segunda-feira, 26 de junho de 2017

O som que dá asas à imaginação

As pessoas olhavam vitrines. Algumas estavam na praça de alimentação. Outras, acompanhavam crianças nos brinquedos. De repente, um estrondo e um grito. Algo acontecia. A curiosidade foi maior do que a preocupação com a segurança: um rapaz subiu numa cadeira e começou a cantar. Outro o acompanhou de uma mesa onde lia jornal. Juntou-se um terceiro que transitava por ali.
Ao todo, cinco vozes chamaram a atenção ritmando o início da música, fazendo a cadência em bancos, mesas, latões de lixo ou corrimão da escada rolante. Dentre moças passeando, que estavam nas lojas, que faziam limpeza formou-se um grupo de dança em meio à multidão aturdida e encantada que abria espaço para ver e ouvir.
Era um grupo musical alemão que "surge" dentro de um shopping e repete performance como a de uma Orquestra Sinfônica que inicia apresentação no meio da rua a partir de uma moeda que uma garota colocou no chapéu que o trompetista tinha a seus pés. Ou ainda o grupo de dança que se forma na entrada do cais de um porto.
Coloquei-me no lugar das pessoas que andavam pelo shopping, faziam compras nas ruas, passeavam à beira do rio e foram surpreendidas por uma manifestação artística. No início, um susto. Depois, um intervalo nas compras, no cumprimento das tarefas, deixar de lado a agitação e ter o direito a um merecido espaço de sanidade mental.
Devagarinho, deixar o corpo seguir o ritmo. Acalmar o espírito - deixando que se vá a tensão - e sentir que a docilidade do que expressam corpos e instrumentos é um desafio para alimentar a sensibilidade. O momento de parar alguns minutos é a chance de aprender que a vida é muito mais do que apenas passar por um dia. O artista que surge do "nada" provoca a parada necessária para silenciar e encher os olhos com arte.
Música. O que Mandy, cantora de 29 anos, surda desde os 18, em tese, não teria como executar. Apresentou-se num programa de talentos dizendo-se triste porque não lembrava mais da voz do pai! Mas estes desafios a fizeram se valer da técnica e dos demais sentidos - canta sentindo a vibração do som no piso - e superar os obstáculos pois "música é mais do que sons, é emoção... preciso tentar, eu tenho que tentar!".
Em comum? a música, que humaniza e desperta sentimentos adormecidos. O tempo que passa embota nossos sentidos, ficamos meio atordoados. Sem perceber que a diferença entre viver e morrer pode ser, exatamente, ouvir o som que dá asas à imaginação e transcende a realidade em busca do Infinito, única forma de não permitir que morram os sonhos de toda uma vida.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Uma chama travessa

O melhor jeito de saber se as teorias a respeito das relações humanos são coerentes é cuidando de gente. Tudo que elencamos em manuais a respeito do que seja viver na inter-relação com o outro - ou mesmo em grupo - pode ser colocado em dúvida ao precisarmos de algo bem simples como atender as necessidades básicas do próximo.
Muitos sabem da minha formação. Durante muito tempo vivi com um único intuito: cuidar de mim mesmo e, quando necessário, esporadicamente, atender a alguém da família ou de nossas relações.
Não tendo família própria - ajudei a criar meus sobrinhos -  meus espaços sempre foram respeitados e criei minhas manias, que vão das coisas mais simples - me negar à atividade pela manhã, porque julgava, por direito, ser um espaço privado de silêncio. Ao mais complexo, como cuidados com a intimidade e privacidade.
Isto começou a se transformar quando precisei deixar de me preocupar comigo para entender que me coubera a missão ser cuidador. A partir de então, meu dia inicia pensando no que tenho que fazer para atender uma outra pessoa, até o final, quando a revisão se está tudo bem na casa termina por ver se ela já alcançou o sono dos justos.
A primeira medicação é em torno das 7 horas, depois, se tudo que é necessário da farmácia está à disposição das cuidadoras. Providenciar o almoço. Colocar e tirar da cama e do sofá. Acertar as medicações e as refeições, incentivando a que não desista, sabendo que apenas uma colher a mais a fortalece e dá ânimo.
Estou falando de dona França, minha mãe. Que, um dia, pediu que a chamasse de "mãe", direito que lhe cabia, pois a chamava de "dona Francinha". Também pedi a recíproca: cada vez que a acordo na manhã ou na sesta, dou-lhe bom dia ou boa tarde "minha mãe" e ela tem que responder de igual forma, terminando por "meu filho"!
O dia inteiro tem alguma coisa que precisa ser feito em função dela. Especialmente agora que está somente uma casquinha, mais claramente se mostra a energia do seu espírito. Algumas vezes falta-lhe forças para movimentar as mãos e mesmo responder, mas quando seus olhos se abrem, como disse a cuidadora Paula, "brilham".
Na despedida da noite, um anjinho recita o Pai Nosso, que abraça, com ele reza e beija. Recebo a benção de um "boa noite, meu filho". Contemplo seu rosto sereno, ao fechar os olhos: uma chama travessa que brinca com a Eternidade. Viveu intensamente e agora espera da vida o direito de se preparar para seu encontro com Deus. A fé lhe garante que está chegando o momento de, enfim, repousar em paz.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

As três ondas para a maturidade

Um palestrante usou o exemplo da brincadeira à beira de um lago: jogar pedrinhas na superfície. Formam-se ondas mais fortes, próximas, e diminuem conforme aumenta a distância. Lição: com que intensidade o que dizemos chega às pessoas - maior para as mais próximas e algo mais difuso para quem está mais longe.
A discussão no amadurecimento de lideranças diz respeito às etapas para qualificar quem pode estar à frente de atividades comunitárias, para não haver uma guerra de vaidades e, mesmo quem têm maiores dificuldades, possa ser contemplado. No dito popular, já que Deus "não escolhe os capacitados, mas capacita os escolhidos".
No caso das lideranças religiosas, em tese, as etapas são claras, embora, na prática, sempre se encontrem dificuldades, já que lidamos com pessoas. Para isto, não precisamos relativizar valores e referências, mas ter "paciência evangélica" para não cansar de reiniciar, sempre que necessário.
Uso uma imagem semelhante à do palestrante, somente que por outra ótica: não olho para a intensidade com que o discurso chega às pessoas, mas a amplitude como vão percebendo o Mundo que as cerca. São "Três Ondas para a Formação de Liderança Cristã": a oração, a meditação e a reflexão.
Uma boa definição para o primeiro elemento vem do líder hindu Mahatma Gandhi: "orar não é pedir. Orar é a respiração da alma". Inerente à própria fé. Somente pode ser alimentada por momentos introspectivos de encontro com o Divino. Base para as demais etapas e essencial, sobretudo, numa prática religiosa.
A meditação alimenta a religiosidade e torna a pessoa capaz de investir na própria centralidade. Individualmente ou em grupo gera a energia para concretizar o que disse Johnny De Carli: "na oração, fala-se com Deus. Na meditação, ouve-se a Deus".
A reflexão insere a pessoa no contexto das vivências sociais. Vinculada com a capacidade de raciocinar e indagar a respeito do conhecimento do mundo exterior, mas também do nosso estado mental e sensibilidade. Capacita para ser presença cristã na sociedade, pois contextualiza a fé e a religião.
Maturidade talvez não seja - até porque imperfeitos e humanos - alcançar a plenitude nos três planos. É a capacidade de caminhar, de descobrir e, mesmo, de redescobrir. Num texto de tantas citações, encerro com a gaúcha Lya Luft: "a maturidade me permite olhar com menos ilusões, aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranquilidade, querer com mais doçura". Que assim o seja!

segunda-feira, 5 de junho de 2017

A chance de reescrever a história

Laranjal de muitas e boas lembranças. Ao sol da manhã de domingo, o encontro com amigos e conhecidos. Numa destas ocasiões, conversar de passagem com o professor José Luiz Marasco e o seu comentário: "gosto daquilo que contas, assim como da Lica (sua esposa), porque são histórias de vida simples".
Este diálogo me vem à memória quando, nas conversas com formadores de opinião da Igreja Católica, deixo claro que ninguém testemunha ou anuncia se não for a partir de suas origens e da sua realidade. Temos um lugar de onde viemos, onde nos formamos e as influências que moldaram nosso modo de pensar e agir.
Venho do interior de Canguçu, de onde saímos, como dizia meu pai, "deixando a miséria para entrar na pobreza". Na minha infância, convivi com escola e igreja, na periferia de Pelotas - Vila Silveira. Depois fiz meus estudos ligado à igreja Católica. Portanto, como negar que sou de origem do interior e pobre, "vileiro" e pensador cristão católico?
Um dos aspectos da crise de valores no Brasil diz respeito a que nossos políticos se isolaram e desconhecem a realidade do país. Longe das origens e dos reais problemas que afligem a população falam em teoria a respeito de tudo, mas não alcançam a prática de que suas ações e os gastos que geram afetam diretamente a população.
A crise moral e ética parte da negação, já que grande parte deles saiu da pobreza, vem do interior ou periferia, mas, de alguma forma, serviu-se da máquina pública para, em alguns casos, construir fortunas. O "encantamento" do mundo da política retirou a noção de realidade para, seguindo sofismas ideológicos, encontrar "valores" maiores, que abafam consciências, com os fins justificando os meios.
É sintomático que - de praticamente todos os partidos - figuras públicas tentem explicar o inexplicável: confrontem imagens inquestionáveis com desculpas esfarrapadas e pretensas alegações jurídicas. Tristemente sabendo que são eles mesmos fizeram as leis e, nas instâncias superiores, seus escolhidos as aplicam.
Voltar às origens é a chance de reescrever a história. Esquecer o que se fez é impossível. Mas há sempre uma nova página para se escrever um novo começo: conviver com aqueles que ainda estão nos campos e nas colônias; nas ruas esburacadas e poeirentas; precisando do atendimento público pode fazer com que se renegue muito do que se teorizou. Mas mostra que a vida das pessoas continua acontecendo nas ruas e não pede muito, apenas direito de viver como cidadão.