terça-feira, 30 de novembro de 2021

Educação: ainda há um sopro de esperança

A Escola Estadual 1º de Maio fica um pouco afastada do centro de Nova Petrópolis, no bairro Vila Germânia. Ao chegar, percebe-se que o portão está fechado e, em poucos instantes, um guarda residente (aposentado da Brigada Militar e morador nas proximidades) chega para atender. Somente abre o portão quando tem certeza de que o assunto é pertinente, sem deixar de continuar observando o movimento das pessoas nas proximidades, assim como de veículos. Fui prevenido para não estacionar em frente ao prédio, numa área reservada, pois a multa e a incomodação seriam certas.

Meus sobrinhos residem em Caxias do Sul e estão migrando para o interior. Atuam na área da saúde e encontram, numa comunidade menor, oportunidades de emprego, assim como, pensam, melhor qualidade de vida, em especial para o filho, meu sobrinho-neto, o Miguel. Entrar nas dependências foi como se já se sentisse em casa. “Minha escola nova” era um espaço a ser explorado e, enquanto cuidavam da papelada, fiquei encarregado de policiar que não mexesse em nada ou invadisse algum espaço. Fui a reboque, durante um bom tempo, percorrendo corredores e espiando salas de aula.

Carinhosamente, professoras que orientavam alunos para o intervalo da merenda foram passando, conversando e se apresentando. Duas turmas de primeira série são candidatas a recebê-lo. Claro, teve que visitar e ser prontamente recebido pelos alunos deste ano. Se não o retirasse daquele lugar, ficaria em definitivo. Mas não foi somente entre as crianças que se sentiu bem. Curioso, escapou de minhas mãos e entrou numa sala de alunos maiores. Foi recebido da mesma forma, com a garotada perguntando quem era, ficando feliz por saber que no próximo ano estaria em sua companhia.

Quando voltávamos à secretaria, encontramos a própria diretora. Prestativa, fez questão de mostrar as demais dependências, inclusive o local onde as crianças já estavam fazendo seu lanche. A algazarra contagiante de crianças e adolescentes que passavam brincando, se provocando, sem excessos, numa relação saudável e pedagógica. Contou da interação com a comunidade, também no que se refere à reciclagem de lixo, em especial, com material aproveitado (como caixas de leite) para revestimento das casas de moradores em situação precária, melhorando a qualidade térmica.

Durante o tempo em que lecionei na Escola de Comunicação da UCPel, seguidamente era convidado por escolas públicas para conversar com professores sobre Comunicação Motivacional. O interessante é que mais do que repassar algo aos grupos, tinha a oportunidade de conhecer diferentes realidades em centros urbanos, periferias e meio rural. Havia, sempre, grande preocupação, especialmente com a deterioração das estruturas, assim como de salários e benefícios dos professores. Mas nunca, e repito: nunca, senti que os educadores quisessem desistir…

A educação ainda é um sopro de esperança na vida de crianças que encontram na escola um porto seguro para fugir de situações de fragilidade social. Não é o caso da 1º de Maio, que está num outro patamar, ao preparar pequenos cidadãos, como o Miguel, que “se achou”, acolhido pela comunidade escolar. Ali, educar significa provocar mentes e corações a abrir janelas ao Mundo. Encantamentos da infância, tempo em que se tem o direito de ser feliz, acreditar nos próprios sonhos, onde, de cada sala de aula, corredor, professora, diretora, coleguinhas, ficam as doces e ternas marcas da saudade!

domingo, 28 de novembro de 2021

Padre Aldo: a partilha de uma vida

Padre Aldo Sérgio Lorenzoni chegou aos seus 89 anos no início de novembro. Um dos intelectuais mais respeitados nos meios religiosos e acadêmicos, era objeto de “namoro” do Lupi Scheer dos Santos, que criou e me dá a honra de ser parceiro na live Partilhando, da Arquidiocese de Pelotas. Acreditava, com razão, que seria um dos programas especiais, pelo conhecimento do convidado nas áreas de humanas e religiosas, mas, também, pelo carinho que granjeou pelas diversas atividades que exerceu, seja nos bancos escolares ou junto às comunidades da igreja Católica.

Foi melhor do que a encomenda… Duas semanas atrás, refez o convite que foi prontamente aceito, já pedindo orientações de como fazer para entrar no ar. O Lupi chegou a pensar em convidar um seminarista para acompanhá-lo e dar assistência técnica durante a entrevista. Não foi necessário, ele mesmo acionou o notebook e o que aconteceu a partir do momento em que se iniciou a transmissão foi uma avalanche de carinho, com lembranças de pessoas que haviam convivido com ele, felizes por revê-lo, ainda mais por sentir que, ali, continuava o bom e velho padre Aldo!

“Querido padre Aldo”, “amado padre Aldo” foram algumas das expressões que as dezenas de mensagens trouxeram pelas redes sociais para tornar pública a admiração por uma figura que respeitou o que sempre se pede: “não se dá aula, não se faz palestra, não se dá catequese”. Queríamos ter a alegria de tomá-lo pela mão e levar até a sala da casa de cada uma das pessoas que interagiam conosco. E foram muitas, nas casas mais simples, nos apartamentos de todas as áreas da cidade, assim como nos lugares onde se encontravam lideranças religiosas de todos os tipos.

Como diria o Clésio: “faltou tempo”. Queria ter lembrado do meu ingresso no Seminário, quando o conheci e ficava afastado, já que era um jovem padre vindo de formação no exterior, com presença nos meios universitários. Mas… o padre Aldo foi o primeiro que teve uma televisão no Seminário e, depois da janta, um grupinho escapava do recreio e ia assistir ao noticiário, que iniciava antes das 20 horas, horário consagrado para novelas. Infelizmente, às 21 horas, tocava o sino e precisávamos nos recolher. Alguns chegavam a sair de marcha ré, para, ainda, assistir uma última cena…

Mas foi do professor Cilon Rodriguez, ao registrar que sentia “saudade do meu reitor e diretor espiritual!”, que vieram memórias de histórias contadas na sala dos professores do Campus II da UCPel. Hilárias, como só o Cilon sabe contar. Numa ocasião em que era coroinha, ainda pequeno (o que ainda o é), precisava segurar um livro pesado e, numa pausa, pensou que havia terminado, fechando o livro. A sorte é que o padre Aldo viu e foi, rapidamente, abrir no lugar marcado. Dom Antônio teria sussurrado: “menino pateta!” Ao que o Cilon, prontamente, respondeu: “Amém!”

Não faço justiça ao citar nomes, mas o padre Aldo está no patamar de um Cláudio Neutzling, Régis Brasil, Martinho Lenz… e tantos outros que não utilizam dos seus estudos como um lugar para se fazerem de diferentes. Ao contrário, facilitam a vida das pessoas, ao usar o conhecimento apenas como um instrumento – o outro é o próprio testemunho – para viverem a sua entrega a Deus. Como muitas mensagens registraram, a gente ficaria por muitas horas aproveitando o seu bom humor, os detalhes brincalhões, o seu jeito bonachão e acolhedor de fazer uma santa e abençoada partilha!

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Um todo para se chamar de Rio Grande

Passei dois anos sem, praticamente, sair de Pelotas. A pandemia tirou meu gosto por incursões a Porto Alegre, a fim de “um banho de cultura”, com uma agenda incluindo livrarias, shoppings, cinemas, teatros, visitas… e à serra, especialmente Caxias do Sul, onde tenho sobrinhos morando e trabalhando. O hiato foi suficiente para perceber as mudanças ocorridas, tanto no que se refere à Br 116, quanto ao fosso que existe entre o fato de que Pelotas e Rio Grande constituem o centro de um polo econômico que corre atrás do processo de industrialização que, por lá, já se distanciou.

Próximo de completar 10 anos, as obras da rodovia que liga à capital melhorou sensivelmente o trânsito. Ao menos, agora, se sabe que, em algum momento, desdobra-se em mais pistas e desafoga a procissão dos desesperançados que se aglomera atrás de um caminhão, por exemplo. Sem demérito a quem trabalha, mas sabendo que é um recurso que já deveria estar à disposição em sua integralidade e demanda, no mínimo, dois anos de trabalho para a conclusão. Incluindo a nova ponte junto a Porto Alegre que facilita quem passa por lá em direção à serra ou ao litoral norte.

Os problemas que a economia enfrenta no Brasil vitimaram amplos setores industriais, assim como de serviços. Mas há regiões, como a do vale do rio dos Sinos, que se renova, o que é demonstrado, nesta época do ano, pelo incremento das atividades que envolvem Natal e Ano Novo. Numa manhã de quinta-feira, percorri um shopping do centro de Canoas, com todos os seus espaços ocupados, assim como muitos quiosques pelos seus corredores, e serviços (como pista de patinação em seu interior), com muita gente circulando, especialmente no horário do meio-dia.

Há um outro clima na produção industrial. Saudosistas dizem que já foi melhor e os empresários mais novos apontam que, para quem perdeu os anéis ficaram os dedos, e é necessário pôr a mão na massa, investir e cicatrizar as feridas que causaram o afastamento sensível de uma parcela de consumidores da classe média baixa. Não existe a perspectiva do pleno emprego, mas se considera como vitória se um bom percentual da massa trabalhadora que hoje busca a fila das políticas sociais do governo possa, por si só, gerar a própria renda e administrar a economia de suas casas.

No entanto, os bons índices alcançados pela vacinação causam a impressão de que se superou a pandemia. Na Serra, narram história semelhante à que é contada a respeito de alemães, no caso, com relação a italianos… “O italiano não é teimoso, teimoso é quem teima com um italiano!” Acho que vale para outras etnias, inclusive para nós, com alguns resquícios dos portugueses. Percebe-se, em muitos lugares, descuidos com o uso da máscara, do álcool gel e distanciamento. Sem acender a luz vermelha de que esta fadiga dos cuidados pode ser a porta aberta para novos problemas.

As obras de infraestrutura não pararam. Mas não são o suficiente. As estradas estaduais e federais estão em melhores condições, o que é básico para atender às necessidades para as quais as diversas regiões, com suas características, inclusive étnicas, foram construindo seu suporte econômico, financeiro e cultural. Sem querer plagiar o governo do Estado, é preciso avançar. Circular por aí dá a nítida impressão de que ainda se trabalha com polos isolados, alguns até com conexões com o Mundo, mas que não encontraram seu lugar para fazer o todo que se chama Rio Grande do Sul.

domingo, 21 de novembro de 2021

Entre o perfume do jasmim e o gosto do figo

Semana passada publiquei foto nas redes sociais em que aparecia um pé de jasmim plantado no meu pátio. Sempre que são postadas fotos assim é comum que as pessoas se manifestem e, desta, em especial, por ser planta com perfume marcante, trazendo lembranças de algum familiar que plantou ou gostava do seu cheiro. E comentários como o da Maria da Graça, surpresa por ver as flores, dizendo que o seu estava em botão, o que tive que consolar: “não te preocupa, o meu é que é apressadinho...” O pai gostava da planta, assim como outra de perfume intenso, a dama da noite.

Outra lembrança agradável me veio quando ouvia algo sobre “discernir os sinais dos tempos”, a partir da expressão “quando caem as folhas da figueira”. Confesso que não sei quando caem as folhas da figueira. Mas é das frutas pela qual tenho muito apreço. Casal de amigos, dona Filipina e seu Henrique, tinham açougue, na saída da Vila Silveira. Nos fundos, uma antiga figueira. Sendo eu um “protegido” da dona Filipina, reservava para mim, quando estava em férias do Seminário, o direito de usufruir da abundância de frutos que, maduros, chegam a se desmanchar na boca…

Os mesmos figos que, no fim do ano, faziam as safras dos fabricantes de compotas. Não sei bem a ordem, mas recordo que, depois da colheita, até o fim da década de 1970, muitas mulheres de todas as idades dos bairros e vilas conseguiam seu pé-de-meia trabalhando na industrialização das frutas. Havia a safra do abacaxi, morando, pêssego e figo, que eu lembre. A mais forte era do pêssego, de dezembro a janeiro, quando senhoras com tapa pós brancos saiam de casa na madrugada para voltar tarde da noite. O dinheiro reforçava o orçamento familiar e valia o direito à carteira assinada.

As mesmas vizinhas que, antes de irem para as fábricas, organizavam os pátios, com pequenos jardins, onde se multiplicavam as dálias, copos de leite, brincos de princesa e tantas outras que faziam companhia para o jasmim e a dama da noite. As frentes eram protegidas pelas cercas de arame, com pequenos portões que impediam a passagem de animais. Lugares onde se esmeravam para melhorar a aparência das casas, sempre humildes e discretas. Como cantaria o Chico Buarque: “são casas simples, com cadeiras na calçada e na fachada escrito em cima que é um lar...”

No nosso pátio já se teve muitas árvores, inclusive uma figueira. Porém, as mudanças se fizeram para acomodar uma piscina e espaços para meus pais poderem, na sua velhice, ter lugares seguros para caminhar. O pai gostava de plantar árvores, sempre duas próximas, que suprimi, substituindo por arbustos floridos. Ainda se tem uma laranjeira, limoeiro, caqui e um pé de romã. Mas não sou muito de árvores frutíferas. Conservo pelas sombras que dão aos fundos do terreno, especialmente em dias de verão, quando convidam para colocar uma cadeira de praia e os pés na grama…

Os tempos são outros: o jasmim e o figo têm gosto de belas memórias. Hoje, pela manhã, quando saio para o pátio, o perfume faz parar e vem acompanhado de boas lembranças e os eco das vozes que chegam da Eternidade. Da fruta, o carinho da dona Filipina e da dona Rita, que preparava o figo em calda. Ou das últimas frutas que existiram em meio ao arvoredo e que meus pais recolhiam e guardavam para os netos… Colocar um destes frutos na boca guarda toda uma história que se mistura com os cheiros de primavera, inebria os sentidos e torna menos dolorosa a própria saudade!

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Um “salário secreto” para os brasileiros

A discussão sobre o “orçamento secreto” - que ainda vai dar muito que falar - não é apenas questão de “direito” dos congressistas em ter recursos que destinem para as suas bases eleitorais. Escancara a desfaçatez com que políticos lidam com recursos públicos em benefício próprio. Mostra que o sistema dos três poderes independentes se atrapalhou, ao menos no Brasil, pois quem deveria ser responsável pela legislação e fiscalização outorga-se a prerrogativa de agir como executivo. Mistura que se “naturalizou”, no amargo gosto de que, se alguém ganhou, não foi a população...

Um ruído nas relações foi exatamente quando Legislativo e Judiciário resolveram se reunir a fim de “aparar arestas” e, quem sabe, retroceder na medida tomada pela ministra Rosa Weber. Não “colou” e o governo, por enquanto, tem que pensar outras formas de pressão ou negociação para “a boiada passar”. As emendas de relator mostram exatamente o contrário do que se precisa num sistema democrático: transparência. Recursos de governo devem ser aplicados publicamente, com o direito do cidadão, meios de comunicação e entidades representativas de se manifestar livremente.

O que deveriam ser medidas técnicas, tomadas por quem foi eleito para administrar bens públicos, acaba tendo prioridades estabelecidas por aqueles que embolsam os minguados recursos e direcionam para seus bretes eleitorais. Em tese, os papéis dos poderes executivo, legislativo e judiciário estão bem definidos. Porém, na prática, a teoria acaba sendo outra. Esta promiscuidade é que faz com que o ralo financeiro do que deveria chegar em serviços à população acabe em desvio, obras fantasmas ou esqueletos abandonados que denunciam a incapacidade administrativa.

São os mesmos a dizer que igrejas não devem se meter em política. Quem quer calar profetas, como o papa Francisco, sabe que ele tem clara a definição de política, como agir público, a necessidade de cuidar do que é comum e das pessoas. O que fazem nossos representantes (infelizmente) eleitos é dar privilégios que são crimes disfarçados de atuação benemerente. E quem diz que não se deve falar em política, argumentando que não tem cargo público, portanto é isento, não o é. É cúmplice ao fazer uma significativa parcela da população ter que mendigar direitos elementares.

Para isto, são necessárias as vozes sociais, como a Cáritas Arquidiocesana, que se preocupa com atendimento básico e lança o olhar para o que falava dom Hélder Câmara: “quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”. A necessidade da consciência dos direitos, por exemplo, de indígenas e quilombolas, passa por processos, como garantir título de eleitor e participação no processo democrático. A forma como tentam anulá-las é perseguição, desconhecimento e tentativa de brecar seu papel social.

Se parlamentares podem ter orçamento secreto, solicito que brasileiros desempregados e ganhando até dois salários também tenham direito a um “salário secreto”. As vozes solenes que defendem políticos dirão que é necessário, primeiro, atender a economia… Desculpem, não entendo que, onde existem tantas “cabeças privilegiadas” (ganhando tão bem) não se encontre formas de que as duas coisas sejam realizadas. O Brasil precisa ser, mais do que nunca, a nação dos brasileiros. Lugar de viver em paz e ter as realizações que tanto sonha e se mostram cada vez mais distantes…

domingo, 14 de novembro de 2021

As bolinhas de gude, as figurinhas e os gibis...

Três irmãos vão passar as férias escolares no sítio da avó. Não é apenas uma área de lazer, mas lugar em que, junto com um auxiliar, a idosa faz um pouco de tudo para manter a sua sobrevivência. Durante o dia, as crianças passam bem, envolvidas em aventuras com as novidades de quem sai do meio urbano. À noite é que é o problema. O silêncio apenas quebrado pelo ruído de animais é estranho, bem diferente do agito da cidade, que percorre a madrugada. Andando e brincando pela casa, descobrem a sala onde a avó trabalha. Na mesa, um punhado de contas espalhadas…

Pensam, ser o motivo deles trabalharem tanto e andarem preocupados. Resolvem juntar tudo o que têm para colaborar, de alguma forma, e salvar o lugar. Quando a senhora e o ajudante descobrem as “contribuições”, as crianças já estão dormindo. Ficam emocionados, pois as contas são antigas e já foram saldadas. Lembrando da reclamação das crianças, resolvem subir numa árvore que fica em frente ao seu quarto e tentar reproduzir os ruídos a que estavam acostumados na cidade. Até os animais do sítio dão a sua contribuição para tornar o meio rural um pouco mais urbano…

Para quem ainda não ouviu, a história faz parte de um gibi do pato Donald. Os personagens são a vó Donald, Huguinho, Zezinho, Luizinho e o Gansolino. Criação de Walt Disney que frequentam a imaginação de todos nós há mais de 85 anos. Eram de todos os tipos, com histórias infanto/juvenis, de farwest, de terror e de viagens pelo espaço, sem contar as “eróticas”. Com apenas uma história ou mais, eram periódicas e se perseguia o seu Ananias, o jornaleiro, para saber se haviam chegado. A festa maior era, no final do ano, com os almanaques, uma coletânea especial dos personagens.

A lembrança veio com a notícia de que a Biblioteca Pública do Estado inaugurou uma gibiteca. Lugar para crianças e adolescentes de todas as idades reencontrarem com figuras que auxiliaram a criar o hábito da leitura, fizeram parte do estímulo necessário para, depois, avançar em direção aos livros. Num tempo em que estes estavam fora de nosso alcance - os pilas eram curtos - ganhar um gibi significava ter condições, depois de lido, de trocar entre os companheiros de brincadeiras na rua ou na entrada do cinema (também bolinhas de gude e figurinhas...), nas matinés de domingo.

Na minha infância, ainda haviam figuras como o tio Patinhas, Mickey, Pateta, Margarida, madame Mim, Maga Patológica e tantos outros que, recentemente, descobri em animações de páginas no YouTube. Fiquei um longo tempo vendo os velhos personagens, com as mesmas características dos desenhos, mantendo as antigas histórias: uma aventura, atores atrapalhados, mas um final feliz (às vezes com uma pequena perseguiçãozinha…), com o sentimento de que havia uma lição a ser aprendida, especialmente no respeito ao outro, com valores vividos em família ou em sociedade.

A Biblioteca Pública Pelotense tem uma sala de leitura infantil, onde também tem uma ala de gibis. O hábito da leitura é um entretenimento que estimula a concentração. O pequeno mundo de cada um de nós se expande e faz percorrer outros universos. A aquisição de novas ideias enriquece a capacidade de raciocínio, assim como o vocabulário das crianças. Mas que não está fora do alcance de jovens e adultos… É bom, mesmo depois de tanto tempo, percorrer suas páginas e voltar aos lugares onde a fantasia e a imaginação eram a riqueza de que necessitávamos para tocar a vida!

terça-feira, 9 de novembro de 2021

“É preciso falar sobre autismo!”

O Tales Godinho repercutiu postagem da Eliane Sá Britto Bitencout. Um depoimento precioso para entender situação vivida por milhares de pessoas que têm, na família ou entre amigos, alguém “especial”, como um autista. Se consultar o Google, verá que o autismo é uma síndrome que “causa alterações na capacidade de comunicação, interação social e comportamento, o que provoca sinais e sintomas como dificuldades na fala, bloqueios na forma de expressar ideias e sentimentos, assim como comportamentos incomuns, como não gostar de interagir, ficar agitado ou se repetir...”

O título não é nenhuma novidade, mas necessita ser repetido: “é preciso falar sobre autismo!”. E conta a história vivenciada com o Márcio, seu filho, que levava para sessão de terapia. O primeiro susto veio quando uma moto acelerou alto ao ultrapassar. O Márcio fechou os olhos, começou a se balançar e “não mais me ouvia”. Houve um novo encontro e o fato se repetiu, quando foi necessário parar o carro e tentar contornar a situação. Rezando para que não tornasse a acontecer, continuaram o caminho… Repito o ditado: Quem disse que o raio não cai duas vezes no mesmo lugar?

Num entroncamento, o fato aconteceu novamente e estava feito o estrago. Márcio fechou os olhos e começou a balançar. Eliana desejava uma oportunidade para falar com o dono da moto. Acabou acontecendo. Parou, cumprimentou, identificou-se e perguntou se já ouvira falar de autismo. Contou os lances vividos em cada vez que acelerava e o que causou. Educado, o rapaz disse que não sabia. Eliana completou: “as pessoas não são obrigadas a saber o que afeta nossos filhos. Nós também não sabíamos, até que o autismo bateu à nossa porta. É preciso conscientizar… é preciso falar sobre...”

É preciso falar sobre o autismo…” assim como sobre todas as síndromes, que tornam pessoas especiais, por questões psicológicas, deficiência física, envelhecimento (porque não?), doenças que lhes retiram a capacidade plena de interação. O que o texto cobra – conscientização – é o reconhecimento de que o fato de eu estar em plenas posses de todas as minhas faculdades mentais e físicas não me dá o direito de invadir o território do outro, onde se abrigam os seus medos, os seus pânicos, as reações que se pode causar e transtornam longos períodos de tratamento.

Uma das cenas mais tristes que vivenciei foi quando, chegando em casa, ao abrir o portão, ouvi uma música alta vinda da casa de um vizinho. Incomodado, entrei na morada de meus pais onde os dois, já idosos, estavam sentados em silêncio, televisão desligada, rostos abatidos, porque a altura do som não permitia ouvirem os programas ou entabular uma conversa. Uma das regras mais claras que tornam as relações sociais civilizadas é: “a minha liberdade acaba onde começa o nariz do outro”. O que satisfaz meus prazeres, não pode prejudicar a quem não pediu para ser incomodado.

A conscientização pedida no desabafo é uma questão de educação e informação. Processo que demanda afeto, compreensão, aceitação, espaços onde o autista seja acolhido e reconhecido. Foi-se o tempo em que pessoas com síndromes eram chamadas de “coitadinhas”, com o estigma da segregação marcado na testa. A ciência tem tratamentos para realizarem suas potencialidades. Tomara que o Márcio esteja bem e a Eliane continue a sua cruzada por algo tão elementar: que seu filho, como qualquer outro ser humano, mereça respeito e tenha o direito de um lugar ao Sol!

domingo, 7 de novembro de 2021

O caminho depois do luto e da orfandade

Com o avanço do processo de vacinação já se consegue ter uma ideia do que será o pós-pandemia. Mesmo que cientistas e pesquisadores ponderem que, graças ao desiquilíbrio causado pelo abuso com a Natureza, novos problemas semelhantes podem acontecer, em espaço de tempo menor. Recentemente, passamos pelo dia de Finados, 2 de novembro, quando se reverenciaram os mortos. Ocasião para se falar a respeito do luto e de todas as facetas que possui a perda de um ente querido, no que é um sentimento pessoal, que precisa de consciência, resiliência e ressignificar a vida.

Mas não é somente o luto, em si. Têm-se outras consequências, como, por exemplo, a orfandade, que pode ser entendida literalmente: perda dos pais, ou de um deles; também de forma figurada: um amigo, vizinho, companheiro de trabalho, de estudos… Passou a ser “normal” acompanhar as estatísticas mostrando centenas de vítimas e, quando a morte era próxima, deixando a sensação de que se poderia ser a próxima vítima. Muitos grupos foram desfeitos (familiares, de relações afetivas e sociais) pela ausência definitiva, mas também pelo afastamento temporário e o receio do retorno.

A pandemia ainda causa efeitos colaterais, que serão sentidos nos próximos anos, em especial, no que se refere aos pulmões, coração e células cerebrais. Vive-se num tempo em que ainda é preciso procurar pelos corpos com vida em meio ao campo de batalha. Mas virá o momento em que passado (mas não superado) o pior, é preciso tratar as feridas do corpo e da alma. A “cura” do coronavírus ainda é etapa em observação para se fazer um diagnóstico adequado da situação. É comum que as pessoas passem um tempo e apresentem problemas respiratórios ou, até mesmo, de memória.

Há uma sofreguidão em deixar os “abrigos” que protegeram durante este período, ainda que não tenha sido por ação de todos. A persistência de quem usou (e usa) da máscara, do álcool gel, do distanciamento social, mostrou-se fundamental para que se vislumbre uma luz no fim do túnel. Quando alguns raios começaram a passar pelas frestas das janelas e das portas, a tendência foi de se escancarar tudo e sair para a rua, em busca de um ar menos saturado. Este tem sido um caminho perigoso, tomado sob pressão por países mais avançados, que acabaram retrocedendo.

A arrogância de que “tudo se pode” ou de que “não vai acontecer comigo” levou muita gente para os hospitais e as tristes e temidas entubações. Dos que conseguiram retornar com vida, encontrou-se aqueles que tiveram a humildade de voltar atrás e reconhecer o furor do vírus e o desespero de quem recebeu uma quase sentença de morte. Mas ainda restaram pequenos grupos negacionistas que preferiram politizar a luta contra o coronavírus para defender seus políticos de estimação ou pretensos direitos individuais, que tentavam se sobrepor aos interesses da coletividade.

Cem anos depois da Gripe Espanhola, aprendem-se velhas e surradas lições: é fundamental cada um cuidar de si, sem esquecer de quem está à volta. Sendo assim, para religiões, psicologia, assistência social, não é suficiente tratar o luto se, depois, não se alcançar a perspectiva de que a vida continua. E de que, mais do que viver e resolver o momento da dor, é preciso alimentar a esperança. Abrir todas as frestas por onde a luz possa entrar e tratar da perspectiva do caminho… afinal, como diz o poeta espanhol Antônio Machado, “caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar!”

terça-feira, 2 de novembro de 2021

O dia de Finados, a morte e o luto…

O costume de fazer memória daqueles que já morreram é antigo. Possivelmente, para os cristãos, venha do século II, quando as pessoas visitavam e rezavam por quem havia sido vítima de martírio. Foi somente no século V que se convencionou ter um dia dedicado à oração pelos que eram próximos e, também, por quem já estivesse esquecido. No século XIII, a data foi oficializada em 2 de novembro, dia seguinte ao de Todos os Santos. Não se pode esquecer que, ao longo da história, os corpos eram sepultadas dentro das igrejas ou em cemitérios no mesmo terreno.

Era o desejo de manter próximas as pessoas que fizeram parte da história de cada um. O sentimento que se tem, hoje, quando multidões afluem aos “campos santos” para rezar, fazer a conservação dos túmulos, colocar flores, acender velas e participar de cerimônias religiosas. A crença de que se é uma comunidade peregrina (os vivos), sofredora (as almas em purificação no purgatório) e triunfante (aquela que já alcançou o Paraíso). Faz conjunto com o dia anterior, onde também se recordam os santos já esquecidos, se fazem orações e prestam sacrifícios pelos demais.

Mesmo entre os cristãos, há costumes diferentes, quando a morte não é vista de forma tão negativa. Caso do México, onde a religiosidade popular acredita que familiares voltam e mantêm altares nas casas para recepcioná-los. Bom dar uma olhada no filme “a vida é uma festa”. Ou, ainda, saindo do cristianismo, povos orientais que, em vez de flores, levam alimentos em oferenda para colocar sobre os túmulos. A convicção maior é de que, em ambos os casos, qualquer das ofertas, é mais uma necessidade do vivo de compensar a ausência do que do morto de ter alguma necessidade atendida.

Numa situação normal, o luto, que caracteriza as perdas humanas, é um processo emocional de se vivenciar o afastamento. Não se tem como medir a sua intensidade. É um processo totalmente individual, dependendo do tipo de relação que se teve, assim como da preparação para a perda. Da mesma forma que sua duração. O certo é que ficam as marcas, que se carregam por toda uma vida, no lado esquerdo do peito. E vão influenciar as relações futuras, havendo a necessidade de não perder o vínculo, sem deixar de ter bem presente que a vida continua.

Envolve tristeza, estresse, choque, ansiedade, culpa, raiva e medo. Não há receitas prontas, mas a necessidade de que se retome tempo para cuidar de si; não ignorar a dor, mas aceitá-la como um processo; conversar com quem se confia; passar mais tempo com amigos e familiares; não se isolar; ocupar a mente; exercitar-se (porque não?) e ressignificar a vida… Como já dizia o poetinha Mário Quintana: “Todos esses que aí estão, atravancando meu caminho, eles passarão… eu passarinho!” E que venham novos voos e que se permita transformar a saudade em doces lembranças!

Não tenho medo da morte. Como o papa Francisco manifestou, tenho medo de sofrer… ou espichar a vida que perdeu sentido e se arrasta até que, por fim, seja uma chama que se apaga. Ao nascer, recebe-se um selo: em algum momento, quase sempre nos próximos 100 anos, a vida acaba. A questão não é de quando se nasce ou se morre, mas do que se faz neste espaço de tempo. A religião não pode ser anestésico que faz perder a noção da finitude, mas uma preparação. O espírito que prepara a morte prova que, num ínfimo da história, habita a centelha que vislumbra a Eternidade!