais não são mais de policiais ou bandidos sangrando em favelas de Porto Alegre, Rio ou São Paulo. Mas do vizinho que dirige um taxi, o conhecido que vigia um supermercado ou de alguém que foi assaltado.
João Paulo II dizia que a violência destrói a dignidade da vida e a liberdade do ser humano. Uma sociedade injusta conduz à pratica da violência. Políticas sociais não vão reverter o quadro a curto prazo. Mas precisam ser iniciadas. Afinal, sair de casa para trabalhar, ir à Igreja, se divertir, é um direito, exigindo-se, também, a possibilidade de voltar para casa em segurança.





segunda-feira, 24 de julho de 2017

Deficientes e a purificação da raça

O Ministério Público da Romênia está levantando o tapete de um crime contra a Humanidade. Possivelmente, iniciando durante a 2ª Guerra Mundial - mas se estendendo até o fim do regime comunista - cerca de 10 mil crianças, adolescentes e jovens foram mortos por apenas um crime: eram excepcionais!
A ideia de que um excepcional atrapalha a capacidade de produção de uma família causou a sua reclusão em clínicas, onde eram classificados como recuperáveis, parcialmente recuperáveis e irrecuperáveis. Na mesma sequência, aqueles que poderiam produzir para o estado, ser treinados ou... descartados.
O fim era macabro: deixavam de ser tratados, alimentados e, quando batia o Inverno, não recebiam calefação. A consequência era a piora dos sintomas, inanição, ou perecerem por doenças típicas do excesso de frio.
Este tipo de "purificação da raça" foi visto durante o regime de Adolf Hitler. Na Alemanha, mais de 200 mil pessoas foram sacrificadas por não corresponder à ideia de produtividade do governo. Quando se fala do extermínio de judeus, ciganos e gays, acrescente-se mais este grupo de inocentes. Que a História ainda não soube registrar.
O preconceito com o excepcional está no tipo de sociedade que construímos. Pessoas vaidosas em busca do corpo perfeito, da aparência de acordo com os padrões de beleza, do comportamento estereotipado para atender a competitividade de quem representa mais, sem lastro para ser melhor.
Aqueles que lidam com excepcionais - a Associação dos Pais e Amigos de Jovens e Adultos com Deficiência (Apajad) sabe disto - veem no dia a dia a reação com pessoas consideradas "doentinhas", merecedoras de pena, mas não de ocupar um lugar na sociedade.
A excepcionalidade provoca: aqueles que a portam podem até não ter consciência do que são, mas os que os cercam trabalham para que sejam inseridos e tenham seu lugar ao Sol. O problema é para quem não os aceitam... Não aceitar é sinal de que os deficientes incomodam.
Todos temos deficiências. Aqueles que as externam física e mentalmente são o dedo na ferida, pois mostram o quanto precisaríamos desfazer a nossa própria arrogância. Aprender com as crianças - ainda não contaminadas pela "cultura" que mais tarde irão vestir - que ao brincar há apenas um outro ser humano ao seu lado. Correr, gritar e rir nos torna mais gente. Algo em que não somos diferente de ninguém.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Siga o seu coração...

Programa de auditório no domingo pela manhã: a menina convidada para dançar também receberia, no palco, a mãe que a abandonara e desejava - diante das câmaras e audiência nacional - pedir perdão e refazer a relação cortada quando dera a luz ainda jovem e manter a filha seria um estorvo para seu mais recente caso amoroso....

Como dizem os planejadores, a impressão é que faltou combinar com os russos. A cena não transcorreu sendo tudo flores e aromas agradáveis, A impressão é que muitos ainda eram os espinhos entre as folhas da roseira. A cena que poderia ser emocionante transformou-se, apenas, em representação teatral de péssima categoria.
A busca por audiência leva os sentimentos mais íntimos a serem transformados em espetáculos, não bastando apenas o reencontro entre dois seres já machucados pela vida, mas a transformação em representação teatral, com um olho no palco e o outro nos índices de audiência auferidos em tempo real.

Até consigo entender porque as pessoas se predispõem a fazer tal encenação. Afinal, o encantamento dos meios de comunicação - em especial a televisão - consegue fazer as pessoas mais simples acreditarem que estão tendo seus 15 minutos de fama e, para isto, qualquer coisa vale a pena.
Tristemente, se desnudam diante das câmaras, nos seus sentimentos mais íntimos, como é dar e receber perdão. O caminho da separação, quase sempre, é doloroso. Carrega ressentimentos, incompreensões, feridas possíveis de serem curadas, mas deixando marcas em cicatrizes que mesmo o tempo é incapaz de apagar.
Num filme de final da tarde, o jovem personagem que ia para a faculdade conta para a mãe que magoou a namorada e, agora, tem medo que não o espere. Mas que a ama. A mãe diz que ele tem ainda muito pela frente. Mas que, por toda a vida, o sofrimento que deixou numa pessoa pode até ser perdoado, mas não esquecido.
E completou: "procure por ela quando puder olhar sinceramente nos seus olhos e apenas siga o seu coração". Transformar sentimentos em comédia é o oposto. Há tempos em que nos mantermos afastados das pessoas pode ser um jeito de redescobrir o quanto são importantes.
No fundo, no fundo, a gente descobre mais com os silêncios do que com longas conversas. Quem não for capaz de compartilhar uma ausência, com certeza, não consegue dar valor a um perdão obtido na intimidade do reencontro - "quem nunca errou que atire a primeira pedra!" - onde apenas um olhar pede o direito de voltar!

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Com o gosto de domingo

Um dos meus sabores com gosto de infância e juventude é o do mocotó. Meu pai e minha mãe iniciavam a limpeza e fervura das partes do boi usadas no preparo ainda na madrugada de sábado, para servi-lo domingo ao meio-dia. Somente mais tarde fui saber sua origem: comida de escravos, pois os senhores ficavam com a carne e deixavam para a "gentalha" aquilo que, possivelmente, iria fora.
No Inverno, meus pais preparavam uma iguaria vendida para reforçar as finanças. Tempero verde, picar ovos cozidos, dosar pimenta e sal. Numa ocasião, a mãe colocou pimenta e meu pai, sem saber, acrescentou mais uma dose. Não houve jeito de salvar o mocotó! Mas, quando tudo dava certo, ir à mesa, acompanhado de vinho, pão de casa quente, ou " de padaria" recente. Difícil ficar num prato só.

Foi do que lembrei almoçando no Seminário São Francisco, onde a turma organizou um mocotó buscando recursos para financiar sua Romaria, em agosto, ao Santuário de Aparecida. Ali estava uma das coisas boas da minha vida: comida que sempre dá vontade de esquecer talheres e mergulhar o pão no molho e, no fim, com o mesmo pão, limpar o prato. Sensação de sentar à mesa dos deuses!
Cheguei cedo pensando que minha função seria servir chimarrão. Mas me vi envolvido pelos rapazes, a Rose, a Queca e a dona Florinha, colocando lenha no fogão, mexendo e sorvendo a delicia em que se transformavam os ingredientes. Uma equipe - trabalhando, brincando, agitando - sabendo que mais do que os recursos que angariavam, viviam um momento de integração, de carinho e cumplicidade.
Antigamente se dizia que a cozinha era o coração da casa. Para vivenciar este dito é preciso ir para a volta do fogão, onde, embora cada um tenha uma tarefa, não é a individualidade que faz o resultado, mas o conjunto do trabalho, a harmonia da equipe, o sentido de pertença a um grupo. O resultado transborda para que outros sintam o quanto algo feito com dedicação pode ser, ao mesmo tempo, saboroso e compensador.
Os homens e mulheres nas senzalas sabiam que o mocotó era a "sustância" para continuar seu trabalho. Na atualidade, é tempo de convívio e conhecer pessoas. As mesmas coisas - ontem e hoje - tem sabor especial porque entre a preparação da comida e a satisfação de quem passou momentos agradáveis à mesa há um encontro. O gosto de viver um domingo de celebração da vida, de ser feliz na partilha - de um pedaço de pão ou de um simples prato de mocotó!

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Eu te amo...

Sábado à noite pede um filme na televisão: desopilar ouvindo algumas bobagens. "Minha Mãe é uma Peça". Quando esperava apenas o de sempre, a surpresa: a "mãe", representada pelo ator Paulo Gustavo, visita a tia, senil e no fim da vida. Senta-se ao lado da idosa, que esquecia de tudo que era dito, e pede: "a senhora pode esquecer tudo o que eu disser, só não esqueça que eu a amo!"
A revista Seleções apresentou a experiência do pai que viu o filho de 13 anos entrar em casa, correr para ele, abraçá-lo e murmurar: "te amo!". Desapareceu na mesma velocidade. Sem explicação do garoto procurou a escola. Um professor disse ser um experimento da reação de quem ouvia a expressão. Na primeira ocasião com o filho em casa tascou-lhe um abraço, um beijo e devolveu: "eu também te amo!".O que deveria ser uma expressão carinhosa, carregada de sentidos, de verbo virou substantivo. Abastardamos o significado quando ao invés de ser a expressão profunda de relação entre pessoas passou a ser, apenas, sinônimo de "fazer sexo". Que também pode ser feito por amor, mas é parte deste sentimento e não a sua plenitude.
Ficamos envergonhados de dizer três curtas palavras. Das minhas vivências, em alguns momentos de dor, fui capaz de dizer a poucas pessoas. No entanto, àqueles dos quais recebi as maiores provas de amor - meus pais, levei muito tempo para dizer "eu te amo". Meu pai morreu sem ouvir. Minha mãe ouviu apenas num dos seus momentos mais difíceis com a saúde.
Se perguntasse às pessoas quando gostariam de ouvir esta declaração, com certeza, titubeariam antes de responder. Mas elencariam momentos de dificuldades, de provações, vivências de fragilidade ou desesperança. Possivelmente, alguém diga ser as últimas palavras que gostaria de ouvir antes de entrar para uma cirurgia ou se despedir da vida...
Somos comedidos em dizer algo tão simples pelo fato de achar que as pessoas já conhecem nossos sentimentos. No entanto, o passar do tempo - especialmente para quem envelhece - torna necessário não somente que se pense, mas diga em alto e bom som, com a retribuição de um olhar já trôpego, mas carregado de compreensão.
Há momentos que são como encruzilhadas na vida e dizer "eu te amo" dá uma força especial para enfrentar muitas das maiores dificuldades. No dia a dia, pode ser o empurrãozinho necessário e solidário, como a dizer - olhar sorridente para um olhar carente: "não tenhas medo. Não estás sozinho, estou contigo: "eu te amo...!"