segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Gestos de carinho

Possivelmente você não conhece o Ceron - Centro de Radioterapia e Oncologia. Pessoas que não precisaram atendimento para câncer desconhecem a atividade de uma empresa da área da saúde que, na região sul do Estado, presta serviços, especialmente nas áreas da quimioterapia e radioterapia. A Santa Casa de Pelotas é uma das principais clientes e atrasou seus pagamentos. Consequência: suspensão de atividades.
É uma briga de gente grande em que, infelizmente, as explicações técnicas e financeiras não resolvem o problema de quem não têm alternativa e depende do tratamento para sobreviver. Pode parecer exagero, mas numa entrevista de televisão, uma senhora era taxativa: "estão colocando mais um prego no nosso caixão!"
Tive experiência com esta instituição quando meu pai fez radioterapia. Nosso tratamento era particular, mas fizemos relação com pessoas que vinham de municípios vizinhos, através de ambulâncias, com o mesmo atendimento.
Na recepção acompanhei gestos de puro carinho: menina em tratamento, sentava ao lado da mãe, com bolsa de maquiagem. Enquanto esperava, usava espelho para retocar o rosto, se voltava para a senhora, que baixava a revista, e sorria. A filha retomava seu "trabalho", a mãe esquecia a publicação e ficava embevecida contemplando a pequena maquiadora.
O outro caso era de um rapaz que levava a mãe idosa. Ao sentar para a espera, a senhora dormitava. Ele ficava ao lado e segurava sua mão. Quando despertava, olhava para as mãos, tendo a certeza de que continuava amparada, levantava os olhos e fitava confiante o filho. Ambos sorriam e, gradativamente, a mãe retomava a sonolência.
As lembranças voltaram por dois motivos: leitura das notícias a respeito da suspensão do serviço essencial, pois lida com a sobrevivência das pessoas. E do que fez a Leka - junto com a Gilse, responsável pelo nosso almoço - ao escrever meu nome no marmitex que busquei - como todos os dias - mas, em dois, de forma especial, por flores que desenhou: uma tulipa e uma gérbera.
Em comum? um gesto de carinho. Administradores e homens públicos também precisam de quem lhes faça as refeições, têm filhos, mães idosas... Precisam aprender a balizar decisões que impactam na vida das pessoas também pelos números. Mas não só.
Uma canção diz: "fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem flores." Que pode ser um desenho, uma maquiagem, a certeza de ter alguém ao lado. A certeza de não estar só. Confirma o que os antigos diziam de que, ao receber energias positivas, o Universo conspira a nosso favor. É preciso sentir e, de alguma forma, retribuir!

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Cuidar: o desafio de conviver

Num texto recente, falei sobre minha formação e meu "pós-doutorado" em envelhecimento. Foi o suficiente para que pessoas compartilhassem experiências como cuidadoras de doentes e idosos, também de pessoas especiais. Até com reclamações de que exagerei ao dizer que a "sociedade não sabe conviver com a doença e a velhice".
Reafirmo o que disse como regra geral. Mas, é claro, existem exceções. Muitas delas lindas e comoventes, sendo exatamente isto: exceções. Portanto, confirmam a regra.
O bom é que diversas instituições de ensino estão se voltando para esta área, focando não apenas na pessoa cuidada, mas também no cuidador. O fato de uma doença se prolongar, alguém durar muito tempo, a coexistência com um especial durante uma vida, em muitos casos é a motivação para o afastamento do convívio social, indispensável para a sanidade mental de qualquer um dos dois.
No caso da pessoa cuidada, muito já se falou a respeito. Sobre quem cuida a preocupação é menor e cada vez que se encontra uma delas a tendência é julgar ser apenas apêndice do processo. Espaços de discussão abrem a possibilidade de questionar não apenas como se cuida, mas também de quem cuida do cuidador.
Por experiência própria - e do muito que escuto a respeito - há alguns elementos importantes a fim de preservar a integridade física, mental e espiritual de ambos. Em primeiro lugar, a consciência de que ninguém cuida bem se não for capaz de se cuidar. Parece elementar, mas tanto profissionais, quanto familiares e amigos esquecem de que também se desgastam nesta relação e, ao não recarregar energias, vão se tornando amargos e desiludidos.
Depois, é preciso não "coisificar" quem é cuidado, para não se cair na tentação de pensar que a pessoa é "propriedade" de quem cuida. Fundamental é respeitar, manter e fazer aflorar a individualidade e a personalidade de quem, por algum motivo, se tornou dependente. Certamente, um dos maiores desafios desta relação.
Um provérbio citado por judeus russos diz: "quando um homem é feliz, um dia vale por um ano". Boa receita para quem lida com pessoas em situação de fragilidade. Possivelmente apenas um momento em que a mão acaricia uma pele enrugada, olhos demonstrem prazer e satisfação, o esboço de um sorriso, faça valer a pena dedicar tempo a quem precisa ser cuidado. A satisfação de quem cuida passa pela certeza de que fez o melhor e que está em paz com a própria consciência.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Envelhecer em silêncio

Um dos equívocos de quem lida esporadicamente com idosos é achar que fazer companhia equivale a manter a pessoa ocupada com conversas ou atividades. O silêncio do idoso é o jeito introspectivo de recarregar suas próprias energias e dizer que precisa de presenças amigas, não de quem se angustia quando há vazios de palavras. Muitas vezes quer apena sentar com alguém para observar o movimento da rua.
Recentemente, disse que depois de fazer graduação, especialização e mestrado, tinha pulado o doutorado para fazer um PHD em envelhecimento. Acompanhei meu pai até falecer aos 85 anos e, agora, minha mãe, chegando aos 92.
O aprendizado se dá a cada dia. Não há receitas prontas. Mesmo as receitas do médico passam pelo crivo do possível: medicação que não surte o efeito esperado, alimentação que não cai bem, atividade que ontem era prazerosa mas hoje já não é.
Entre ouvir, entender e contextualizar a resposta, há uma carga de história a ser respeitada, assim como a necessidade de que o idoso saiba que é, ainda, protagonista da própria vida. Que não é apenas um resto de gente com dificuldade de andar ou numa cadeira de rodas, sem vontade própria.
Engraçado quando as pessoas perdem a noção e atropelam o idoso – respondendo ou falando no lugar – ou perguntam a outros o que deveriam questionar diretamente. Quando querem saber: “ela tá bem?”, digo que é velha, mas não é surda e nem gagá. Portanto, em plenas condições de responder.
A sociedade não sabe conviver com a doença e a velhice. Não conheço aqueles que valorizam o idoso por sua experiência e sabedoria. O que se vê é - ao se prolongar uma doença ou o idoso durar mais - menos pessoas, amigos e familiares, ficarem à sua volta.
Ao se precisar do controle remoto para zapear, pois não se pode perder tempo, a doença e a velhice se transformam no tempo da inutilidade. Reciclar este pensamento exige desprendimento e aprendizado de solidariedade que não está em manual de relações humanas.
O direito de envelhecer em silêncio incomoda, mas dá a certeza de que foram momentos únicos: a natureza oferece a chance àquele que é cuidado de saber efetivamente quem o amou. Ao cuidador, a descoberta da própria finitude. De que, no dia a dia, alimentar a esperança de um idoso significa não abrir mão de quem, hoje fragilizado, um dia ajudou a dar sentido às nossas próprias vidas.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Com o cheiro de família

Pouco antes do golpe de 1964, dava–se como certas eleições presidenciais em 1965. Um dos candidatos era Brizola, que os adversários diziam não poder entrar na disputa pois era cunhado do então presidente Jango. Seus partidários, então, cunharam uma preciosidade de slogan: “cunhado não é parente, Brizola pra presidente”!
Ao terminar meu último texto citava a seguinte frase: "ter um lugar pra ir é lar. Ter alguém para amar é família. Ter os dois é benção." Referência ao que se idealiza como família, mas também ouvi a afirmação carregada de pesar: "parentes são pessoas com vínculos sanguíneos, que obrigatoriamente não constituem "família".
Completava: parentes, muitas vezes, convivem enquanto há interesses ou um elemento comum. Família são laços que se criam em que há uma necessidade mútua, um sentimento de que, na ausência, cada um perde um pouco.
Se olhar apenas no dicionário, não há muito sentido, mas uma observação superficial do que se vê nas casas é possível identificar que, em muitos casos, é apenas um abrigo temporário para um grupo de convivência que, obrigatoriamente, não vai ter o sentimento de pertença e corresponsabilidade.
Um dos elementos que aparece quando há uma estrutura bem definida é a de um agregador, que, na maior parte, é um dos pais ou um irmão mais velho. Quando se ausentam, mesmo morando na mesma cidade, o reencontro torna-se difícil. Irmãos afirmam que somente voltaram a se ver em visitas de hospitais ou velórios e enterros.
Semana passada, bateu o saudosismo motivado por cheiros familiares: fritura lembrando roda de carreta e café com leite; parreira impregnando a calçada com o perfume da uva madura e ar úmido; e, numa noite, finalmente, a Dama da Noite carregou minúsculas flores e tomou conta da quadra com saboroso perfume de mel.
Família não é a racionalização de uma fórmula. Há sentidos envolvidos, elementos que fizeram a história de cada um, relações bem ou mal resolvidos, entre eles os cheiros da infância e da juventude. Mostrando que o melhor ainda é viver possíveis momentos de felicidade.
Família é lugar para cuidar e ser cuidado. Omissões geram ausências e sofrimentos. Com os familiares ficam pelo caminho amigos e a sensação de que podia ter sido diferente. Não são apenas os laços de sangue que formam uma família, mas um grupo de pessoas que nos conhece. No baú dos primeiros anos ficam as marcas que nos fazem atravessar a vida em busca da própria identidade.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Dilemas de ano novo

O calendário da Editora Paulinas de 2017 inicia citando um provérbio árabe: "deixa o teu coração seguir à tua frente e procura alcançá-lo." Boa receita para quem está em dúvida com relação ao que possa acontecer, afinal, quando as racionalizações mostram dificuldade em atender aos nossos propósitos, ainda podemos contar com um horizonte mais amplo, onde se valoriza sentimentos, respeito e empatia.
Por tudo o que acompanhamos pelos meios de comunicação, 2016 não deve deixar saudade - já vai tarde. Não é bem assim. Para algumas pessoas - uma delas até pediu pelas redes sociais que houvesse um 2016/2, mesmo sabendo das dificuldades que o país enfrenta - há componentes pessoais que intensificam os sentimentos de melhor ou pior. Recém chegados à família detonam tietagem explícita por amigos e conhecidos. E as perdas, especialmente de familiares, ampliam os laços de solidariedade.
Seu Manoel, meu pai, quando alguns afoitos colocavam na roda conversas sobre fim do mundo, era pragmático: "o Mundo acaba para quem morre". Sempre ressaltava que o melhor era viver. Não dizia, mas ficava implícito aquilo que sempre fez muito bem: para viver - e viver bem - há regras básicas a serem repassadas, especialmente com os dilemas de ano novo: cuidar de si mesmo e daqueles que estão à nossa volta.
Todos sabemos o que fazer para cuidar da saúde física, emocional e espiritual. Infelizmente, no dia a dia, esquecemos de coisas óbvias. O mandamento básico, para os cristãos, é: "amar a Deus sobre todas as coisas. E ao próximo como a si mesmo". Aí está uma síntese capaz de realizar plenamente uma pessoa. Por incrível que pareça, muitos procuram fórmulas de atender a espiritualidade ("amar a Deus"), ser solidário ("e ao próximo...") e esquecem que sem a última (..."como a si mesmo"), as duas anteriores se tornam difíceis, para não dizer impossíveis.
Os maiores desafios não aparecem com dilemas religiosos ou políticos, mas bem mais próximo: família, vizinhos, amigos. Todo o amadurecimento parte da consciência de que é mais difícil praticar a justiça - e ser cristão - em casa, na rotina diária, do que discursando sobre mudanças sociais.
Na ânsia por conquistar um espaço físico de vivência - casa - esquecemos que deve ser um lugar para recarregar as baterias para a vida. Afinal, como dizia uma das atrizes do seriado produzido pela National Geographic "Marte", "casa é um objeto inanimado, lar é um sentimento". São valores que, muitas vezes, nos damos conta apenas quando perdemos. Alguém já definiu: "ter um lugar pra ir é lar. Ter alguém para amar é família. Ter os dois é uma benção."