domingo, 30 de março de 2025

Simplesmente assim: Outonar

 

Os ventos dobram a esquina do tempo.

Apresentam-se desnudando o verão,

Açoitando os braços,

Marcando os rostos e

Os olhos congestionados lacrimejam.

Seu murmúrio despoja as árvores,

Enquanto o primeiro sereno se dissolve ao sol

E o outono cinzela o dia com tons que aconchegam.

 

Sem a exuberância da primavera,

Transtornam o passar das horas, lentamente,

Fazendo a noite aconchegar-se mais cedo

E a manhã espreguiçar-se mais tarde.

Quando outona, fecham-se janelas e cortinas

No desejo de que a casa mantenha o calor humano.

Crepitando ao aquecer as mãos,

Enquanto a lenha estala no fogo,

O aconchego que faz bem ao corpo e ao coração…


sábado, 29 de março de 2025

O Profeta, de Gibran Khalil Gibran

Quando converso com alunos ou em palestras, cito quatro livros necessários de serem lidos repetidamente ao longo da vida: o Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry; Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach; o Menino do Dedo Verde, de Maurice Druon; e o Profeta, de Gibran Khalil Gibran. São obras que inspiram “humanidade”, a capacidade de nos sensibilizarmos diante da existência do outro.

Gibran construiu uma obra atemporal que consiste em uma série de ensaios poéticos e reflexões sobre diversos aspectos da vida e da experiência humana. A história se passa na cidade de Orphalese, onde o profeta Almustafa, após doze anos de exílio, está prestes a embarcar em um navio para retornar à terra natal.

Antes de partir, os habitantes da cidade se aproximam, pedindo que compartilhe sua sabedoria e ofereça seus ensinamentos sobre temas universais e profundos. Ao longo do livro, o profeta aborda tópicos como amor, casamento, filhos, trabalho, alegria e tristeza, crime e punição, liberdade, razão e paixão, autoconhecimento, beleza, morte, entre outros.

Cada capítulo apresenta uma reflexão poética e filosófica sobre um tema específico, oferecendo percepções e perspectivas sobre a natureza da existência humana, as relações interpessoais e a busca por significado e espiritualidade. A linguagem é rica e simbólica, convidando o leitor a uma profunda contemplação sobre as questões fundamentais da vida.

O Profeta transcende culturas e épocas, sendo apreciada por sua capacidade de inspirar e tocar a alma humana. Convida à reflexão e ao autoconhecimento, oferecendo um guia poético para navegar pela complexidade da vida. (Pesquisa com auxílio da i.a. Gemini)



sexta-feira, 28 de março de 2025

Quando atravessares a ponte…

Meu mundo não tem porta

E a porteira não tem cadeado.

A chegada é apenas por um caminho.

Verás uma ponte sobre um riacho de águas rasas.

Não tenhas medo, sequer estanques os teus passos.

Basta entregar as rédeas do andar ao teu coração.

Restará apenas cerrar os olhos,

Sentir e te deixar levar pela brisa do fim da tarde.

 

Ao atravessar o que parecerá um pequeno espaço,

Haverá um altar para nele depositar uma flor.

Ali deixarás teus medos, angústias, pesadelos.

No entanto, não te desvencilha dos sonhos, das esperanças,

Especialmente, dos afetos conquistados.

Recolhe a bandana que uma ninfa te entregar.

Podes colocá-la sobre a testa.

Está escrito: Aqui encontras a paz!

 

Quando atravessares a ponte,

Segue qualquer um dos caminhos.

Todos te levam ao meu encontro.

Será um momento de sorrisos e olhares,

De carinhos travessos e abraços apertados.

As palavras e as mágoas ficaram na outra margem.

No silêncio em que apenas a brisa murmura encantamentos.

Finalmente poderemos deixar que o pôr do sol siga seu rito

E que as estrelas nos encontrem embevecidos pelo entardecer.


terça-feira, 25 de março de 2025

O último bicheiro da vila Silveira

O seu Laudelino Almeida partiu. Conhecido na vila Silveira, em Pelotas, por ser o esposo da Ana, pai do Marcos, Kátia, Carla e Fabiano. Bom vizinho, após sair do quartel trabalhou no Jockey Clube (creio até que foi jockey). Também atuou como frentista em posto de gasolina. Depois de aposentado, passou a ter uma outra atividade: era a última pessoa que conheço que ainda fazia jogo do bicho.

Para quem não sabe, jogo do bicho é uma loteria ainda ilegal, popular nas vilas e periferias, onde um apontador passa e recolhe os palpites de cada interessado, em centenas e milhares (se bem me lembro). Mas também por uma numeração que contempla (ou contemplava) a dezena, relacionada a diversos animais. Cada um dos 25 bichos tem quatro números correspondentes, e as opções de apostas e premiações variam conforme as combinações vencedoras. 

É um trabalho de "formiguinha" feito, normalmente, pela manhã. Minha primeira lembrança desta aposta é pelo início dos anos 60, quando meu pai nos trouxe do interior de Canguçu e comprou um ponto onde passou a existir o "Bar e Armazém Raulin" (que era seu sobrenome). O bicheiro, para fazer média, perguntou para mim, com cerca de 5 anos, em que bicho eu apostaria. Disse que no cachorro. E fizeram a "fezinha". Final da tarde, chegou todo contente e queria me dar o dinheiro. Recusei, eu queria era o cachorro que eu tinha ganho!

Embora proibido e criminalizado durante largo tempo, o jogo nunca deixou de existir. Até porque as autoridades faziam vistas grossas para os pontos de jogo ou seus ambulantes. Sua grande popularidade, fundamentada na imagem de confiança dos seus resultados, particularmente nos jargões "vale o escrito" e "ganhou, leva", e sua ampla difusão tornaram a repressão total impraticável, resultando em uma coexistência ambígua com os meios legais e institucionais. Tendo se corrompido em territórios periféricos das grandes cidades (como o Rio de Janeiro), onde sua estrutura foi associada ao crime organizado.

Na época de meu pai, outro vizinho também fazia jogo do bicho, o seu Bernardo, que tinha sido pedreiro, segurança... Eram velhos moradores da vila que entravam nas casas para que os fiéis clientes alimentassem a esperança de realizar um sonho. Com poucos recursos ou remediados, qualquer um tinha o direito de fazer a sua aposta. Uma dona de casa ou quem ia ou voltava do emprego compartilhava seu sonho da noite e apostava no bicho que o inspirava ou no número que imaginava ter visto...

Não são apenas pessoas que se despedem de nós. São histórias que, na maior parte das vezes, sequer foram contadas. Perde-se não apenas um vizinho, um amigo ou um parente, mas um estilo de vida em que o sentido das próprias vivências se dava pelas pessoas com as quais se convivia. Descobre-se que éramos felizes e não sabíamos. Pelo simples motivo de que a sua existência guardava um pouco do sentimento de pertencer a um tempo que desafiava a própria ausência… 


domingo, 23 de março de 2025

Simplesmente assim: Tatuagem

Não tenhas pressa para amar.

Amar é tatuar sensibilidades

Por um corpo desnudado por procuras e desejos.

Fremita no sonho do desenho perfeito. 

As linhas que recém transmutaram a pele

Rubram no anseio de que se falquejem histórias,

Cicatrizes que não desbotam com o tempo.

Carregam expectativas, a certeza de que

São eternas enquanto viverem nas memórias.


Expostas ou escondidas, anseiam por significados,

A parte do mistério em que cada dobra do corpo

Sussurra por carícias e desejos...

A imaginação precede a fantasia.

O olhar divaga e alcança o horizonte do sonho. 

Perde-se nas luzes que demarcam rumos:

Basta um pequeno ponto, depois uma linha

E um traçado toma forma

Em busca da imagem que idealiza a perfeição... 


sábado, 22 de março de 2025

Esperança - autobiografia do papa Francisco.

Esperança é um livro diferente. A autobiografia do papa Francisco difere de tudo o que já li sobre os papas que acompanhei, desde que me conheço por gente, lá pelos idos de 1970. Este não se preocupa com a liturgia do cargo ao contar as suas lembranças. Discreto, mas convincente, alinha memórias com a sua avaliação madura ao lembrar o passado. Com raízes italianas - mas formação argentina, latino-americana - valoriza a família, os vizinhos, os amigos e os lugares onde adquiriu sua sólida formação humanista/cristã.

Sem querer escandalizar, mas mostrando a humanidade do homem que dirige os destinos da Igreja Católica, narra suas aventuras e desventuras. Na formação profissional, problemas que tornaram sua saúde precária, severidade dos fundamentos jesuíticos que moldaram seu caráter. Uma preciosidade quando lembra a sua escolha como pontífice.

A opção pela vida comunitária e, como consequência, abdicar de um apartamento papal para conviver numa casa com religiosos que trabalham no Vaticano e além daqueles que passam a serviço por Roma (a casa de Santa Marta). Quando o mundo em silêncio rezou com ele, ao atravessar a praça de São Pedro, numa noite chuvosa, para pedir pelos atingidos pela pandemia, aos pés da cruz…

Imperdível para Católicos. Recomendável para homens e mulheres de boa vontade que o veem como referência moral, ética e religiosa, independente da religião ou da filosofia que professam. Numa linguagem simples, acessível, às vezes para rir e outras para se emocionar. Um ancião que se desnuda para se tornar mais próximo e ainda mais acolhedor. Daquelas leituras que não se quer terminar. Nos deixam em paz quando erguemos os olhos de um livro que faz bem ao coração…

sexta-feira, 21 de março de 2025

Do outro lado da minha janela

Espio pelo postigo da janela.

Por detrás de um vidro embaçado

Desfilam pessoas apressadas,

Com fisionomias cansadas,

Não importando que seja inverno ou verão.

Têm pressa em chegar às casas para

Encontros possíveis e aqueles desejados.

Os passantes se repetem nos mesmos horários,

Na rotina em que se perde o sentido da espera e do aconchego.

 

Pelas esquinas,

As vozes do passado teimam em se fazer presentes.

Agora, há mais gente andando pelas calçadas.

Muitos ainda são conhecidos,

Outros me são indiferentes.

A rua ainda guarda o mesmo jeito.

Alguns rostos são os mesmos

E repetem velhas rotinas.

Os mais velhos de outros tempos já partiram.

Os mais velhos desta geração parecem não acreditar

Que agora são eles que namoram a finitude.

 

Do outro lado da janela entreaberta,

Ouço os ruídos peculiares à cidade dos homens.

Mesmo quando a noite avança e me acomodo ao leito

Não ouvir seus ruídos me angustia.

Para onde foram?

Na incompletude, o silêncio sufoca,

Sua falta predestina a morte, o ocaso,

A ausência de todo e qualquer calor humano…


terça-feira, 18 de março de 2025

“Um terço para Francisco”

Recentemente, a jornalista Andressa Xavier escreveu artigo para o jornal Zero Hora contando uma história familiar titulada “Um terço para Francisco”. Seus tios, Isabel e Jorge, foram pela primeira vez à Europa em 2019, quando a tia completava 60 anos. A data caiu na quarta-feira em que o papa desce ao encontro dos fiéis na praça São Pedro. Os pais da Andressa já conheciam a Itália e serviram de cicerones. Deram um jeito de ficar posicionados próximos aos gradis. A espera valeu a pena. Quando o papa desceu do papamóvel, seu pai gritou: “La signora fa il compleanno oggi”. Diz ela: "Pois ele parou e andou em direção a eles."

Seu tio faz terços (um círculo de contas que serve para a oração do Rosário) e confidenciou que havia feito um com a intenção de entregar ao papa. "Era branco, vermelho e azul, as cores do time de Francisco, o San Lorenzo, da Argentina. Mostrou aquelas contas coloridas com uma alegria e uma ingenuidade que eu não tive coragem de desapontá-lo e dizer que não conseguiria entregar, ou que seria muito difícil. Pensei, mas não disse nada, só encorajei a levar e elogiei o tercinho, que era mesmo bem bonito".

A felicidade ficou completa quando compartilharam a foto no grupo de WhatsApp da família com o papa bem pertinho deles. "Mais do que isso, a ligação em vídeo horas depois foi linda demais. Minha tia, no dia do aniversário, ganhou um terço das mãos do papa. Ela foi surpreendida pelo gesto do Santo Padre, que colocou a mão no bolso e tirou um rosário perolado, numa caixinha".

O mais bonito do texto da Andressa vem a seguir: "Francisco é assim. Um Papa próximo, humano, carismático e fraterno. Transparece isso. Derrubou muros de uma igreja distante e fechada, se aproximando do seu povo. Beija os pés de presidiários e dos pobres na quinta-feira Santa, como fez Jesus na Última Ceia. Recebe fiéis, abraça as pessoas, sem distinção."

Num tempo em que a maioria absoluta das pessoas torce por Francisco (com uma minoria de mal amados vomitando seu mau-humor em torcida pela sua morte) eu queria ter escrito o que ela disse ao concluir:

"Quando a nossa fé eventualmente esmorece, ter um papa como ele traz renovação, inspiração e exemplo. Um dos dias mais emocionantes da minha vida foi um domingo de agosto de 2017, quando vi, de longe, o papa Francisco pela janela no Vaticano. A simples presença dele me encheu os olhos d'água. Ele deu vida nova e esperança de um mundo melhor aos católicos, mas me atrevo a dizer que ao mundo, a pessoas de todas as crenças."

Francisco é assim: um símbolo da presença de Deus. Presentes como o terço são o sinal do carinho de uma população que anseia por referências. Com a emoção de quem o ouve como quem escuta alguém que nos é muito precioso, capaz de dizer as coisas mais simples brotando do coração. Porque transpira pelo rosto, pelos olhos, pelas mãos, pelo abraço, uma alma humilde, em que a fé é espelho da sua empatia e amor ao próximo, a vocação de um autêntico homem de Deus.


domingo, 16 de março de 2025

Simplesmente assim: Arfante

Quando o ar se torna rarefeito e parece acabar,

Erguer a cabeça é um desafio. No entanto,

A energia chega de onde menos se espera.

O corpo fica cansado e qualquer movimento

É a necessidade de vencer as barreiras físicas.

Arfante, todos os sentidos parecem inertes,

Enquanto o vento bate nos olhos e

Teima em secar

Uma lágrima solidária com as minhas carências.

 

A reação dos sentimentos

Para alcançar a liberdade, desatar amarras,

Emergir em cada centímetro de pele.

Arfante, o suor rega a face,

Escorre a maquiagem, retira a máscara,

Revela e expõe os afetos.

O coração apertado bate mais forte,

Com o medo de que um suspiro carregue

O sonho de vencer o que assombra e as aflições…


sábado, 15 de março de 2025

Terra dos Homens

 Leituras e lembranças:

Desde o mês de fevereiro passei a colaborar com as páginas “Que livro estás a ler” e “Clube de leitura”, no Facebook, aos sábados. Resolvi compartilhar minhas leituras também com vocês. Aceito comentários. 

Terra dos Homens

Terra dos homens é obra do escritor e ilustrador Antoine de Saint-Exupéry, publicada no mesmo ano em que a Europa entrou na 2ª Guerra Mundial, 1939. Reúne algumas de suas experiências relatadas em jornais da época, especialmente como aviador, prospectando rotas pela África, América do Sul e no transporte de passageiros e de cargas, especialmente de correspondências.

A impressão que se tem é de que seja preparatória ao seu livro mais famoso, de 1943, o Pequeno Príncipe. De forma descritiva, ali aparecem elementos que estarão presentes na sua grande parábola, como o companheirismo, a pequenez do homem, a solidão, a simplicidade e o sentido da vida. E, claro, elementos físicos, como o deserto e a raposa.

O que disserta em Terra dos homens, vai se transformar em narrativa no Pequeno Príncipe. Relatos de viagens como piloto das vias Aéropostales para, depois, dedicar-se a um livro supostamente de contos infantis… É um laboratório de ideias e sentimentos para a sua obra maior. Pena que não tenha vivido para ver o reconhecimento que granjeou.

Na minha releitura, em função das discussões que tenho feito sobre o Pequeno Príncipe, fui à cata dos comentários de quem se debruçou sobre a obra. Lá encontrei: “O livro faz apelo ao melhor que existe dentro de cada um de nós”. E em outro lugar na internet: “um poema em prosa que celebra a natureza, o sentido da vida, a dignidade do trabalhador.” Com certeza, é isto e muito mais: Como reabrir velhos baús em busca de lembranças que se julgavam perdidas…


sexta-feira, 14 de março de 2025

A tentação das águas profundas

Gostava do teu sorriso, na juventude.

Teu olhar cristalino era um jorro de energia,

Raios contidos no alvorecer de um novo dia.

Gosto ainda mais agora que envelheceste.

As marcas ao redor dos teus lábios são

Vales que convergem a vista para o rio.

Teus olhos têm a tentação das águas profundas,

Que aguardam cautelosas, 

Quando se mira a superfície.

 

Isolam de todos os ruídos ao imergir de um corpo

Na profundidade dos sentimentos.

É quando me perco na geografia do teu rosto.

O tempo passando transbordou teu sorriso,

O espelho da alma, que

Verte doçura, carinho, serenidade,

Memórias que se esgueiram pelos vincos da tua testa.

 

Resumem a existência de quem viveu sua história,

Com a intensidade de um sonho que se fez realidade.

Ali, contemplei o mistério que ronda o teu olhar.

Agora, teu sorriso é o entardecer, quando o 

O dia acomoda-se nos braços da noite.

Não foram as estrelas que deram sentido às tuas andanças.

Teu norte sempre foi a possibilidade de mirar um destino,

Sôfrego por desbravar a tua própria Eternidade…


terça-feira, 11 de março de 2025

“Só queria ganhar um abraço…”

O menino cadeirante que está à margem do campo de basquete recebe uma bola no colo. Quem a recolhe percebe que a outra criança está marginalizada de atividades esportivas. Volta ao jogo e conta para seus colegas. Em seguida, a turma se dispersa. Na tarde seguinte, o cadeirante, ao sair de casa, encontra a bola na varanda. Coloca-a no colo e vai à cancha. Ali já estão os demais, agora, cada um “equipado” com um carrinho ou uma cadeira com rodinhas, de onde, sentados, compartilham a brincadeira com o mais novo jogador.

Seguidamente, aparecem curtas na internet em que pessoa porta cartaz, em plena rua, se oferecendo para receber e dar um abraço. Algumas vezes escrito: “Só queria ganhar um abraço…” A grande maioria passa batida e desconfiada. Mas sempre tem aqueles (e aquelas) que sorriem e aceitam o convite. Infelizmente, não são feitos depoimentos de quem deu ou de quem os recebeu. Superado o receio de fazer fiasco, quebradas as barreiras do preconceito, o abraço se torna uma válvula de escape para muitas “neuras”.

A mulher estava secando a louça na pia, quando se sentiu mal e se apoiou na bancada. O cachorro percebeu que a dona ia ter uma crise epiléptica. Em silêncio, escorou suas costas até que estivesse sentada no chão. Abriu a geladeira e alcançou água. Fechou a geladeira e procurou deixá-la da melhor forma possível para que repousasse. Só então alcançou o interfone e tocou chamando a portaria. Latiu e o porteiro entendeu que havia algum problema, pois tinham conhecimento do histórico de saúde da proprietária do apartamento.

Uma das primeiras frases que marcou a figura de Francisco, quando assumiu a cátedra de Pedro, foi: “Sempre que possível, dê um sorriso a um estranho na rua. Pode ser o único gesto de amor que ele verá no dia”. E também: “É preciso ter bom humor no dia a dia para não tornar-se ‘avinagrado’”. “Só queria ganhar um abraço” pode ser a demonstração de carência ou de ternura. E o cão cuidador demonstrou, por instinto e carinho, o que precisamos: gestos de solidariedade e de empatia, a “fofura” de que estamos carentes. 

A generosidade tem o poder de transformar o dia de alguém. Francisco, com palavras, gestualidade, expressão facial, atitudes, dá exemplo de que momentos de desprendimento tornam mais leve a vida, carregada de rotinas e mesmices. O cadeirante que entrou na quadra para jogar basquete, o desconhecido oferecendo um abraço, o cão convivendo e cuidando da dona foram imersos num estado de fofura (sensibilidade). Hoje, raros, mas necessários para que não se desaprenda que o melhor que ainda temos é a nossa própria humanidade…


domingo, 9 de março de 2025

Simplesmente assim: Ânsias

A ânsia é o desassossego do coração.

Quando os sentidos perdem o controle 

Das nossas possibilidades.

Nos escaldantes dias de verão,

Esperar pela brisa da noite em que

Um cobertor de estrelas aconchega sonhos.

A busca pelo reencontro desejado,

Acalentado em devaneios,

Sentido na penumbra da saudade.

 

Resistir à tortura da indiferença, 

Buscando razão para 

A noite que se fecha em breu.

Ansiar é manter vivas as expectativas,

Sabendo que os lábios ressequidos

E a alma que taquicardia

Esperam pelo direito de serenar.

Na possibilidade de saciar a fome

Dos grãos de trigo que apenas a terra germina,

Garantindo o direito de brotar, 

Desabrochar e, um dia, fenecer em paz…


sexta-feira, 7 de março de 2025

Mesmo que seja um amor atrapalhado

Não peça desculpa novamente.

Precisamos de um tempo para

Sondar nossos mundos interiores.

Sou surpreendido por nuances

Que revelam aspirações e pesadelos.

A ânsia por desvelar um ao outro.

No meio do caminho há ruídos que assustam,

Sem que sejam suficiente para nos afastar.

 

Meus fantasmas não têm pressa.

Ainda acreditas que uma 

Outra metade está esperando por ti?

Pois é, aguardei ao lado do caminho,

E agora sei como é ficar sem a pessoa que se ama.

Quando paro diante da porta dos meus medos, 

Percebo que o tempo passando 

Me deu a aparência de maturidade.


Em lugares onde a consciência não alcança

Aprisionou-se um menino 

Que esticou o olhar para a juventude,

Sem ter coragem de viver com um adulto.

A ausência das tuas palavras foi a falta

Do abraço que sussurrava por meu corpo.

Eram murmúrios não entendidos, 

Sentidos na agonia de te compreender…


Errar e ser perdoado é inerente ao amor.

O tempo ensina que as palavras não faladas

Também portam a compreensão e carícias 

De quem se atrapalha ao multiplicar o que é dito.

Um silêncio cúmplice encerra a compreensão.

Apazigua a alma, serena o corpo, 

Eleva o espírito ao patamar da beleza interior, 

Tornando um olhar travesso pleno de doçura. 


Mesmo que seja um amor atrapalhado. 

Pedir perdão, quantas vezes for necessário,

Por mal-entendidos, teimosias, 

O afastamento que endurece o olhar.

O direito à cumplicidade,

Quando as desculpas se tornam desnecessárias,

A intimidade dispensa formalidades,

Bastando apenas aconchegar o ser que se ama…

O calor do Sol que somente tu consegues me dar.

A certeza de que amar é o que dá sentido à vida!


terça-feira, 4 de março de 2025

Conclave: os bastidores da escolha de um papa

Coincidência analisar, em curto espaço de tempo, dois livros de vertentes literárias distintas. É inesgotável falar da obra de Saint-Exupéry, especialmente, a respeito do Pequeno Príncipe, com sua ternura e lições de humanidade. Mas há uma outra tendência no universo dos livros que fascina: a ficção, de onde emergiram, nos últimos anos, autores como Morris West (As Sandálias do Pescador), Dan Brown (O Código da Vinci, Anjos e Demônios…), Ken Follet (Os Pilares da Terra) e, agora, Robert Harris, percorrendo os bastidores da Igreja Católica, naquilo que tem de santa e pecadora (para os escritores, bem mais de pecadora).

Robert Harris é autor do best seller Conclave, adaptado para o cinema e, neste momento, em evidência pelas diversas indicações ao Oscar. Aborda uma temática que causa arrepios nos leitores que gostam quando se trata de teorias da conspiração, isto é, aquilo que expõe, desnuda negociações políticas, como a obra, falando a respeito da sucessão do papa (que se parece com Francisco…), numa época de abertura para as realidades sociais e sair do mundinho italiano para se tornar, de fato, universal. Isto na ficção…

Encontra terreno fértil neste tempo em que o papa Francisco, com 88 anos e a saúde debilitada, esforça-se para continuar sua obra, com uma garra que poucos religiosos com menos idade têm. Conclave é um livro que prende, descrevendo a morte do papa e a eleição de um novo, na Capela Sistina. Com a demonstração de ambição e mistérios que envolvem os principais “candidatos”. Quem narra é o cardeal Lomeli, decano do Colégio Cardinalício, que tem a obrigação de assegurar a lisura da sucessão, em meio aos seus próprios conflitos de fé. Na Missa que antecede o enclausuramento dos 128 homens para votarem, Lomeli desabafa:

“Oremos para que o Senhor nos conceda um papa que tenha dúvidas e que, pelas suas dúvidas, continue a fazer da fé católica uma coisa viva capaz de inspirar o mundo inteiro. Oremos para que ele nos conceda um papa capaz de pecar, e de pedir perdão, e de seguir em frente. É isso que pedimos ao Senhor, através da intercessão de Maria, a mais santa, Rainha dos Apóstolos, e de todos os mártires e santos, que ao longo do curso da História tornaram esta Igreja de Roma gloriosa através dos tempos…”

Gosto da temática, mas não pretendo dar spoiler, contando o final. Levei um baque nas últimas páginas. Embora se apresentem as vaidades e interesses escusos, para os religiosos católicos, há uma clara sugestão da ação do Espírito Santo. Contudo, também a discussão de questões ligadas à sexualidade e afetividade. A verdade é que o papa Francisco não tem fugido desta temática, mas, com certeza, serão necessários ainda alguns “franciscos” para que este rosto divino da sua Igreja se ajuste ao jeito bem menos santo de viver do ser humano…

domingo, 2 de março de 2025

Simplesmente assim: Como água com mel

Meus pés deixam marcas por sobre o sereno

Que ainda teima em permanecer sobre a grama,

Mesmo depois do nascer do sol.

Anda ao meu lado o sentimento de que

O tempo dilacera a espera,

Mas não é capaz de apagar as memórias

Guardadas na ternura de quem luta por não desistir...

 

Aprender a amar desnuda de tudo

Pela ternura do olhar de um filho,

O afeto pelo reencontro de um amigo,

Aconchegar a pessoa que dá razão ao meu sorriso.

As múltiplas formas de acolher e ser acolhido.

O desejo de que, em qualquer etapa da vida,

Transpareça o sentimento da partilha

Incandescendo o olhar.

 

Como água com mel.

O sentimento do que parece inutilmente simples:

Saciar a sede pelo privilégio de viver em paz…