domingo, 10 de abril de 2022

O tempo do silêncio das imagens encobertas

Não tenho memórias religiosas da primeira infância. Tudo o que sei é de ouvir contar ou de alguma rara fotografia. As visitas de padres católicos ao lugar onde nasci – Três Porteiras, 5º Subdistrito de Canguçu – eram poucas, quase sempre anuais. Não era uma região povoada e, pior, distante do centro urbano para os padrões da época. Então, quando aparecia um, era a ocasião para batizados, casamentos e registros – nascimentos, matrimônios ou mortes. Igrejas eram poucas, então, a “venda” (tipo “mercadarejo” de hoje) recebia a procissão de carroças e charretes/faito com os fiéis.

Em Pelotas, passamos a frequentar a Igreja Paroquial de Santa Teresinha, do então padre Roberto Oliveira da Silva. É de lá que me vêm as lembranças mais remotas de religiosidade, neste tempo, com as cerimônias da Semana Santa. Fiquei surpreso quando entramos na Igreja, no início de uma Quaresma, e vimos todas as imagens cobertas com panos roxos. Logo associei com o que fazia minha mãe, em dias de tempestade, especialmente quando havia raios e trovões: arrumava panos que recobrissem as poucas imagens de santos e também os espelhos que haviam pela casa.

O engraçado é que não lembro dos santos que tivemos. No entanto, ficou marcado que, chegando em Pelotas, o pai havia negociado o direito de sucessão de um “bar e armazém” com seus donos, conhecidos por “Três Patetas” e, quando se mudaram, deixaram escassas mercadorias e, sobre a porta principal, um sinal de religiosidade: um negro velho e uma figa. Meu pai demorou para se associar ao grupo que frequentava o catolicismo e, mesmo depois, quando construiu sua própria casa e se mudou, levou as duas imagens, que continuaram sobre a entrada principal da casa.

Tempo de respeito e reverência. Mesmo sem explicações teológicas, ainda no interior, quinta-feira Santa à tardinha, as poucas cabeças de gado eram recolhidas e somente voltavam para o pasto no domingo. No meio urbano, celebrações de quinta (Instituição da Eucaristia), sexta (Paixão e Morte), sábado (Ressurreição) e domingo (Páscoa) eram o programa que se prolongava por uma vigília em que se restringiam as atividade sociais e a alimentação. Na sexta e no domingo era preciso ter cuidado, porque o peixe e o churrasco justificavam alguns excessos com bebidas alcoólicas…

No domingo (03), pela manhã, fui à Missa na Igreja da Luz. Não recordava, recentemente, de ter voltado a ver as imagens recobertas, como estavam a própria Nossa Senhora e o cruzeiro suspenso entre a assembleia e o altar (uma lembrança parecida com a Catedral do Redentor, da Igreja Anglicana, que tem um em situação parecida). As lembranças voltaram às muitas ocasiões onde a memória brincava entre os santos encobertos e a noite de sábado, em que todas as luzes mantinham-se apagadas até que, com a descoberta da Cruz, as demais também voltavam a ser expostas à luz.

Gosto das igrejas como um lugar de silêncio. Que também pode ser um lugar de oração. Lugar de introspecção onde se vai para “repousar” em Deus. A Quaresma – e todos os seus rituais - prepara para a maior festa da Cristandade: a Ressurreição! O “velatio” (encobrir) das imagens ajudava os fiéis a não se distraírem nesta época e apontava para o mistério pascal de Cristo. O “desvelar” é um jeito de Deus abrir uma fresta na imensidão do seu amor e a oportunidade de se contemplar o que a vida e a esperança podem fazer brotar, mesmo que se passe por um momento de tristeza e de dor!

Um comentário:

Unknown disse...

Também gosto das igrejas como lugar de silêncio, introspecção e oração. Quantas lembranças da infância o texto me traz das imagens encobertas, dos mistérios que as cercavam para nós crianças, que estimulavam a imaginação. Saudades de uma devoção ingênua e sincera que forjou mais tarde aquela que me sustenta na vida, em todos os seus momentos.