sábado, 31 de março de 2012

No lado esquerdo do peito

Hoje (31), completa um ano em que enterramos meu pai, o seu Manoel. Repetindo o chavão: parece que foi ontem. Mas passou um ano e olhando para trás, dá para perceber que foi dos mais difíceis. Tínhamos que vencer a saudade, aceitar a ausência e continuar vivendo com aqueles que ficaram, em especial minha mãe.
Este foi um dos quadros mais difíceis. Embora os primeiros meses tenham sido relativamente tranquilos, quando chegou o tempo dos aniversários, ela foi definhando até sobrar muito pouco. No final do ano, o quadro se mostrava pior do que em anos anteriores, quando tínhamos que recorrer ao pronto atendimento.
Uma medicação especial foi capaz de reverter o quadro, passando de algo muito próximo à depressão, para a aceitação e a busca de convívio com quem estava conosco. Infelizmente, além da perda do pai, aqueles que me apoiavam, por motivos diversos - mudarem de cidade, iniciarem trabalhos - praticamente se ausentaram de nossa casa. E tudo ficou silêncio e saudade, de quem partiu para a Eternidade, ou quem tivesse outras ocupações.
Tem momentos em que uma espécie de torpor vai tomando conta do corpo e do espírito. Ao mesmo tempo em que brilha o sol, há um cansaço que, gradativamente, toma conta, invade nosso peito, e se acomoda em nossas mentes. Neste momento, precisamos de amigos especiais, tanto familiares, quanto de outras pessoas, porque são como raios de luz que impedem que as trevas se fechem ao nosso redor.
Cada presença, cada abraço, cada carinho é um pouco de esperança. Embora a fé nos mantenha em pé, ela precisa de arrimo, vindo de pequenos gestos que, até mesmo quem faz, talvez não compreenda a enormidade do seu significado. Viver pode não ser a coisa mais fácil. Mas conviver, dá todo o sentido para continuar, numa estrada, como dizia o poetinha Quintana, "onde já caminho de lado, porque carrego meus entes queridos do lado esquerdo do peito".

quinta-feira, 29 de março de 2012

Millór nos Céus e o Papa em Cuba

Uma charge de hoje mostra Millór Fernandes chegando ao Céu e um dos auxiliares de São Pedro diz: "Millór chegando ao Céu e o Papa visitando Cuba, onde vamos parar?". Não consigo ver uma melhor forma de homenagear o grande humorista que era capaz de, em curtas frases, transmitir uma ironia felina e arrasadora.
Mas, porque as situações podem ser consideradas antagônicas? Porque Millór tinha um traço esquerdista, às vezes contrários a certos valores religiosos, em especial aquelas políticas mais tradicionalistas, próprias do ranço do poder. Em contraponto, a visita do papa Bento XVI a um dos poucos países que ainda se considera comunista, tem tudo de negociação e articulação política. Sua Santidade Reverendíssima está na ilha muito mais como estadista do que como pastor.
Quando converso em palestras, seguidamente me pedem esclarecimentos sobre o porquê da Igreja ser Católica, Apostólica e "Romana"? Os dois primeiros são de fácil compreensão: universal e de origem nos apóstolos de Jesus. E porquê "Romana", se nasceu em território que hoje é Israel? Exatamente porque o primeiro estrategista da Igreja - Paulo - deu-se conta de que se ficassem naquele território, não conseguiriam ser universal. O grande centro de então era Roma, que se expandia e ia em direção a todo o mundo conhecido de então.
Esta opção e depois a união entre a Igreja e o Estado permitiu que ela também se expandisse, mas também cobrou uma conta que pagamos até hoje: muitas lideranças esqueceram que, passando o tempo, igreja e estado entraram em conflito e se desligaram, mas ainda restam resquício da magnificência e do poder.
Que Millór, por seus merecimentos, chegue aos Céus. Mas que também o papa faça as suas visitas como pastor, talvez com menos pompa e circunstâncias, mas na humildade daquele que para servir não poupou sacrifícios e, em nenhum momento, pediu honra e poder, mas o direito de lavar os pés daqueles que o seguiam. Novos tempos pedem uma nova Igreja, quem sabe capaz de dar um exemplo daquilo que é o seu maior carisma: o amor ao próximo, a caridade, alimentados na fé e na esperança, valores esquecidos ou escanteados e que precisam ser revividos.

quarta-feira, 28 de março de 2012

A Verdade e a Parábola

(Conto judaico)
Um dia, a Verdade decidiu visitar os homens, sem roupas e sem adornos, tão nua como seu próprio nome.
E todos que a viam lhe viravam as costas de vergonha ou de medo, e ninguém lhe dava as boas-vindas.
Assim, a Verdade percorria os confins da Terra, criticada, rejeitada e desprezada.
Uma tarde, muito desconsolada e triste, encontrou a Parábola, que passeava alegremente, trajando um belo vestido e muito elegante.
— Verdade, por que você está tão abatida? — perguntou a Parábola.
— Porque devo ser muito feia e antipática, já que os homens me evitam tanto! — respondeu a amargurada Parábola.
— Que disparate! — Sorriu a Parábola. — Não é por isso que os homens evitam você. Tome. Vista algumas das minhas roupas e veja o que acontece.
Então, a Verdade pôs algumas das lindas vestes da Parábola, e, de repente, por toda parte onde passava era bem-vinda e festejada.
* Os seres humanos não gostam de encarar a Verdade sem adornos. Eles preferem-na disfarçada.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Ramos: o discurso do silêncio


Na proximidade da Semana Santa, sempre me fascina o fato de que Jesus, ao entrar em Jerusalém, produz um dos maiores contrapontos da História: entra montado num jumento, com uma coroa feita de ramos de árvore, tendo como chão os mantos de seus seguidores e admiradores.
Numa cidade dominada pelos romanos, é como se apontasse o dedo e dissesse: “vocês dominam pela força e pelo poder, eu vos ofereço a minha vida!” Para quem não lembra, os dominadores eram especialistas em cavalos, que transformaram em máquinas de guerra, vestindo-se de roupas faustosas (especialmente no uso do vermelho), usando muito metal, e seus administradores usavam e abusavam do ouro e de pedrarias de grande valor.
O Nazareno fez um dos maiores de seus discursos sem usar uma palavra: chateado porque os judeus não queriam ouvi-los e já planejavam a sua morte, marcou com um sinal a triunfante entrada na capital política e religiosa, sem que se tenha informação que houvesse, ao final, feito qualquer manifestação pública àqueles que estavam na cidade, vindos de muitas partes do Mundo conhecido de então.
As comparações são inevitáveis: o Filho de Deus anda num jumento, simples, às vezes teimoso, enquanto os dominadores cavalgam em imponentes corcéis; Jesus usa uma coroa capaz de se decompor em pouco tempo, enquanto aqueles que tramavam sua morte usam pedras preciosas; O Filho da Luz tem entre seus seguidores homens simples, na maior parte sem instrução formal, mas que estão transbordantes em espírito, enquanto romanos e a casta dominante de seu país tramam nos bastidores e se asfixiam no medo de um Messias que pode fazê-los perder o único “bem” religioso e político que conhecem: o poder.
Jesus já não mais falará às multidões. Seu último discurso será para seus mais íntimos na Quinta Feira Santa. Embora os sinais que se dão naqueles três últimos dias sejam muito fortes, fica sempre aquela referência, ao mesmo tempo jocosa e irônica: até o último momento, Deus não quer os sinais exteriores que demonstram a fé, mas, sim, a conversão de espírito. Aqueles que, em qualquer momento, não têm receio de parecer ridículo montando um burrinho, usando uma coroa de folhas, acompanhado dos mais simples, mas mirando a nova Jerusalém: na paz de quem, na Páscoa, passa pela morte e consagra a ressurreição.

domingo, 25 de março de 2012

Usando as mãos


Relembrando: crônica do livro "Remendos e Arranjos".
Sempre tive fixação em escrever sobre as mãos. Elas me encantam por aquilo que fazem e pela autonomia que, às vezes, tomam a si, deixando-nos, verdadeiramente, desnorteados.
Gosto de descrevê-las saindo da sua atitude concreta e substituindo a visão. Especialmente, quando, percorrendo um corpo, por exemplo, tornam as sensações mais, literalmente, - desculpem a redundância - palpáveis.
É possível que, para os grandes da literatura, este seja um tema considerado pobre, ou menor. Tanto já se falou a respeito de mãos, seja da mãe, da amante, do trabalhador, do escultor, que fica difícil um novo ângulo para visualizá-las.
Mas tente, ao menos uma vez, fechar os olhos e deixar levar-se pelas mãos. E, aqui, não é no sentido literal. É físico, mesmo. Primeiro, feche os olhos. Respire fundo. Feche e abra as mãos, muitas vezes.
Bem, é o momento em que se abrem dois caminhos: ou você faz a experiência sozinho, ou estará acompanhado (óbvio, não é?).
Primeiro, afirmo que, em qualquer situação, não se arrependerá. As mãos, soltas no ar, são capazes de reger, chamar, xingar, dar adeus, conterem uma lágrima, esconder um rosto.
Mas tem o outro lado. Se, então, você tiver parceria, a experiência é ainda mais rica. Explorar um corpo é como redescobrir sensações.Você não vê, mas faz, quase, um processo místico, porque vai além. Tem um frenesi em cada linha que explora. Sente-se estimulado pelas emoções que são, gradativamente, despertadas.
E se suas mãos, ao percorrer um rosto, encontrarem duas lágrimas, despertarão em seu corpo frêmitos de um impulso indomável.
A necessidade, pura e simples, de se dar e receber transformará um momento em eternidade. E a eternidade não terá graça se não for composta de momentos em que se possam utilizar as mãos.

sábado, 24 de março de 2012

Um banho de chuva


Do meu livro "Remendos e Arranjos"
Os primeiros pingos da chuva começaram a marcar seu ritmo no telhado. Logo, pequenos filetes começaram a rendar a cortina que esconderia o pátio. No primeiro trovão, o Aprendiz encolheu-se e arregalou os olhos. No segundo, correu para os braços do Mestre, que sentiu contra seu peito o pequeno coração pulsando assustado.
Esperou que ele se acalmasse e perguntou:
- Você não quer tomar um banho de chuva?
- Não, Mestre, eu tenho medo!
- Você tem medo da chuva?
- Não, Mestre, tenho medo do trovão!
- E você sabe onde está o trovão?
- Onde, Mestre?
- Muito, muito longe.
- E como é que o senhor sabe?
- Enquanto o raio não estiver perto, o trovão também não estará.
- Mesmo assim, Mestre, eu tenho medo.
- Mas você gosta do banho de chuva?
Um sorriso maroto.
- Claro. Claro que gosto.
- Então vamos tomar um.
- O senhor vai comigo?
- Vou até a área. Tire a sua capa. A roupa íntima será suficiente.
Despiu-se e segurou a mão do Mestre como uma garra. Ao chegar à área, os primeiros pingos que refrescaram seu corpo também iam libertando seu espírito do medo. Em poucos instantes, brincava no pátio do Mosteiro, correndo de um lado para o outro, pulando nas poças d’água, erguendo a cabeça e deixando a chuva massagear seu rosto, esgueirando-se embaixo dos telhados.
Quando voltou para junto do Mestre estava exausto. Mas feliz.
- Mestre, porque é que a gente tem medo?
- O medo vem daquilo que não conhecemos, ou que não conseguimos controlar. Quando sabemos o que é, já não há porque ter medo.
- Então eu posso tomar outro banho de chuva?
- Só quando você descobrir porque se deve olhar nos olhos de uma criança.
- Mas eu sou criança, Mestre, e não confio o suficiente no senhor?
- Como assim?
- Ora, se eu devo olhar nos olhos de uma criança, o quê é que o senhor encontra quando olha nos meus?
Estava começando a ficar difícil lidar com aquele aprendiz. Ele chegara num tempo em que não se limitava ao óbvio e começava a percorrer o caminho do conhecimento. Sinal de tormenta no horizonte. Mas que depois, em combinação com o sol deixasse surgir um arco-íris novamente.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Implodindo pelo voto


A classe média brasileira – renda familiar a partir de dois salários mínimos e meio – vem aumentando, chegando, hoje, a 54% da população. Notícia interessante, quando se sabe de tantas desigualdades nacionais e regionais, especialmente se olharmos para a questão da oferta de educação, ou à discriminação pela cor, raça ou sexo.
Mas o ganho é grande. Tenho ouvido pessoas que conseguem, por exemplo, comer mais e melhor, porque podem, até, se dar a alguns “luxos”, como por exemplo, colocar iogurte na cesta básica.
Por outro lado, manchete de hoje diz que o governo federal está preocupado com o endividamento do país.  Para quem tem olhar atento sobre o que está acontecendo, isto não é nenhuma novidade. Infelizmente, temos no Brasil uma máquina pública que se autoconsome: nossos impostos vão para o gasto com o funcionalismo público e cargos comissionados, mas não vão para a qualificação de serviços ou a ampliação de investimentos.
De todos os impostos que gastamos para alimentar esta máquina, o que temos de retorno é pífio, quase nada. Não dá para se enganar e o chavão é verdadeiro: temos impostos de primeiro mundo e serviços de quarto mundo.
No frigir dos ovos, vai ser esta nova classe média, espera-se, que, mais consciente, pode fazer a diferença nas próximas eleições. Infelizmente, o que temos de máquina pública deveria ser implodida, em todos os níveis, e recomeçar de novo. Pena que isto não é possível. Mas, quem sabe, começando pelas próximas eleições municipais, em outubro, possamos escolher não aqueles que prometem ou que fazem obras nos últimos três a cinco meses (período que dura a memória do eleitor), mas sim quem tenha, além de ficha limpa, histórico comprovado de serviço ao bem público.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Down e seus anjos sem asas

O dia 21 de março marca a lembrança dos portadores da Síndrome de de Down. Jovens e adultos de diversos programas do município de Pelotas fizeram, ontem, no calçadão da rua Andrade Neves, uma caminhada para conscientizar as pessoas de que eles também têm direito a um espaço na sociedade.
Observando-os, sempre me encanto com o jeito como superam obstáculos não tanto por jogadas inteligentes, mas pela capacidade de darem carinho. Não foi nem um nem dois, mas muitos os casos em que pais ou cuidadores deram como depoimento que, depois que os outros filhos partiram para construir a própria vida, restou-lhes o consolo de um filho/a carinhoso e companheiro pelo resto de suas vidas.
Pois é exatamente aí que centro minha atenção: jovens que conseguiram vencer etapas da vida para poderem viver com dignidade tiveram o acompanhamento em tempo integral de pais, cuidadores e educadores. Estes são autênticos anjos sem asas que dedicam suas vidas para auxiliar alguém a viver melhor.
Aqueles que rejeitam ou não reconhecem a existência do Down, vivem amargurados porque não souberam reconhecer uma deficiência e procurar conviver com ela buscando o melhor que estes seres podem dar. São exemplos preciosos como do jogador Romário, que teve uma filha com a síndrome e não só fez questão de tornar público, mas também lutar por ela e pelos outros que seguem o mesmo destino.
Estes são heróis do dia a dia. Infelizmente, para eles não há monumentos físicos nas praças e parques, mas uma mão estendida num momento de dor, um olhar carente quando estão de partida, um afago carinhoso ao vencer pequenos entraves, compensa cada segundo investido e transforma tudo o que foi expectativa, em carinhosa e terna lembrança.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Um resto de passado


Limito-me à solidão do horizonte.
Nas brumas levantadas pelo tempo,
Já não há mais andantes ou viajantes.
Apenas o silêncio cortado pelo vento,
Num zunido macabro em que a vida
Dobra-se diante da iminência do fim.

Fechar os olhos é redobrar a sensação
De que resta pouco, muito pouco.
Respirar fundo traz os cheiros que
O passado não consegue apagar.
Mas já não há sentido nos cheiros,
Se também não há a presença de quem se fez saudade.

Fechar a porta é afastar-me do Mundo.
Quedo-me na poltrona que embala
Os resquícios da vida que se esvaem.
Não bebo mais do elixir da vida,
Meu alimento é a lembrança,
Dos muitos risos, toques e carinhos
Que se esfumaçaram com o passar do tempo.

terça-feira, 20 de março de 2012

O Lucas estuda Filosofia


Papo de final de semana. Almoço com música, bons amigos, atualizando fofocas, trocando as novas, vendo quem vem, quem vai, pensando em tempo de aposentadoria... Papos absolutamente normais quando conhecidos se reencontram e o grande lance é jogar conversa fora.
Mas vai daqui, volta dali e o Lucas - filho da Gelci e do Darci - que recentemente esteve no quartel, conta que está estudando Filosofia. Alguns olhares de estranhamento, alguns sem saberem bem o que é isto, mas eu, confesso, fiquei surpreso.
Embora meu afilhado Toninho negue a influência - por ser tio do Lucas e irmão da Gelci, um bom professor hoje na Bahia - claro que das conversas em casa, naquele clima bem descontraído entre uma cuíca e um pandeiro, passando por um teclado e um violão, o garoto foi bebendo das boas influências.
Até pouco tempo atrás, Filosofia era feita por seminaristas, como requisito para depois fazerem Teologia, ou por desocupados. No entanto, a disciplina que tem por razão questionar, hoje, provoca muita gente nova, que sente a necessidade de encontrar algo mais do que apenas uma profissão.
Uma peça de televisão dizia que, o que move o mundo não são as respostas, mas sim as perguntas. Pois é isto que faz a Filosofia, tem os questionamentos, desde os mais antigos: “quem somos, de onde viemos, para onde vamos?”, até as novas: “nossa relação com a Natureza, novas relações sociais, a eterna busca por Deus, com religião ou fora delas”.
Embora Filosofia habilite para o exercício do magistério (com a obrigação da sua inserção em certos níveis), em muitos casos não é este o interesse: para compreender o que nos realiza, precisamos ter uma visão de conjunto, que as diversas habilitações não nos dão.
Este novo “homem” que deseja se conhecer está mais próximo de ser a solução do que problema. Alguém que olha o Mundo como parceiro, não faz dele uma fonte inesgotável de satisfação, mas olha o melhor jeito de fazer com que o sonho utópico se construa: colocar no bonde da felicidade, uma Humanidade que vê a festa passar, enquanto para ela restam apenas os restos que são jogados pelas janelas.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Atendimento domiciliar

Pelotas vai ser pioneira no atendimento de saúde em nível de domicílio. O trabalho não é novo, no município. Fui testemunha de que um vizinho foi atendido durante o final de sua vida, com um câncer, por uma equipe do Programa de Internação Domiciliar, que se desdobrava em dar um atendimento completo e qualificado, tanto para o paciente, quanto para a família.
A ampliação do programa, agora, contempla também os casos de câncer, mas vai além, pois deverá atender outras doenças, assim como pessoas em situação de debilidade, como os idosos, muitas vezes impedidos de locomoção, mas necessitados de atendimento.
Durante o período que viveu este nosso vizinho, vivíamos um caso parecido com meu pai: ambos partiram em período muito próximo. Embora tivéssemos um plano de saúde, confesso que, em muitos momentos, senti que a nossa cobertura era bem mais carente: o atendimento domiciliar que recebíamos era sempre um tiro no escuro, dependia de que as equipes considerassem que o caso era de necessidade, para não haver reembolso, em momento onde o bolso já estava quase furado.
A ideia de ampliação destes atendimentos é salutar. Melhor ainda se, efetivamente, vier a ser universal, não importando se é acompanhado pela saúde pública ou particular, mas levando em consideração a necessidade do cidadão que, naquele momento, está carente e necessitado de um serviço completo, neste caso, contemplando o atendimento médico, de enfermagem, serviço social e psicológico.

Este é um processo que precisa evoluir. Nossas carências são grandes, mas é preciso que se identifique e acompanhe pessoas com debilidades físicas, assim como seus acompanhantes. Quem já passou por esta experiência sabe que é um momento difícil, capaz de gerar angústias e ansiedade naqueles que desejam o melhor para o seu paciente ou idoso. Ninguém quer regalia, apenas o direito de viver e fazer viver com decência aqueles que lutaram uma vida inteira e merecem terminar sua vida com dignidade.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Um gosto de saudade

Abro o armário de meus sonhos:
Desfilam minhas tristezas,
Afago minhas carências,
Contemplo minhas lembranças.

Cada um deles se desfez como se o tempo
tivesse corroído seu tecido
levando um pouco de sua cor
e deixando espaços para os remendos
Que só a vida sabe fazer.

No fio do tempo, há rostos
dos quais já não tenho todos os detalhes.
No ajuste com a realidade,
há o sentimento de que tive ganhos,
mas também as perdas que deixam um gosto de saudade.

domingo, 11 de março de 2012

Aprendendo a perder


Do meu livro Remendos e Arranjos.
Meu pai podou um pé de manjericão, que sobrevivia, garboso, no fundo do pátio. Como num lamento dolorido, seu perfume expandiu-se, entrou pela sacada e veio morrer ao meu lado, numa súplica angustiada pela vida.
Tenho dificuldade de entender o processo da natureza em que, ao mesmo tempo, lamenta uma poda e, com a mesma, se renova e se prepara para novos talos, novas folhas, novas flores.
O perfume, que encantou muitas das minhas noites, é o mesmo que, agora, agride, incapaz (ou serei eu que não o entendo?) de aceitar podar uma parte de si mesmo.
Sinto-me semelhante ao manjericão, quando me apego a cada uma das coisas que construí, cada um dos seres que amei, cada espaço da vida que conquistei.
A incapacidade de aceitar a poda atrofia a capacidade regenerativa de, a cada perda, buscar o novo, renascer do sofrimento.
Sofre-se mais quando a vida nos fecha um caminho, nos priva da convivência de alguém, ou quando um arbusto perde um galho?
As perdas acabam deixando feridas. Mesmo cicatrizadas, detém a história de um instante insubstituível.
São as mesmas perdas que nos levam a sorrir, com o passar do tempo, de forma diferente. Sorrimos, com o peso de quem já carrega seus mortos “no lado esquerdo do peito”, como dizia Mário Quintana. Estamos mais cansados, e precisamos aceitar que, a não podar, atrofiam-se os galhos e o fim chega mais cedo.

sábado, 10 de março de 2012

Desbravando horizontes


Quarta história da saga O Aprendiz e o Mestre, do meu livro Remendos e Arranjos.

O garoto estava na estrada, diante do mosteiro. E a estrada levava às montanhas, onde o sol deveria desaparecer. Avançava um pouco e parava. Mais um pouco. Um pouco mais. Cansou e voltou-se para o Mestre.
- Mestre, porque não consigo alcançar o horizonte?
Um sorriso e um pedido como resposta:
- Podes esperar mais um pouco?
- Claro.
As horas iam passando e o garoto tornou-se impaciente.
- Quanto tempo mais?
Sem medir o tempo, o Mestre estimulou:
- Só mais um pouco.
Foi quando a tarde chegou próxima da noite e executou o ritual do pôr de sol. O Mestre segurou a mão do garoto e pediu que ele, em silêncio, acompanhasse a trajetória do sol. Já na penumbra, o menino perguntou baixinho:
- E se eu caminhasse, agora, poderia ver de novo o pôr de sol?
O Mestre lembrou de um Pequeno Príncipe que morava num pequeno planeta que, quando estava triste, somente arrastava sua cadeira para trás e via quantas vezes quisesse o sol se pôr.
- É difícil, mas não é necessário.
- Porque?
- Porque o que você quer mesmo é alcançar o horizonte.
- E se eu chegar ao horizonte, poderei ver o sol se por quantas vezes quiser?
- Não. Mas verá que alcançar o horizonte fará com que ele fique sem graça.
- Não entendi.
- O horizonte só tem sentido se, no seu dia a dia, você o jogar para mais longe.
- Como assim?
- É como se você quisesse muito alguma coisa. Quando a consegue, sente que já quer algo mais. E o algo mais é o horizonte. Ele sempre está ao alcance de suas mãos. Mas, ao mesmo tempo, tão longe de você.
- Ah, bom. Então eu não devo caminhar pela estrada para encontrar o horizonte?
- Você deve caminhar pela estrada, não para encontrar o horizonte, mas para construir o seu horizonte.
- Entendi. Então é como o professor que ajuda o aluno a conhecer, pois mostra o que já viu no horizonte e o aprendiz pode ver ainda mais longe se for capaz de encontrar os seus próprios caminhos?
No silêncio da noite em que as estrelas luziam no firmamento, os olhos do Mestre também se acenderam.
- Entendeu, mesmo. Você poderá ser um bom mestre, algum dia. Um bom mestre. Agora, só precisa gostar de um banho de chuva.
- Para quê? Eu nem gosto de banhos!!!

quinta-feira, 8 de março de 2012

Encruzilhada

O horizonte da ponte
é a estrada que marca o infinito
e o rio que busca pelo mar.

Ambos seguem seus destinos,
nos veículos que correm em busca de um lugar para o aconchego,
ou das embarcações que perseguem o Sol.

Somente eu fico como referência:
Não ando pela estrada que me encanta, mas me amedronta,
nem pelo rio, que poderia ser minha sepultura.

Toco a vida, que luta por encontrar seu caminho,
mas também pela sedução do mar
na doçura do desconhecido que pode me acolher
e dar sentido a todas as minhas angústias.

terça-feira, 6 de março de 2012

Uma saudade e um chimarrão

Voltava da casa de amigos, no sábado, em torno das 19 horas, quando lembrei de passar na casa de meu primo-irmão Valdemar (sua mãe era irmã de meu pai, seu pai, irmão de minha mãe) para tomar uma chimarrão. Estava sozinho, em casa, cuidando da sua sogra, com mais de 90 anos. No final da tarde, sentamos para conversar e foram bons momentos de lembranças muito especiais e carinhosas.
Na verdade, o Valdemar estava muito saudosista, lembrando do carinho que tinha por minha mãe, com a qual se criou, e das arteirices aprontadas por meu pai, que, muito brincalhão, costumava acrescentar pimenta, ou esconder a sua comida. Por mais de uma hora, trouxe as recordações mais remotas, mas também o fato de que nos acompanhou par e passo quando da morte do pai.
Se já tinha um carinho grande por ele e a Neli, sua esposa, pelas trocas de mudas de flores e verdes, o jeito como nos tratou em momentos difíceis fez com que nos aproximássemos ainda mais.
Mas este chimarrão, infelizmente, foi o último. À noite, sua família chegou e ele brincou que tinha recebido uma visita ilustre mas, na manhã seguinte, um ataque fulminante do coração acabou com uma história que não chegou aos 70 anos.
Tenho bem presente cada um dos detalhes de nossa conversa e a sua despedida carinhosa dizendo que na próxima semana viria visitar minha mãe. Agora, vamos tê-lo presente de uma forma diferente: em nossas lembranças, nas nossas orações e na certeza de que, chegando lá em cima, o pai estava no portão, olhou para ele e perguntou: "o que tu estás fazendo por aqui?" Realmente, foi cedo, Valdemar, esta é uma das ausências que são doloridas e que nos deixam com o peito mais carregado de saudade.

segunda-feira, 5 de março de 2012

O beijo da morte

Assisti a um documentário sobre jovens que voam planando sem utilizar equipamentos convencionais, mas com um tipo de roupa, que os transformam em autênticos "morcegos humanos". A brincadeira é cara, mas, para dar mais adrenalina, o pessoal faz rasante sobre pedras, vendo, no perigo, um estimulante forte e, segundo dizem, capaz de deixar qualquer um satisfeito.
Como sempre, a grande maioria é do sexo masculino, que coloca a vida em risco numa brincadeira que banaliza a própria existência. Mas não existe sozinho: vem junto com os "pegas" nas grandes avenidas, na utilização excessiva do álcool, na necessidade de transformar a maior parte das possibilidades de entretenimento em competição que provem a macheza de cada um.
O documentário mostrava um dos rapazes que, literalmente, se espatifou contra uma pedra. Não perdeu a vida, mas ficou seriamente lesionado, filmado por todos os ângulos e tendo a prova de que chegou ao limite, que, possivelmente, nem um outro poderia chegar.
Carinhosamente, chamam a isto de "beijo da morte". Não chegaram a ser possuídos, mas perto, levaram, ao menos um selinho da morte, provocaram-na, deixaram aquele gosto de que estiveram à beira do desconhecido.
Claro que não vou torcer pelas pedras, mas não tenho nenhuma simpatia por quem se coloca em situação de risco, gratuitamente. Já é tão difícil preservar a vida ou auxiliar pessoas a manterem um mínimo de dignidade para sobreviver. Então, quem não sabe dar valor a um bem tão precioso não merece respeito ou solidariedade, quando o beijo se transforma em algo mais. Beijos são bons quando demonstram carinho, aconchego, não têm graça alguma quando estão próximos a se transformar no final de uma vida.

domingo, 4 de março de 2012

Herança dos deuses


Crônica publicada no meu livro Remendos e Arranjos
Quando os deuses espalharam a chama do saber, destilaram uma fagulha privilegiada para a poesia. E lançaram uma maldição: os mortais não poderiam vulgarizar este dom. O homem teria que merecer para ter acesso ao mundo que transcende a linguagem, onde significado e símbolo se confundem.
Mas em sua curiosidade infinita, o homem esqueceu da maldição e lançou-se, desenfreadamente, a tentar captar o seu significado. Deixou-se tentar pela sonoridade das palavras, pela cadência que se estabelece quando, lendo um poema, apreendemos um universo que pode ser distinto do criado pelo autor. E julgou poder transformar tudo o que pensava em poesia.
Esqueceu que este é o momento em que o homem remexe nas sombras lançadas sobre as paredes das cavernas e, mesmo não chegando à luz que lhe dá sentido, alcança a imagem e consegue, timidamente, se apropriar de seu significado. Perigosamente, próximo ao sentido. Consequentemente, próximo aos deuses.
A cada poema escrito, a cada imagem transposta, há um sentimento de frustração a ser assimilado, partilhado com o homem primitivo que, na noite, contempla as estrelas e tem medo do desconhecido, de uivos, gemidos, sombras que não se concretizam.
Para o homem, nas palavras, se revelam imagens que emergem quando se constrói um verso, socializam um sentimento que, a ser guardado, perde a razão de ser.
Esta é uma parte da maldição. Nunca poderemos estar plenamente realizados ao dar forma ao que é pura expectativa. Por mais que o autor exprima o que sente, sempre haverá algo a ser dito, deixando um quê de finitude - os deuses que se deleitam em nossa carência, brincando com nossos arroubos de estender as mãos, em direção ao Olimpo.
Ao acordar, a mão ainda permanece estendida e, quase sempre, uma lágrima nos reconduz à mera condição de mortais.

sábado, 3 de março de 2012

Ser pai

Terceira história da série O Aprendiz e o Mestre, no meu livro Remendos e Arranjos.
O Aprendiz tinha um jeito todo peculiar de fazer saber, ao Mestre, que ele estava com alguma preocupação. Passava a caminhar à volta da mesa onde seu orientador trabalhava, em silêncio, com a cabeça baixa e as mãos atrás das costas.
Até que, num determinado momento, o Mestre parasse com seu trabalho e perguntasse:
- Pequeno menino, o que o está preocupando?
Sempre fazia um certo charme.
- Nada, Mestre, nada que o deva preocupar.
E a insistência.
- Fale, pequeno menino. Algo o preocupa. Sei que você gostaria de perguntar.
Parou de caminhar, colocou-se em frente do Mestre e, mais do que dizer, sussurrou:
- Mestre, como é ter um pai?
Embora aguardasse toda e qualquer pergunta, para esta, especificamente, o Mestre não estava preparado. Levou em consideração que o menino fora abandonado na porta do Mosteiro e nunca soubera o que era ter uma família.
- Porque esta preocupação, pequeno menino?
- É que está chegando o Dia dos Pais e as demais crianças falam muito do que vão fazer para eles. É verdade que eu não tenho um?
Já sabia que abrandar a verdade nunca dava certo com aquele garoto. Preferiu ser direto.
- É verdade. Você não tem um pai como os demais meninos.
- E como é ter um pai?
Embora se sentindo incomodado, sabia que tinha que dizer alguma coisa.
- Pequeno menino, ter um pai é uma bênção. Mas também é uma bênção ter um filho. O pai acorda no meio da noite e procura a mãozinha do filho, sua respiração. Quando ele cresce, ouve seus balbucios, acompanha seus primeiros passos desengonçados. Quando se torna jovem, é o ombro amigo aonde vai se acomodar quando precisa. E sempre, mas sempre mesmo, é um olhar cúmplice e amigo com o qual pode contar. Infelizmente, você não tem um pai.
Os olhos do menino estavam marejados de lágrimas. Contornou a mesa, apoiou sua cabeça no peito do Mestre e sussurrou novamente:
- Engano seu, Mestre querido, tenho no senhor o melhor dos pais. O senhor faz tudo isto comigo!
A cabeça do menino pendida sobre seu peito impedia de ver que as lágrimas também corriam pelo rosto do ancião. Era a revelação de Deus que lhe faltava: sempre se sentira estéril por não ter tido filhos. E Deus colocara em suas mãos muitos, mas muitos filhos para criar. Agora sabia que fora capaz de fazer cada uma daquelas coisas que sempre pregara para os outros. Murmurou uma oração e beijou a cabeça do pequeno menino. Sentia-se pai. E pai tem que fazer a vida continuar, alimentando a esperança do filho, carne ou não do seu ser, que Deus colocara em suas mãos.
Mas era preciso desbravar horizontes. E mostrar o caminho para aqueles aprendizes que começavam a chegar para a oração.

quinta-feira, 1 de março de 2012

O tempo dos amores

Entreabro a porta.
Pelo pouco espaço, consigo ver o canteiro
de Onze Horas sendo acariciado
pela brisa do fim de tarde.
Já está quase na hora de se recolherem.
Vão fechar suas delicadas pétalas,
até que o sol as convide a, novamente,
entrarem na dança da vida.
Seguem o tempo da Natureza,
que se delicia em nos dizer que nos angustiamos demais,
quando o sentido da vida está em
encontrar o tempo das flores, o tempo da vida,
o tempo dos amores.