segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Liberdade para voar

O espaço era bem adequado. Em plena avenida dom Joaquim - point de jovens e adultos em tardes de sábado para jogar conversa fora e chimarrão - integrantes da Associação de Pais e Amigos de Jovens e Adultos com Deficiência - APAJAD - realizaram evento para mostrar o quanto a arte faz a cabeça. Expuseram o fruto do seu trabalho: garrafas pet recicladas, transformadas em casas de passarinhos, pintadas e identificadas, com o intuito de que ficassem nas árvores do local.
O poder público municipal não teve sensibilidade para negociar. Negou a colocação ao longo da avenida. Sem, até, uma contra-proposta do tipo: colocamos durante algum tempo, retiramos, depois o pessoal leva para o pátio de suas casas - já pedi a minha. Resultado, quem passou por lá recebeu as casinhas de presente e acompanhou atividades de capoeira.
Nos últimos 40 anos, houve um aumento da expectativa de vida do especial. Deixou a qualidade de "doentinho" para jovem e adulto que pode ocupar o espaço social a que tem direito porque capaz de ser produtivo e cidadão que não merece ser tratados como de segunda categoria. No entanto, as estruturas sociais não se adequaram. Motivo pelo qual, passada uma certa idade, não têm a quem recorrer para ocupação.
Na ausência do estado, entrou a Associação. Pais e responsáveis por jovens e adultos especiais, juntamente com a UFPel, formataram um atendimento que tem alcançado repercussão, havendo o aumento da procura por vagas. Na esteira desta busca, uma certeza: o especial quer o mesmo que todos querem - respeito, aceitação e carinho.
O preconceito ainda existe. Assim como na discriminação de cor, gênero ou religião, segrega o que é diferente. Produzir casas recicláveis para pequenas aves pode ser considerado insignificante. Mas quem viu a postagem das fotos daqueles que participaram do trabalho sabe o que envolve: motivação pessoal, trabalho em grupo, perspectiva de entregar à sociedade o fruto do seu trabalho.
Os organizadores levaram para a avenida um belo pensamento: o direito de sonhar com a liberdade de voar pode não ser apenas um sonho. Os pais (especialmente as mães guerreiras que peitam o Universo para defender seus filhos) sabem que se puderem apenas "andar" já se inscrevem entre as conquistas que marejam olhos.
Valeu a pena o desgaste, abrir mão da própria vida para usufruir da atenção e carinho que eles sabem dar tão bem, porque comprovam que o preconceito é a maior das deficiências que uma pessoa pode ter. E deste mal, certamente, eles estão livres. (o "artista" da foto é o Edinho, meu afilhado)

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Mantenham as portas abertas

O papa Francisco deparou-se com mais um problema interno na Igreja Católica: quatro cardeais se rebelaram contra o documento Amoris Laetitia (Alegria do Amor), em que apresenta seu pensamento a respeito das relações familiares e orienta seguidores. Numa tentativa de coagir o pontífice, enviaram correspondência exigindo respostas ao que consideram imprecisões, no que diz respeito "à integridade da fé católica".
Ninguém é inocente ao ponto de não saber que a Igreja Católica tem várias correntes de pensamento em seu interior, de uma ala conservadora até um pensamento social mais avançado. É, em sim, uma instituição conservadora. E exatamente por ser assim, em sentido primeiro – mantém-se fiel aos seus princípios e faz as mudanças em ritmo mais lento do que muitos gostariam – que sobrevive aos apocalípticos que anunciam seu fim.
Quando o papa Bento XVI foi escolhido, confesso, tive muitos receios: não acreditava que fôssemos ter chance de ver uma série de mudanças se concretizarem. Então veio a primeira surpresa. A renúncia de Bento, num dos atos mais corajosos de um papa diante de sua Igreja, reconhecendo que já não tinha forças para lidar com as articulações políticas que se faziam no próprio Vaticano.
A escolha de Francisco foi um bálsamo para os católicos. O tempo passou e, embora seja coerente com seu anúncio e testemunho desde o primeiro dia, passou a ter restrições à direita e à esquerda. Lembrei de um bispo que dizia: tenho que caminhar de tal forma que ajude os que andam lentamente, mas também a refrear aqueles que atropelam o processo.
Trabalhando com formadores de opinião da Igreja Católica peço atenção ao noticiário sobre o papa Francisco. É pauta não apenas para os meios de comunicação, mas para a reflexão das próprias igrejas locais. No Ano da Misericórdia fez a Igreja caminhar num mesmo rumo e clareou seus horizontes, propondo que se “mantenham as portas abertas”. Ganhou a simpatia de católicos afastados, assim como de cristãos e não-cristãos.
O papa sabe que uma instituição que sobreviveu a dois mil anos de história carrega o desgaste de ter sido agente de muitas mudanças. A ponta do iceberg que os cardeais fazem aparecer no oceano da esperança que se chama Francisco é um passo para a transparência
Possibilita a reflexão, correção de rumos e a certeza de que o caminho iniciado pelo Jovem Galileu sai dos gabinetes de suas eminências e ganha as ruas, as praças, as estradas, o coração daqueles que lutam pela "paz na Terra aos homens de boa vontade". Provoca a mente de gente de fé que deseja ter o direito de concretizar uma religião universal, identificada, especialmente, com os princípios da justiça e da fraternidade.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O direito de envelhecer com segurança

Houve um tempo em que se podia centrar a atenção em um problema do cotidiano, porque os demais se não iam bem ao menos se arrastavam razoavelmente. Nesta dança sem graça passaram a saúde, educação, conservação das cidades e a segurança.
Infelizmente, ainda não vimos solução para nenhum deles, mas alastra suas asas sobre a sociedade a insegurança e, mais ainda, a sensação de impotência por não se poder fazer alguma coisa e nem que exista alguém fazendo algo mais do que boas entrevistas ou lances de marketing.
Todos já tivemos pessoa próxima que foi vítima ou, na sua iminência, necessitou de suporte negado por falta de pessoal ou instrumental necessário. As histórias se repetem, mas uma é a certeza: o cidadão sai para as ruas preocupado ou se encarcera dentro de casa, enquanto vê passar pelas ruas potenciais delinquentes, preferindo não arriscar.
Dona Zola mora num edifício de classe média baixa. Da sacada do apartamento vê a pracinha onde levava seus filhos e, depois, os netos. Agora está vazia. Um bando de jovens se reúne para consumir drogas e fazer arruaça. Num dia, viu o grupo bater num menino que passava. Foi até a entrada e pediu ao porteiro que tomasse providência.
Ele, sem graça, disse que se fizesse alguma coisa os jovens se voltariam contra os moradores. Esperaria que fossem embora e atenderia ao menino. Tentou argumentar, mas sabia que era assim. A lei das ruas: “te mete com a gente, a gente te encontra”.
Voltou para a janela, o garoto já tinha ido embora. Ficou uma ferida em dona Zola. Já fora assaltada na saída de um supermercado, por garotos, quase crianças. Não tinha mais coragem de sair da segurança das grades que cercavam o condomínio, muitas vezes ainda ouvindo da rua as gracinhas sobre a sua idade.
Sentiu falta do tempo em que andar nas ruas era direito sagrado e se tornar um idoso uma distinção que poucos tinham merecimento e garantia respeitabilidade. Ouvira notícias de que além de assaltos, havia chacinas de grupos, pessoas decapitadas ou mutiladas.
Enquanto isto, pelo radinho, autoridades fazem discursos de estudos, grupos sendo formados, mais homens nas ruas. Mas foram muitas gerações até se chegar aonde estamos. Infelizmente, as mudanças não vão acontecer a curto e médio prazo.
Dona Zola não vai mais sair à noite no verão. Triste viu na televisão as falcatruas, roubos, impunidade. Aí inicia o problema: uma sociedade tolerante e omissa esqueceu a sua melhor base - se crianças e jovens estão vagando pelas ruas, é porque falhamos. Sentiu pena de não ver concretizado o que disse Charles Chaplin: sonho com "um mundo bom que a todos assegura o trabalho, que dê futuro à juventude e segurança à velhice".

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Uma idosa, uma criança e um livro

Sábado à tardinha, bom momento de ir à Feira do Livro de Pelotas e pegar o autógrafo de dois escritores especiais: Luiz Carlos Freitas e Pablo Rodrigues. Depois, circular pela praça Coronel Pedro Osório, sentindo o clima de festa no ar. Passar na Biblioteca Pública, encontrar o Daniel Barbier, com as últimas do mundo cultural e político, e curtir as pessoas aproveitando as ruas e o largo do Mercado.
Quando atravessava a praça, no retorno, vi, de longe, uma cena cheia de carinho: senhora idosa e garoto dos seus seis anos. Encostados no banco, a bicicleta e a bengala. Na mão, uma obra do Augusto Cury e um livro com textos e figuras que se montam quando folheiam as páginas.
Era cedo. Resolvi ser mais proveitoso sentar no banco seguinte e ouvir um pouco daquela cumplicidade. O papo era tão concentrado que esquecia o entorno. Uma frase pairou no ar: “filho, viver é como ler um bom livro. É preciso sorver com gosto cada página e ainda criar expectativa para o final, que sempre deve ser o melhor”.
Um momento de silêncio. O neto: “e o fim do livro é bom?” O olhar da senhora se perdeu em direção ao laguinho dos peixes. Quando voltou, tinha o sorriso impregnado de respostas e a paciência de quem já meditou muitas perguntas: "o final depende do que a gente experimentou na vida".
Surpreso, o neto tentou argumentar: “como assim, vó?" Um carinho na cabeça: “deixa assim, filho, tá na hora de ir pra casa". Antes de pegar a bicicleta, entregou a bengala para a idosa, que pendurou a sacola com os livros. As mãos livres se encontraram. Lentamente seguiram em direção da rua.
Ainda fiquei algum tempo sentado, certo de que a cena dizia bem mais do que eu havia visto e ouvido. Gosto muito das letras. Gosto muito de livros. Mas gosto mais ainda quando vejo a cumplicidade que a leitura propicia. Especialmente quando, hoje, se fala em abismo entre gerações.
Voltei ao meu caminho. Mais leve. Com a certeza de que o sábado me abriu uma pequena janela na vida de duas pessoas. A rotina que concretiza a felicidade para o menino que está crescendo. E o quanto é importante envelhecer sem se privar do direito de viver.
Afinal, se muitas vezes a ficção imita a realidade, quando duas mãos cumprem o ritual de andar na mesma direção, junto com um livro, o horizonte é mais atrativo. Faz sentido buscar um final feliz para a própria história.