terça-feira, 29 de dezembro de 2020

"Te cuida”: tempo de amar à distância

A última semana de 2020 vem carregada de preocupações. Sem entrar em detalhes, tudo indica que os primeiros meses do ano novo serão ainda mais difíceis e, na iminência do início da vacinação (sabendo que seu efeito demora em torno de um mês: primeira dose, segunda, e oito dias para dar resultados), acontecem duas grandes festas populares que levam milhares de pessoas para as ruas, ambiente propício para a contaminação. Quando o álcool e a euforia fazem com que se despreze os protocolos básicos que, por enquanto, é tudo o que se sabe que pode surtir efeito preventivo.

Curioso que, na virada do ano, o que mais se deseja é “saúde e paz”, completando: “o resto a gente corre atrás!” No entanto, como alerta uma das muitas campanhas de conscientização: “basta um momento para acabar com todos os outros”. Para quem não prestou atenção, inicia com o rapaz desesperado numa sala de espera de hospital, enquanto o pai está sendo entubado. Sentindo-se culpado por saber que foi o responsável, pois chegou da rua, voltando de uma balada, e, sem qualquer cuidado, contaminado pelo coronavírus, tirou a máscara e foi beijar o idoso.

Embora se fale a respeito do tratamento, não são muitas as gravações em lugares onde pessoas são entubadas. Não havia visto um centro de atendimento e, ao assistir matéria, fiquei assustado: leitos com pessoas praticamente nuas, debruçadas para facilitar o trabalho dos pulmões, um dos lugares mais afetados, causando a diminuição da capacidade de respirar, quase sempre com sequelas. Conversei com conhecidos que se fossem feitas campanhas com estas imagens (semelhantes às estampadas nas carteiras de cigarro), diminuiria o número dos que apostam numa “gripezinha”.

O que leva, de novo, para os ambientes hospitalares onde os profissionais vivem uma rotina estafante que os afasta do convívio com familiares e, quando possuem filhos, têm que fazer ginástica para entrar no processo de descontaminação e não levar o vírus para casa, o que, em muitos casos, diminuiu até o convívio afetivo. Estar com idosos, especialmente os pais, tornou-se quase impossível. Uma atendente de enfermagem chegou a dizer: “não é a distância que torna as coisas mais difíceis, mas a saudade de tocar e abraçar quem dá sentido às nossas vidas”.

Final de ano é tempo de tirar lições do que se passou. A valorização dos profissionais de saúde ainda é mais cantada em prosa e verso do que uma realidade consciente por parte da população… os auxílios emergenciais evitaram que se estabelecesse o caos numa economia que já vinha definhando… os processos de educação, precários, expuseram as suas mazelas, especialmente a distância entre as classes sociais… idosos e grupos de risco viram suas vidas colocadas em perigo por pessoas imediatistas, incapazes de pequenos sacrifícios e pensar no bem de todos...

Mesmo que você possa ter um “formigamento” para sair na noite do dia 31 e esperar o 1º de janeiro na praia, ou lugar público, faça melhor: fique em casa. Telefone, use redes sociais para mensagens ou videoconferência. É um tempo para se amar à distância, o que não impede que se acarinhe pais, filhos, parentes, amigos e desejar o mesmo que se faz todos os anos: “te cuida!” Um pedacinho do nosso coração que percorre qualquer distância para prometer: “tô contigo e vou continuar contigo”. Gesto que assegura os cuidados necessários para que se possa desejar um feliz e abençoado 2021!

domingo, 27 de dezembro de 2020

Desenho urbano e a vida do cidadão

O ponto central geográfico da área urbana de Pelotas, que já esteve na região do Areal, em seus primórdios, depois passou para o centro histórico da cidade. Hoje, está situado na Praça do Colono, que faz o entroncamento das avenidas Fernando Osório, Marcílio Dias, Francisco Carúccio e dom Joaquim, na zona norte. A informação foi dada por um arquiteto, quando falávamos da expansão da área construída em direção à vila Silveira, onde moro, com condomínios de baixa renda, mas também áreas de apartamentos, casas e comércio para a classe média.

Os mais recentes, Quartier e Quinta do Lago, ficam nos antigos campos e banhado dos Carúccio, já estando adiantadas as ruas, o que permite que se revejam lugares onde as pessoas caminhavam nos finais de tarde - ou aos fins de semana - em busca de ervas de chás, também, como dizia meu pai: “soltar as crianças para pastar e escramuçar”. Normalmente, quando as mães já estavam no limite do estresse e precisavam de um tempo para se recondicionar e tirar os meninos de circulação. Para eles, a novidade, na companhia do avô, era andar por trilhas, matinhos, morretes e um “laguinho”…

Nas caminhadas matinais, experimentei rotas alternativas num dos pontos mais elevado e fui surpreendido por boas memórias: o “laguinho”, uma das áreas de onde as olarias tiravam o barro para tijolos e telhas. Uma delas era a dos Carúccio, que ainda hoje tem parte da estrutura em pé. A outra, tenho um resquício de memória, seria a dos “Santos Anjos”. Não tenho certeza, alguém poderia me confirmar ou dar o nome correto. O arredor foi desbastado e abandonado. Ali brotaram gramíneas, ervas e arbustos, acolhendo bandos de pássaros que ainda buscam abrigo ao anoitecer.

Até a década de 70, a vila Silveira era um “condomínio fechado”. Uma rua (estrada) principal, com uma série de entradas laterais, que terminava ao iniciar o banhado dos Carúccio. A partir dali era um terreno difícil de ser percorrido. Quando o primeiro garoto que estava no quartel, em serviço, ficou sem dinheiro para o ônibus e resolveu atravessar área ocupada por maricás e gravatás (arbustos espinhosos), foi considerado um herói. Prenunciava a preocupação de muitos: um dia, a rua seria ligada com o Fragata - como se dizia, então - e acabaria com o sossego dos antigos moradores…

O desenho urbano é dinâmico, mas não precisa ser caótico. Nos últimos dez anos, os moradores que praticamente fundaram a vila (no início da década de 50) foram sacrificados por uma visível falta de planejamento e democratização dos dados referentes às obras. Projetos bem elaborados (e bem financiados) de bairros planejados coexistem com rua acessória transformada em corredor de transporte, mostrando despreparo dos planejadores públicos em reunir a expansão da área de construção com elemento humano, propiciando recursos como: lazer, saúde e educação...

Não sou contrário à evolução que traga melhoras, com oferta de serviços, inclusive comerciais. Entretanto, o que se viu foram idosos afastados das ruas, crianças perdendo espaços para brincar e que as residências, agora pela pandemia, estão longe de ser lugar de refúgio e abrigo. Fica claro que se o administrador público não for capaz de ter uma visão de conjunto da vida do cidadão, também não será capaz de ter uma perspectiva de futuro onde se integre e qualifique a própria vida…

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

O caminho para Belém passa por Jerusalém…


Seria uma longa jornada até Jerusalém. Na madrugada, José aprontou o burrinho onde dispôs material suficiente para a viagem de quatro dias. O essencial, pois tinha medo de que Maria se cansasse e fosse preciso ser carregada. Saíram de Nazaré para a estrada onde se juntavam as caravanas e pessoas que iam à Cidade Santa: peregrinos religiosos, negociantes e aqueles que atendiam ao chamado para o recenseamento, decretado por César Augusto, o que fazia José voltar à sua cidade de origem, desta vez acompanhado da esposa e do filho que estava por nascer.

Nos primeiros raios de sol, a movimentação era intensa: famílias inteiras se juntavam para fazer uma viagem que demandava paciência e, juntas, poderiam ter segurança contra animais e salteadores. Enquanto adultos arranjavam animais e cargas, as crianças faziam bulício ao redor, brincando, correndo, passando pelo meio dos grupos, indiferentes às reprimendas e advertências. Nas viagens, era sempre assim: pareciam não se cansar, até que, ao fim da tarde, quando montavam acampamento num descampado, mal mastigavam alguma coisa e apagavam.

A barriga crescia bastante de um dia para o outro. José voltou, trazendo junto uma menina que se identificou como Miryam. Sorriu para a pequena que, silenciosamente, ficou com o casal enquanto se deslocavam e encontravam o grupo que já estava em marcha. Maria teve com quem conversar, enquanto o esposo ajudava o burrinho. A menina não corria ou falava muito. Apenas acompanhava, atenta ao que diziam. Maria explicou que seus nomes tinham o mesmo significado: Miryan, do hebraico, e Maria, do sânscrito, tinham a doçura da pureza e da virtude.

No final da tarde, uma carroça estava com o rodado trincado e coube ao carpinteiro José concertar. Em seguida, uma criança apareceu com um banquinho que tivera o pé quebrado… Entretidos, Maria preparou a refeição da noite, enquanto as crianças, cansadas, seguiam Miryam e ficavam ao seu redor. O suficiente para fazer uma das coisas que mais gostava: contar histórias e falar de Javé… Narrou que sua terra era o lugar predileto de Deus e Ele enviaria Seu filho para salvar a humanidade. A noite já se punha quando as mães começaram a chamar e recolher os filhos.

Conversando com José, Miryam e as novas companhias, fizeram uma viagem tranquila, até chegar a Jerusalém. Em suas portas, parou diante de tanta grandiosidade e assustada com a movimentação de pessoas que entravam e saiam. O coração lhe dizia que aquela cidade ainda causaria muito sofrimento para sua família. Miryam segurou a mão de Maria que sentiu os dedinhos firmando os seus. Em breve, o filho faria o mesmo. Que costumes teria: dormiria bem, seguraria seus dedos ou seu cabelo quando caísse no sono? Seria capaz de libertar seu povo?

A jornada era menor até Belém. Por entre olivais, onde viam pessoas tratando das azeitonas, já tinha dificuldades para caminhar. Faltava tão pouco. Deixaram a Cidade Santa para trás certos de que era apenas o início de uma nova e longa jornada. O Filho de Deus abriria os olhos para um mundo que, ainda hoje, precisa aprender que o fausto de Jerusalém é nada comparado a uma simples manjedoura, em meio a pastores, nos estábulos que acolheram Jesus, em Belém. Deus se fazendo homem e dando a chance de que o homem chegue mais perto de Deus. 

Feliz e abençoado Natal!

domingo, 20 de dezembro de 2020

“Partilhando”, com o gostinho de estar com você...

Quando iniciou a pandemia, comecei a pensar num projeto de interação e informação, especialmente com o público cristão/católico. Fiz as primeiras conversas com o Lupi, coordenador de comunicação da Arquidiocese de Pelotas, e se pensou em formatar uma live de entrevistas. Sabíamos a quem nos dirigir, mas não tínhamos ideia de como delimitar as pautas e o formato. Embora fosse “chapa branca”, por ser oficial da igreja Católica, foi pensado para ser informativo, com notícias e a participação de quem nos auxiliasse a aprofundar conteúdos.

Felizmente (ou infelizmente, para quem desejava um espaço “bem-comportado”), a definição foi se dando a cada programa, evoluindo pelas mensagens e assumi (ou tomei conta?) a função de ser o mediador, que não apenas repassa perguntas e comentários, mas faz os próprios, e brinca com um público que, na maior parte das vezes, já é conhecido de outras andanças da igreja. Somam-se aos novos participantes que entraram no espírito e passaram a dar importantes e ricas contribuições, surgindo como a luz do Espírito Santo que refez o que meio que foi pensado inicialmente...

Em tempos de pandemia, nascia a live “Partilhando”, que se tornou, no dizer de alguns, programa esperado, o espaço de “sala” onde convivem os donos da casa com as visitas, mas também permite que os donos da casa alcem voos e se desloquem até as casas dos entrevistados. Rapidamente, os convidados entraram no espírito da coisa e contaram histórias, lembraram de lugares por onde passaram... e foram brindados com o carinho de quem não os via há longo tempo e guardava uma saudade contida de tempos e eventos em atividades paroquiais, pastorais e sociais.

Brincamos, nos divertimos, provocamos as pessoas, mas também tivemos momentos de ternura, de histórias em que, se ouviu depois, “eu não sabia”, com a oportunidade de rever padres como o Florêncio, Estêvão, Caponi… O arcebispo de Pelotas, dom Jacinto; os bispos de Montenegro, dom Carlos, e de Bagé, dom Cleonir (falta ainda dom Ricardo, de Rio Grande, que fica em pauta para 2021)… ver novos religiosos atuando na Diocese, como em São Lourenço do Sul e Pedro Osório… mas também ouvir as narrativas dos párocos locais de como estão se virando durante a pandemia…

Um nome especial nesta saga se chama Lupi. Um quase doutor (iniciou o doutorado agora), professor de Matemática, com grande capacidade de lidar com as redes sociais e uma paciência infinita para tratar com “manueis” e todas as castas religiosas que, no frigir dos ovos, não são muito fáceis de serem atendidas… Em alguns momentos, junto com o Tales e o Augusto, na técnica, e o contato e marcação de entrevistas. No ar, ou nos bastidores, é a cara do equilíbrio e bom-senso, com sensibilidade para perceber a oportunidade e a importância das pautas, ou deixar em banho maria…

Nova lista para 2021: Santuário de Guadalupe, Campanha da Fraternidade e ação ecumênica, apresentar para as novas gerações padres que fizeram história (Cláudio Neutzling, Mário Prebianca, Flávio Weissmann, entre outros). Contar “causos”, informar, sorrir, emocionar, brincar, fazer do “Partilhando” a família que se reúne às quartas, mas o gostinho se derrama pela semana… tendo um complemento: “com você”. Afinal, partilhar é a semente mais segura para se alcançar a felicidade. Deus o abençoe. Deus a abençoe. Deus nos abençoe. Feliz Natal. Vamos estar juntos em 2021!

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

A vacina, a escuridão e a esperança

Os cristãos dos primeiros tempos celebravam pela madrugada, concluindo seu ritual ao nascer do Sol. Vindos da mais intensa escuridão, que precede a aurora, faziam a analogia com a ressurreição de Jesus e sentiam-se renovados pelo convívio e o sentido de iniciar uma nova jornada, estimulados pela Eucaristia. Creio, até, que perdi a continuidade da palestra quando ouvi esta interpretação para um momento tão intenso de fé e tentativa de compreensão do Mistério. Que ganhava sentido para um cristianismo que se fortalecia e ocupava espaços por todo o mundo conhecido.

Não foi fácil para aqueles que ainda precisavam sacramentar uma doutrina, convencer de novas rotinas de vida e existir de forma diferente do que era estabelecido pelas religiões e forças dominantes. O culto pregado pela “seita do Nazareno”, como inicialmente era conhecida, se separava de um corpo maior (o Judaísmo) tendo a perspectiva de viver com suas famílias o ensino do jovem que iniciou sua pregação pelos mares da Galileia. De seita, virou religião reconhecida por muitos povos e chegou ao patamar de uma das maiores da história da Humanidade.

Ninguém disse que a história foi toda bonita. Embora muitos queiram bater nos pecados que o Cristianismo teve – perseguições, conversões forçadas, inquisição - é preciso olhar para o seu lado humanizador, em que preservou valores culturais e foi capaz de montar estruturas nas áreas de saúde, educação, social… Os mesmos princípios que nortearam os primeiros pregadores, mas que passaram por interpretações e ajustes com o andar da História. Com variadas visões, viram novos templos e pregadores brotarem e desaparecerem com os primeiros sintomas do coronavírus…

Agora que existe vacina no horizonte, as religiões precisarão se reinventar. Se já vinham em baixa, algumas atravessaram a pandemia apostando nas redes sociais. Certos de que, depois, o novo normal dará lugar ao novo presencial. Celebrações e eventos sentiram que os recurso da internet fizeram pontes com públicos que não se faziam mais presente e a oportunidade da vivência em comunidades virtuais. Entretanto, não creio que analistas sérios se animem a fazer previsões. Porém, uma coisa é certa: esqueçam o retorno ao que se fazia antes... é a aposta no cavalo errado.

As festividades de Natal e da virada serão difíceis. Com a mesma conversa de que se está cansado e uma “escapadinha” aqui e outra ali não causam problemas… Emblemática a charge mostrando a Morte e a menina - vinda de uma festa - sentadas na escada, conversando. A menina: “mas a gente seguiu todas as normas, todos os protocolos. Eu preciso ir?” A morte: “precisa sim, mas não te preocupa, tu estás levando junto a tua mãe e a tua avó!” Confirma a máxima de que as pessoas somente se dão conta da gravidade do momento quando perdem alguém próximo, que lhes é cara.

A escuridão que precede os primeiros raios de sol está se dissipando. Falta pouco para que a vacina chegue. A imunidade não acontece apenas porque ela já existe, mas porque, gradativamente, cerca o coronavírus e cria barreiras para a disseminação. Fizemos um tempo de advento (preparação) desde março. Merecemos uma perspectiva de vida e saber que o nascer de um novo dia é carregado de ressignificados nas relações e do entendimento da vida. Enfim, da compreensão dos nossos próprios medos e sofrimentos: a primeira luz no horizonte já dá sentido à nossa esperança!

domingo, 13 de dezembro de 2020

Depressão: viver o tempo da inutilidade

O livro “Tempos de esperas”, do padre Fábio de Melo, não é novo. Personagens trocam correspondências, neste caso, entre universitário e professor aposentado. Discutem conceituação filosófica a partir das alegrias e decepções do jovem numa troca de sentidos que leva ao amadurecimento de quem recentemente perdeu um amor. E que se perceba que, em qualquer etapa da vida, a própria vida tem que ressignificar os elementos mais simples (transformando em poesia), como na brincadeira em que é perguntado se é hora de comprar uma floricultura ou uma funerária…

A provocação vem pelo fato de que a namorada foi “roubada” por um florista e fez o mundo do garoto desabar em frustração e depressão. Alfredo tem dificuldades de recomeçar sem que antes entenda a necessidade de que o tempo de velar já passou e é preciso enterrar o que não foi capaz de entender. Até porque, de fato, o que aconteceu foi que “não entendeu o amor para além do tempo das utilidades”, como diz o filósofo Abner. E Clara (a amada) servia para ser um cadáver a ser dissecado em seus sentimentos e conhecimentos, porém, era preciso saber: e depois, o que restaria?

Alfredo avança um pouco, mas também retrocede, mostrando que amadurecer, pode ser o seu tempo de ser atrevido. No registro de Abner: “estás sendo arrogante porque tens a consciência de ser limitado”. Chorar as perdas idealizadas e procurar outros que nos ouçam – mesmo que às vezes não compreendam – faz com que as lágrimas se transformem em “palavras plenas de significado”… O ressignificar se faz nas pessoas, nas coisas e nas palavras como ao pedir que inicie um jardim, não o idealizado por especialistas, mas que retrate a capacidade poética de se relacionar com a natureza...

Gosto muito das reflexões do padre Fábio sobre o “tempo das utilidades”. Numa das suas histórias mais marcantes, fala do idoso que precisa ser colocado ao sol, mas também precisa ser recolhido. Aborda a diferença entre ser amado e ser útil, sem que se perca o valor. É saboroso perceber o quanto é capaz de olhar na perspectiva de quem é jovem, pleno de vida, mas se dá conta de que o horizonte fica mais bonito no entardecer, especialmente se a gente for capaz de encontrar uma forma de compartilhar com quem se ama. Falando de chegar à velhice, diz:

Quando eu viver aquela fase na vida: põe o padre Fábio no sol… Tira o padre Fábio do sol… Aí eu peço a Deus sempre a graça de ter quem me coloque ao sol, mas sobretudo, alguém que venha me tirar depois. Alguém que saiba acolher a minha inutilidade. Alguém que olhe pra mim assim, que sabe/que possa saber que eu não sirvo pra muita coisa, mas continuo tendo meu valor. Porque a vida é assim, minha gente, fique esperto, viu? Se você quiser saber se o outro te ama de verdade, é só identificar se ele seria capaz de tolerar a sua inutilidade.”

Fábio de Melo amadureceu e respalda o que diz na vivência e espiritualidade, relações e afetos. A forma como chegou à própria inutilidade – a depressão – e buscou energia para fazer o anúncio da vida e da esperança, pela palavra de Deus. “Fique esperto”: o tempo de Natal é de euforia para uns e tristeza para outros. O renascer – o recomeçar – pede que se deixe de lado a filosofia e pense mais na poesia – o lugar do mistério - onde se percebem carências mas, também, na proximidade do tempo da inutilidade, a andar sem pressa e ser mais verdadeiro… enfim, “viver, sem ter medo de ser feliz!”

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Menos fome, mais humanidade


Acompanho relatos feitos por entidades que se preocupam com populações em situação de risco (como os Médicos Sem Fronteira). Quase sempre, em lugares onde impera a violência ou regiões inóspitas. Não tem como se saber qual dos males é o pior: a guerra (ou guerrilha), que vitima os homens, mas não poupa crianças, mulheres e idosos, com as marcas que ficam pelo corpo e também no espírito; a desagregação dos grupos, quando são tratados como manada e redistribuídos até por outros países; e o espectro que desidrata e aniquila até a vontade de viver: a fome.

As medidas econômicas de auxílio do governo tem sido paliativo que ajuda, mas não é suficiente para acabar com um problema que não é causado pela guerra ou por elementos climáticos, mas por decisões políticas que canalizam recursos para a própria estrutura pública. Que vê nos gastos com a população um inconveniente, já que terá que repartir aquilo que se transforma em benesses para altos escalões. Repetindo: temos impostos de primeiro mundo, com serviços de terceiro e, sim, uma máquina que está sendo paralisada porque desatualizada e incapaz de atender às demandas sociais.

Os bancos de alimento das cidades, assim como o Banco de Alimentos Madre Tereza de Calcutá, o Instituto de Menores e as paróquias de diversas religiões estão correndo atrás, hoje, não para dar um Natal melhor para a população em situação de miséria, mas colocar o alimento necessário em suas mesas para garantir o sustento. Não é o panetone, o refrigerante ou um doce que vai alegrar a vida de famílias que perderam empregos ou viram suas rendas diminuídas. Isto é luxo comparado com a necessidade do arroz, do feijão, da massa, do óleo, leite… que permitam a subsistência.

Um conhecido disse que, este ano, não vai ter presentes para a família, amigos e pessoal do trabalho. Em casa, apenas o que for realmente preciso para uma ceia de Natal e Ano Novo. O que iriam gastar pretende transformar em cestas básicas. Já tinha a informação de entidades que atendem crianças em situação de risco e que, agora, estão garantindo alimento para suas famílias. Mas ainda faltam doações. Então, pela conta que fez, já sabe que vai doar, ao menos, o equivalente a três cestas básicas. Gostei da ideia e já contei para familiares: vou fazer o mesmo!

A campanha por menos fome (não vamos solucionar o problema num passe de mágica) precisa se transformar num momento de mais humanidade. Não creio que as perdas e os problemas causados pela pandemia nos deixem melhor enquanto sociedade. Mas creio, sim, que um número maior será capaz de perceber o quanto a visão de que “pobre é pobre porque quer” ou de que “não souberam aproveitar suas oportunidades” transformou-se em falácia difícil de se sustentar quando há uma cultura da pobreza que já vem de gerações, incapaz de, por si só, transformar esta condição.

A pandemia levou entidades a investirem em sistemas que permitem a doação de dinheiro, em alguns casos com a possibilidade de que se escolha os alimentos, até o recolhimento de bens de consumo. O sociólogo Betinho idealizou campanha nacional buscando a solidariedade entre os brasileiros: “quem tem fome tem pressa” é desafio de virarmos este ano difícil fazendo com que mais gente possa viver com menos sofrimento… e, quem sabe, bem mais dignidade!

domingo, 6 de dezembro de 2020

Natal: a celebração da saudade e da esperança

 

Chegamos a Pelotas no final de julho e eu havia completado quatro anos no início de junho. Minha família ainda estava em busca de parentes que vieram antes para os arredores da cidade e se acostumavam com o fato de que meu pai, seu Manoel, até então pequeno agricultor e prestador de serviços, especialmente na colheita do arroz, agora precisava se adaptar à vida de atendente de um “bar e armazém” que levaria seu sobrenome: “Raulin”. Não lembro do nome anterior do ponto de comércio, mas ficou gravado que eram irmãos conhecidos como “os três patetas”!

No 5º Subdistrito de Canguçu não havia uma igreja (ao menos que eu lembre). O padre aparecia uma vez ao ano e fazia os batizados, casamentos e as “encomendações” dos defuntos, recentes ou não. Com vizinhos religiosos, como a dona Rita, acabamos conhecendo a igreja de Santa Teresinha (com “s”, sim, por ter sido o diminutivo assumido como nome próprio – ainda manias de professor de redação!). Não tinha parâmetros para avaliar, um pouco pela idade, outro por não conhecer templos diferentes. Mas, era estranho que não tivesse forro e o piso fosse de tijolos expostos…

Mais tarde soube que a igreja sucedera a uma estrebaria, sim, o lugar onde abrigavam cavalos para atuarem no prado, em alta naquele momento, e lugar a ser visitado em finais de semana para diversão da família. Junto com a dona França, íamos eu, a Loci e o Cláudio (a Leonice ainda não existia) para as Missas de domingo pela manhã, quando, mais estranho ainda, descobri que o homem que atendia naquele lugar era um negro… também se adaptando a um ambiente que, embora fosse de trabalhadores pobres, na maior parte brancos, tinham ressalvas pela sua presença…

Testemunhei seu esforço para fazer com que a igreja Católica fosse sinal forte no bairro. Estavam começando os ventos que se fortaleceriam no Concílio Vaticano II. Mas ele já era figura constante nas nossas vidas, de batina, não se furtando em jogar futebol com as crianças nos campinhos, para onde as catequistas vindas da Minha Casa Rural nos levavam e davam as primeiras instruções sobre fé e religião. Fui um dos beneficiados pela escola do Padre Roberto, nas primeiras séries, instalada junto da igreja, com uma gráfica que lhe dava sustento e mantinha suas obras.

Só então, lançou-se atrás do seu sonho: uma nova igreja. A comunidade tinha poucos recursos e a demora foi imensa. Num Natal, reuniu lideranças e conhecidos para algo inédito: paredes levantadas, sem telhado e com montes de terra e material de construção, queria fazer a Missa do Galo nas novas dependências. A instalação de um caminhão que serviu para ser o local de colocação das mesas da Eucaristia e da Palavra. No “muque”, formou-se o espaço do sagrado que atraiu muita gente e impulsionou a sua conclusão, ao menos de uma forma que já fosse possível ser utilizada.


Sexta-feira, participei da Missa na Santa Teresinha. Lembrei dos que saiam de fábricas, comércio, prestação de serviços… Meu pai, seu Borges, seu João (os da minha rua) atendiam atividades pesadas, levantando paredes, em todos os sentidos… a mãe, dona Rita e outras ajudavam na limpeza… Nas paredes estão risos por representações; lágrimas pelos que partiram; vozes de reuniões e celebrações... Rezei por todos, pois se, hoje, há uma igreja que celebra o Natal por aqui, com certeza, outra têm o privilégio de viver o “natal” na presença e na companhia do próprio menino Jesus!

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

As vacinas estão chegando...

Os dias que se seguem ao segundo turno das eleições serão fundamentais para assumir (ou perder) o controle do coronavírus. Os atuais administradores, reeleitos ou não, terão que tomar medidas fortes para estancar o que o ministro Pazuello chamou de "repique", já que o período eleitoral aliviou medidas impopulares que, agora, até pensando na economia, serão retomadas. Sendo melhor que se restrinja a circulação nas primeiras semanadas de dezembro do que, depois, junto às festas de final de ano.

O simples fato de se ter no horizonte a possibilidade de uma vacina causou um alívio geral: parte da população sentiu-se vacinada virtualmente, achando que apenas a possibilidade já causaria o efeito da proteção. Errado. E vai-se pagar caro por este erro, já sabendo que os mais jovens estão se contaminando e os municípios lutam para ampliar o número de leitos especializados. Quem prega a necessidade de sair do estresse está piorando a situação para administradores e profissionais da saúde.

De fato, estamos perto de ter uma solução pela vacina. Mas cuidado: ela deve começar a ser distribuída no início do ano para profissionais da saúde e grupos de risco, em especial quem se encontra em casas geriátricas. Posso estar enganado, mas não creio que antes de março, abril, inicie a vacinação em massa. Olhando o calendário: quando inicia o outono, a chegada do frio e a possibilidade - agora batendo na madeira - de que efetivamente a segunda onda do coronavírus aporte no Brasil.

Por outro lado, existem lições a serem aprendidas, no que se refere aos hábitos de higiene: lavar as mãos adequada e repetidas vezes, o álcool gel, máscaras em contatos públicos e evitar aglomerações... A vacina dará um alívio, num primeiro momento, mas não vai acabar com o vírus e a sua propagação. A recomendação para idosos, grupos de risco e quem pode ficar em casa é que faça exatamente isto: restrinja a sua circulação, como um hábito de proteção pessoal e daqueles com os quais convive.

No início do mês de novembro, a Organização Mundial da Saúde teve, num dia, o maior registro de infectados pela pandemia. Já mirando a vacina, pode-se sentir um alívio diante da perspectiva. Mas não descuidar. Quase um milhão e meio de mortos no mundo e mais de 170 mil no Brasil. São números que não podem ser desprezados e pensar que o problema é dos outros. A segunda onda já bate no hemisfério norte e, com a imunização, chega amenizada, mas, é certo, ainda vai causar estragos...

As vacinas estão chegando... num dos primeiros textos sobre a pandemia acreditei que, ao final, estaríamos mais sofridos, maduros e sedentos de carinho. Necessitando respostas para a própria fé, sentimento de que vazios existenciais dão lugar a algo que não é apenas o corpo que um vírus consome causando sofrimento... mas um espírito teimando em não desistir da própria esperança... e, ainda, buscando sobreviver!

domingo, 29 de novembro de 2020

Natal e ano novo: para não perder a fé e a esperança


As comemorações das festas de final de ano, desta vez, serão atípicas. A situação financeira, pessoas infectadas e mortas, preocupação com o que pode acontecer deixam marcas de angústia que precisam ser vivida com aquilo que ainda nos resta da fé... Nós, cristãos, somos especialistas em esperança. Toda a vez que alguém diz que está enviando energia positiva para ajudar a curar feridas, retribui-se com o que se tem de melhor: a confiança em Deus que coloca um patamar diferente na capacidade de viver a própria esperança!

O Natal e a virada de ano são tempos para serem vividos como aqueles em que se diz: são difíceis, alguns ficaram pelo caminho, viveram-se momentos em que não se sentia e sequer se achava que houvesse uma luz no caminho... A resposta tem que estar na capacidade de cada um de não esperar pelo outro para fazer a sua parte. As próprias fragilidades, muitas vezes, comparadas com as do outro são insignificantes e mostram, apenas, que não se conseguiu deixar de orbitar em torno do próprio umbigo... 

A voz alegre do outro lado quando se faz chamada de surpresa é recompensa pelas vezes que se pensou em ligar mas achou que não se conseguiria falar... a mensagem enviada para saber se tudo estava bem é respondida rapidamente, parecendo que o outro estava ao lado, temeroso, mas esperançoso de que se teclasse e acolhesse nas poucas e simples palavras com seus erros e abreviações... A conferência reúne quem amamos e fazem falta, com sorrisos, brincadeiras e o carinho de que tanto se precisa.

A amiga que preparou a casa para o Natal contou que foi colocando cada coisa no lugar com uma oração e precisando tornar o coração mais leve... Ao montar a árvore, lembrou da explicação do pastor, sobre Martinho Lutero. Passeava à noite no inverno pela floresta e ficou encantado com a beleza dos pinheiros cobertos de neve, ornados com a luz das estrelas. Voltou para casa e quis repartir com a família o encantamento que tinha presenciado. Estava surgindo, ali, uma das mais belas tradições cristãs.

Na porta, colocou a guirlanda, que, lhe contaram, surgiu em Roma. Acreditavam que presentear alguém com ramo de planta trazia saúde, motivo pelo qual enrolavam diversos galhos, desejando que a família se mantivesse unida e ficasse bem. A Guirlanda de Natal também representava o desejo de sorte, e, pendurada na porta, é vista como um convite para que se viva o espírito natalino, que, se espera, já esteja presente naquela casa. Este ano que sua família estaria longe, precisaria mais do que nunca de que seu coração estivesse vacinado - e protegido - pelo espírito natalino...

Faltava montar o presépio. Sempre fizera aquilo com os filhos e netos... Uma amiga católica lhe dissera que era uma lembrança de São Francisco de Assis que fez o primeiro para mostrar a beleza da cena ao povo. Pediu ajuda para a vizinha e os filhos. Brincando e conversando, o tempo passou e a representação do nascimento de Jesus ficou pronta: houve um silêncio diante das pequenas imagens e luzinhas. A mão da menina que segurou a sua garantia: pode até ser um Natal e Ano Novo difíceis, mesmo assim, haverá de ser o desejo de que não se perca a fé e a esperança e se consiga ter um abençoado recomeçar em 2021!

terça-feira, 24 de novembro de 2020

E depois da segunda-feira?


Não há como fugir de comentar as eleições do próximo fim de semana. Dizer que elas estão polarizadas é repetir o óbvio porque restaram dois candidatos que, em tese, se identificam com a esquerda e com a centro-direita. Dos números que surgiram da boca das urnas ficou claro o que também já se havia dito: não era e não é hora para eleições, porque a população acabou demonstrando todo o seu desinteresse quando, entre nulos, brancos e ausentes, o "candidato" somou votos suficientes para chegar em segundo lugar!

A pandemia do coronavírus encontrou uma população ausente das questões políticas e aumentou a sensação de que continua sem prestar atenção ao processo eleitoral, que deveria ser o grande momento da discussão das questões locais, pautando candidatos que dessem respostas razoáveis e factíveis. Os discursos na televisão e no rádio, assim como a praga dos santinhos espalhados pelas ruas, mostrou que os políticos e seus partidos apontam para o que sabem que não vão cumprir e se vota neles sabendo que não cumprirão o que prometem.

O problema real é: "e depois da segunda-feira?" Ainda cedo da noite de domingo se terá o resultado das eleições e, não importando qual dos dois se eleger, tudo aquilo que apresentaram terá que enfrentar a realidade. E se esta realidade já era difícil antes da pandemia, vai se tornar ainda mais agora que muitos salários diminuiram, pessoas ficaram desempregadas, não haverá 13% para aposentados e o 13% do trabalhador virá minguado pelos descontos dos acertos de tempos parados e adequação das jornadas de trabalho.

A expectativa de terminar o ano com recursos minguados aponta para o próximo ainda com "as abóboras se acomodando com o andar da carroça". A segunda onda do coronavírus no hemisfério norte dá a dimensão de que esta "gripezinha" tem uma capacidade de resistência que não será debelada com a primeira vacina. Necessária, mas que não pode ser vista como a cura para todos os males, mas, sim, como um primeiro instrumento de combate a um vírus mutante.

Brinco com amigos que não me cadastrei ainda no Pix (sistema de transferência e de pagamentos bancários), assim como não pretendo entrar na primeira leva da vacinação. Por um simples motivo: ambos são insipientes e em fase de testes, havendo a necessidade de que sejam aperfeiçoados, assim como foram tantos outros sistemas e vacinas. Foi o caso da chamada "vacina dos velhos" que levou muito tempo para perder a desconfiança, mas, hoje, grande parte já incluiu na sua agenda anual, fazendo parte do cotidiano.

Não é comum um milagre na economia, assim como não é comum um milagre na medicina. Os experimentos precisando que os cientistas tenham espaço, financiamento e tempo para encontrar resultados. Vamos ter atendimento emergencial para quem trabalha na saúde, grupos de risco e circula mais. Para os demais, resta pedir bom senso: achar-se imune, colocar outros em risco, transmitir falsas esperanças são sinais de que há virus tão ou pior que o "corona": aquele que te impede de usar a máscara... e também o cérebro!

domingo, 22 de novembro de 2020

O detalhe entre um triste Natal e um Feliz Natal!

No próximo domingo, 29, além das eleições em segundo turno para muitos municípios, as religiões cristãs marcam o início do período natalino, quando, por quatro fins de semana, faz-se memória e preparação para o nascimento de Jesus Cristo. Tempo de ornamentar a casa, montar a árvore de Natal, colocar à porta uma guirlanda, que represente a renovação, e a contagem regressiva, acendendo as velas na coroa do Advento. Em tempos bicudos, o comércio já faz as suas campanhas, certo de que o Papai Noel, este ano, se vier, vai estar com os bolsos bem mais vazios...

O chamado "espírito de Natal" é contado em livros, filmes, páginas de jornais, pela internet, enfim, com momentos hilários, espírito aventureiro, mas, ao final, restando o sentimento de que deveria ser um tempo de emoção por muitos reencontros de familiares e amigos, recuperando ou refazendo laços que, de alguma forma foram perdidos no ano que passou. Por algum condão encantado, estamos mais propícios à bondade e à concórdia, tendo plena convicção de que o Natal não é um período de final do ano e sim um estado de espírito.

O que é festa para muitos, é tristeza e, até, depressão, para alguns. Experiências com pessoas idosas ou doentes, especialmente ao se aproximar do final, é a de que aumenta a possibilidade de que este não seja um tempo de alegrias - talvez sequer de tristezas - mas de muita saudades e sentimento de solidão, mesmo estando acompanhado de familiares...  J.J. Camargo é médico e escreve com propriedade e sensibilidade para o jornal Zero Hora de domingo. Na edição deste final de semana, afirmou: "quem pensa que câncer é a pior das doenças, não tem ideia do que seja a solidão na velhice".

Reli mais do que uma vez a história que contou quando recebeu para consulta uma senhora idosa que vive sozinha, já viúva e longe do filho. Com o veredito da doença, deseja preparar o filho e trazê-lo de volta, porque não quer morrer sozinha e já sente que o seu final se aproxima. A conversa descontraída, mais do que de médico e sua paciente, entre uma pessoa fragilizada e seu confidente. Com um final surpreendente: o pedido de usar o álcool gel para higienizar as próprias mãos e as do profissional, para poder segurar durante alguns instantes as suas mãos...

O papa Francisco disse: "sempre que possível, dê um sorriso a um estranho na rua. Pode ser o único gesto de amor que ele verá no dia." Estamos perdendo o espírito natalino por detalhes: nos desacostumando de prestar atenção em quem passa ou convive conosco, perdendo a sensibilidade para tristezas e decepções alheias. Há tantos "ruídos" por querermos fazer de tudo e não nos damos conta de alguém que não se sente disposto a festejos e entrou em depressão... Num período tão curto - mas tão intenso - ouvir, olhar e sorrir mais pode parecer quase nada, mas é a diferença entre fazer um triste Natal ou um Feliz Natal!

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Eleições e os "falsinhos" da pandemia

Quem foi votar neste domingo para prefeito e vereador pode constatar, tristemente, que se repetiu uma cena já comum pelas ruas: pessoas levam a máscara na mão ou pendurada no pescoço e somente colocam em frente à boca e ao nariz quando lhes é cobrado. Se já agora que a temperatura é amena as desculpas são as mais diversas para enrolar e se negar a utilizar um dos elementos de proteção própria e cuidados para com os outros, então imagine quando, efetivamente, chegar o verão.

Alguns falam do cansaço com tudo o que está acontecendo e que as pessoas
precisam se dar ao direito de desopilar. Esta tolerância do erro menor é o que advém da nossa falta de educação. Uma visão de que se pode dar certos "direitos" que são dos males o menor e não causarão maiores problemas... Como se pode ter certeza de que é assim que vai acontecer? Há casos de infectados que estavam tendo todo o cuidado, mas conviviam com pessoas que transitavam por outros meios e se tornaram portadores.

Além do uso da máscara, aglomerações, desrespeito ao distanciamento social e "esquecimento" do uso do álcool gel. Uma senhora disse que não usava álcool porque ressecava as mãos... Quando amigos dizem que me tornei um chato com os cuidados creio ser bem claro: prefiro falar e até me tornar inoportuno repetindo o mesmo mantra até que se conscientizem, do que estar em silêncio nos seus velórios...

O mapa atualizado da pandemia no Estado mostra que o vírus até deu uma refreada, mas, coincidentemente, exatamente no período que antecedeu as eleições. Agora, mais de dez regiões com bandeira vermelha e endurecimento nas regras de atividades sociais, educacionais e de empregos. Dos Estados Unidos, seu novo presidente foi categórico: empossado, uma equipe de técnicos vai definir áreas que precisarão entrar em lockdown - fechamento da cidade ou de uma de suas regiões - pelo período necessário...

Os "falsinhos" de plantão estão dando um jeito para vender a ideia de que se exagera nas recomendações e que as medidas tomadas vão causar uma crise ainda maior para economia. Pena que a memória do brasileiro seja curta: a economia já vinha mal... antes da pandemia! E vai ficar pior quando se apresentar a conta, já no próximo ano. Por outro lado, o governo que deveria estar preparado para enfrentar situações adversas preferiu surfar na onda política e discutir em todos os tons o que desse dividendos eleitorais.

Reclamações com a eliminação de locais de votação - previamente anunciada - e desconhecida por parte da população, até do porquê de idosos passarem à frente... Sobrou para os mesário, com agressões verbais e físicas. As eleições deveriam aperfeiçoar o convívio democrático, mas se tornaram um fardo recoberto pela indiferença de muitos e o oportunismo de poucos... Triste Brasil: sem sermos capazes de fazer história no presente, ainda queremos ser o país do futuro...

domingo, 15 de novembro de 2020

Lembranças, com um gosto de solidão...


Depois que publiquei a crônica de domingo, falando sobre minha experiência político-partidária, especialmente com o saudoso Bernardo de Souza, tive reações diversas: de quem não sabia que eu havia trabalhado na prefeitura, dos que achavam que eu sempre trabalhara na Igreja e na Universidade Católica, mas também aqueles que foram ainda mais longe nas lembranças, boas lembranças, de um tempo privilegiado em que - jovem - se vivia o fim do regime militar e passar dos anos 2000 era apenas um sonho.

Antes, refleti sobre as lembrança dos mortos e recolhi da Neca Silva: "em criança, acompanhava a mãe ao cemitério e, enquanto ela limpava o mausoléu, eu ia, fascinada, para uma estátua de Jesus, imensa, e ali ficava... sentava em seu colo e conversava. A família do túmulo me conhecia e admirava o quanto eu gostava dali. Quando vou a Dom Pedrito, rezo para meus pais e irmãos, mas, na saída, meus pés traçam o caminho até aquele Jesus, não sento mais em seu colo, mas o coração bate forte".

Numa sexta-feira pela manhã, o casal Lupi e Kátia passaram pela minha casa pois iriam sair com o pai dela, viajando para Piratini. Na passada, deixaram um pão feito em casa, que o Lupi insiste em dizer que foram os dois que fizeram (mas eu ainda creio mais na Kátia...). Como pouco pão, então, reparti um pedaço com a Roberta e o filho, o Pedro, meus vizinhos. No dia seguinte, trocamos impressões: a Roberta dizia que o pão lembrava aqueles que eram feitos pela sua avó... eu lembrava dos que o meu pai fazia...

Andanças por caminhos dos cemitérios mostram o quanto é importante encontrar uma forma particular de viver com aqueles que permanecem ao nosso lado. A pandemia - e a própria vida social - nos priva do convívios de familiares e amigos. Os que se foram são vozes que vêm com as lembranças parecendo que a proximidade física de então se transforma em algo mais profundo: a proximidade espiritual. Uma questão de fé: a sensação de que o Universo, de alguma forma, ainda nos liga e aproxima.

Um simples pedaço de pão levou a Roberta à casa da avó e aos tempos em que conviviam. A mim, momentos em que meus sobrinhos vinham à tarde para o café e o pai assava um pão, preparando rodas de carreta ou bolinhos de chuva. Iniciava pelas massas, sovadas e estendidas sobre uma pedra. As frituras eram feitas dentro da churrasqueira, mas ao abrir o portão já se sentia o cheiro de gostosuras, assim como o de café sendo passado...

Os caminhos da saudade levam pedir colo, como conta a Neca, para se aconchegar, nem que seja a uma estátua com a representação de Jesus. Cheiros e gostos ficam impregnados nas lembranças e parecem repetir sorrisos e abraços que estão ausentes de nossas vidas. Não causam dor, mas uma tristeza contida, mesmo que, algumas vezes, uma lágrima percorra as marcas que o envelhecimento deixou em nossos rostos. Onde "o coração bate mais forte" e se continua a luta para fugir - e entender - a própria solidão...

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Próstata: prevenção e preconceito


A pandemia do Coronavírus trouxe consigo diversas consequências. Na área da saúde, demonstrou o quanto o sistema continua vulnerável e precisa de aportes para chegar a um nível adequado de serviços à população. Além do atendimento dos pacientes infectados, por ter deixado de lado o cuidado com outros problemas que ficaram com a demanda reprimida. Sem contar o caso daqueles que encontram uma desculpa para não enfrentar a "síndrome do jaleco", isto é, a consulta presencial com um médico.

Um dos mais renitentes em fazer prevenção e procurar atendimento quando necessita é o homem. Desde sua fundação, o Instituto Lado a Lado pela Vida realiza iniciativas para promover a mudança deste comportamento. Em 2011, lançou a campanha Novembro Azul, para conscientizar da importância de diagnóstico precoce do câncer de próstata, tendo no elemento masculino o protagonista da própria saúde, cuidando de maneira integral, com hábitos saudáveis e realização dos exames necessários.

O descuido do brasileiro tem sido responsável por uma estatística muito séria: a do câncer de pênis. No último ano, cerca de 1.600 homens precisaram fazer amputação deste órgão por relaxarem a prevenção e descuidar a higiene íntima, que deveria ter sido aprendida com pais e responsáveis, desde a infância. Para erradicar o problema é necessário que se aprenda com as mulheres a fazer a prevenção desde cedo e não ter vergonha de buscar informações.

O instituto apresenta as diversas fases e aprendizado. Na infância: prevenção e cuidados devem iniciar cedo, a melhor forma de viver bem as outras fases da vida. Na adolescência: informação, diálogo e  não ter medo do enfrentamento podem reverter o crescimento de muitos problemas com a saúde. Na vida adulta se constata que as doenças que mais matam são exatamente as que poderiam ser prevenidas. Na terceira idade, hábitos saudáveis e rotina de consultas e exames dão o direito de envelhecer sem sustos.

Câncer tem cura, basta prevenir. Para vencer esta luta é preciso conhecer o inimigo, que encontra "distraído" um em cada seis homens e acaba desenvolvendo uma doença de fácil diagnóstico. Assim como o outubro é rosa, para lembrar dos cuidados com a mama, o novembro é azul para que os homens tratem da próstata. Entre os que tem medo do dedo do urologista e quem sabe que sua vida vale mais do que um preconceito, há no horizonte a possibilidade da retomada de uma vida plena e saudável.

A pandemia não pode ser desculpa para a omissão no tratamento, tanto por parte dos serviços públicos e privados, quanto da população. Novembro é o mês de alerta através das mídias e campanhas institucionais, repetindo o que pode parecer o óbvio, mas que ainda é responsável pelo fim de muitos descuidados: o câncer mata. Ir em busca de milagre quando não houve prevenção - e está avançado - é prova de irresponsabilidade que nem o Santo consegue atender...

domingo, 8 de novembro de 2020

Eleições, pandemia e lembranças...


O ano era 1982. Até então não havia participado de atividades político-partidárias, mas o envolvimento com as comunidades de base levou a uma mobilização da zona norte de Pelotas pela melhoria no atendimento da empresa de ônibus Esperança. O canal na prefeitura era o secretário (se não me engano, na época, de serviços urbanos) Bernardo de Souza. Muitas reuniões, conversas e melhora significativa do serviço. Foi natural que, naquele ano, me envolvesse na campanha que elegeu Bernardo para prefeito.

Quando assumiu, pensei que minha missão tinha terminado. Fiquei surpreso ao receber sua visita, no secretariado de pastoral, convidando para integrar a equipe que assumia em 1º de março de 1983. Mudança radical: começando pelo fato de que as finanças estavam a zero e, por sete meses, não vimos nem a cor do dinheiro, sobrevivendo de bônus de supermercado, que era uma antecipação de salário. Mas, como diria o professor Marasco, fazíamos a "política da inocência" e tivemos que aprender a lidar e fazer funcionar a máquina pública.

Quando conto minha experiência daqueles quatro anos, digo que foi o complemento do meu aprendizado no curso de Comunicação Social da UCPel. Ali, aprendi a fazer marketing político na prática, com a definição mais clássica: "a capacidade de argumentar e convencer" e não de fazer proselitismo, ou colocar goela abaixo qualquer produto. Um grande número de lideranças vinha dos meios religiosos, populares, sindicais e acadêmicos e, de fato, não pensava em carreira política, mas encontrar formas de melhorar a vida da cidade e de quem nela habitava.

Já tinha percorrido praticamente todos os recantos dos bairros que ficam na zona norte, porém, só então, me deparei com as áreas mais pobre da cidade e tomei conhecimento do seu interior (que era extenso, na época apenas Capão do Leão havia conseguido sua emancipação. Seria seguido por Morro Redondo, Arroio do Padre e Turuçu). As diferentes realidades e atender demandas reprimidas por uma máquina pública que já estava com dificuldades para se manter, quanto mais de prestar os serviços que tinha por obrigação.

Nos momentos mais difíceis, o Bernardo mostrava como não desistir. Numa ocasião, no interior, chegamos cedo tocados por muita chuva. Devia haver uma meia dúzia de gatos pingados no salão para um encontro que aconteceria à tarde. Ao chegar, relatamos de forma negativa a situação. Quando falou, iniciou valorizando quem se fazia presente, dizendo que possivelmente muitos outros gostariam de estar ali e o tempo não permitira. Os presentes mereciam, mesmo assim, que se tocasse o encontro...

Minhas lembranças vêm em função de que no próximo fim de semana teremos eleições para vereadores e prefeito. Num tempo inoportuno em função da pandemia, já tendo mostrado o desinteresse popular e o oportunismo de certos candidatos. Marcadas estão e é necessário que se participe. Deixar de fazer significa, depois, não ter o direito de reclamar. Afinal, no dizer de Edmund Burke: "para que o mal triunfe basta que os bons fiquem de braços cruzados".

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Uma "pandemia" para a educação?


A pandemia do coronavírus provou o que já se sabia há muito tempo: recursos existem, mas dependem de decisões políticas para terem sua destinação adequada. Caso da saúde, que já beirava o caos e, de uma hora para a outra, precisou que se encontrassem formas de equipar hospitais e postos de atendimento, qualificar e pagar pessoal, ter insumos que atendessem desde a limpeza até o consumo de medicações. Infelizmente, também se viu que os "abutres" passaram a rondar a área...

"A dor ensina a gemer" é um ditado popular que faz sentido nesta época. Lideranças políticas e administrativas foram pressionadas a dar respostas para problemas que atropelaram o conhecimento que se tinha e planejar alternativas dos males que poderiam acontecer. Mesmo assim, tem gente achando que o remédio foi pior do que a doença, para quem preferiu prevenir do que correr atrás. O número de curados passa a ter valor significativo, mas ressalta as mortes que poderiam ter sido evitadas. 

Nestes dias em que parte dos escolares volta à sala de aula, a pandemia priorizou o que mobilizações não conseguiram: recursos para uma das áreas sociais que mais enfrenta problemas - a saúde. Com um viés sombrio: a piora foi gradativa, acostumando parte da população, como se isto tenha se transformado no "normal": "é assim e sempre foi assim!". O pensamento que não quer calar é: serão necessárias outras "pandemias", em áreas como a educação, segurança, habitação para se obter respostas efetivas?

Responsáveis e alunos correm atrás de soluções que precisam ser construídas a partir de modelos já existentes - como o ensino a distância - alternativa remota para o acesso de quem tem dificuldades com o presencial. Questiona-se a qualidade do que é oferecido e a capacidade de quem o procura de receber uma educação que, de fato, atenda ao aluno. De uma hora para a outra, problemas restritos exigiram solução de massa, sem ter receita para o atacado e tendo que atender às picuinhas do varejo...

De todas as discussões que se fazia antes do coronavírus, uma é certa: o estado deve estar presente, normatizar e fiscalizar - de fato - o ensino. Em especial, estabelecer as prioridades, começando pelo básico. Com problemas econômicos no horizonte - já a partir deste ano - escolas terão que dar respostas a questões elementares nas áreas de educação, alimentação e saúde. De forma criativa, liberar os pais para a luta pela sobrevivência, sem tirar das crianças os mínimos direitos de se constituírem cidadãs. 

Não há como resolver todos os problemas de uma só vez. O processo educacional é uma estrada onde se aprende mais do que colher flores, retirar ervas daninhas, remover pedras e afastar insetos. Leva em conta o lugar social de onde se vêm, na maior parte das vezes, com absoluta pobreza de recursos. Caminhar sem medo dos problemas e recomeçando, juntos, todas a vez que uma criança tropeçar e ficar para trás...

domingo, 1 de novembro de 2020

Um caminho de muita saudade...

A memória dos mortos, no dia de Finados, é celebrada de forma diferente por diversas culturas. Quem assistiu "Viva, a vida é uma festa", teve uma ideia de que os mexicanos mantém uma tradição indígena de  celebrar seus ancestrais, honrando os já falecidos. Conta a tradição que os mortos visitam parentes, sendo recebidos com comida, música e doces preferidos. As pessoas fazem máscaras de caveira, vestem roupas com esqueletos pintados ou se fantasiam de morte, incluindo
crianças e idosos.

A tradição portuguesa é diferente: celebram-se cultos e visitas são feitas aos cemitérios para colocação de flores e acender velas. Da mesma forma que os velórios e enterros, pranteia-se a ausência e se recolhe de forma mais sentida e entristecida. É o hábito cristão de dedicar um dia para rezar e homenagear os mortos, que remonta ao século V, mas foi no século XIII que o dia dois de novembro passou a ser o Dia de Finados.

Preparando a crônica de domingo, queria olhar para outras realidades antes de falar a respeito dos meus falecidos. Já tinha me impressionado com o personagem Miguel, da animação "Viva, a vida é uma festa", que para realizar seu sonho precisa entrar no mundo dos defuntos - mas muito vivos! - e resgatar a história da sua família. Não tinha me dado conta do quanto o filme é, do seu jeito, o retrato de uma cultura da morte, olhada por outro ângulo, e capaz de influenciar populações mais pobres de diversos países.

A primeira lembrança foi de que, logo que a mãe morreu, seguidamente, vizinhos falavam do quanto admiravam ver meus pais passearem pela manhã, na sua caminhada diária, observando, cumprimentando e conversando com os mais antigos. Reviviam fatos de mais de dez anos (tempo em que o pai faleceu). Mas que as recordações eram tão marcantes que pareciam ainda fazer o mesmo trajeto, sem pressa e dispostos a um dedo de prosa antes de voltar para casa e tomar seu chimarrão.

Há uma lista na memória para se relembrar: parentes, amigos, vizinhos, conhecidos. Um caminho por onde se faz história e, aos poucos, vai-se deixando companheiros e companheiras. Novos chegam e nos acompanham, mas o sentimento é de perda e de que não há como compensar a ausência. Toda a euforia do início da jornada dá lugar ao sentimento de que se está mais perto do fim e que é necessário tomar consciência de que, também para nós, há um tempo em que todo o andarilho conclui sua jornada.

Um caminho de muita saudade... Confesso: gostaria que a vida, assim como a morte, fosse sempre uma festa... O dever cumprido - e novas gerações tomando nossos lugares - indicam que se viveu bem. Talvez nossos mortos não participem do reencontro entre os dois mundos, para que a gente conte coisas em que eles não acreditarão e nos encantem com o que nos espera. Até lá, o melhor é cuidar dos vivos e deixar que os mortos cuidem dos seus. Afinal, é preciso viver, pois a vida pode ser, sim, uma festa!

terça-feira, 27 de outubro de 2020

A hora de contar as feridas


A senhora e a filhinha saem às 7 horas em direção à creche e ao trabalho usando máscaras; o senhor que recolhe material reciclável, pouco depois do almoço, usa máscara; o rapaz que chega para o futebol, na cancha, usa máscara... Já não são a regra, mas a exceção. Infelizmente, a flexibilização das normas de convívio - ao invés de esperar a vacinação da "manada" para que se aliviassem os procedimentos - se deve ao fator político que escancarou a porteira e deixa passar, inclusive, o coronavírus. 

Não há dúvida de que o processo eleitoral esqueceu os ditames de "seguir a ciência" para o de "seguir a conveniência", mantendo o discurso e, na prática, aceitando pressões, inclusive dos sem noção que se apegam aos sofismas de defesa dos seus direitos, esquecendo que, em sociedade, em muitos momentos, é preciso priorizar o coletivo. Para isto, seria preciso a capacidade de bater pé, quando necessário, dos quadros administrativos, sem surfar na onda de interesses próprios e de quem os apoia.

O olhar se volta para a Europa onde acontece a segunda onda, mais forte e letal. Mesmo que os números sejam inferiores aos Estados Unidos e Brasil, onde interesses eleitorais - não apenas desta campanha para a qual grande parte da população sequer está prestando atenção - miram o pleito presidencial. Lá, se encontram na entrada do inverno, fator decisivo para que o vírus modificado preocupe. O que, se espera, não aconteça por aqui, já que, antes desta estação, se terá algum tipo de vacina.

Embora se veja como uma boa notícia a imunização de parte da população, não se conseguirá cobertura completa, o que significa que o vírus continuará circulando. Já se pensa em estabelecer grupos prioritários - como os da saúde e de risco - para iniciarem a fila. Então, mesmo com a diminuição dos casos, é necessário consciência de que, ainda em 2021, continue-se usando máscaras e que a assepsia faça parte do novo normal. Infelizmente, o que não se aprendeu com civilidade, vai se aprender na marra...

No pós-pandemia, idosos e pessoas em situação de risco precisarão de mais cuidados, o que também redobra a atenção por parte de responsáveis e de quem, de alguma forma, interage com eles. Por exemplo, reuniões e celebrações de grupos religiosos. Nos últimos meses, multiplicaram-se lives de diversos credos, mas também da área cultural e entretenimento. Os riscos continuam e a atenção também: não se pode abrir mão deste que já se tornou um complemento da vida normal...

É hora de contar feridas. As "planilhas" dificilmente fecharão: crianças que perderem convívio social e aprendizado presencial; adultos que viram esvoaçar emprego e tiveram vencimentos reduzidos; idosos que perderam a referência de familiares e amigos... A força pode estar no que Robert Schiller pontuou: "deixe as suas esperanças, e não as suas dores, moldarem o seu futuro". Amém, que assim seja!

domingo, 25 de outubro de 2020

Carlo Acutis: a vida é simples assim...


Gosto de nomes e situações que fogem ao convencional, sem serem pretensiosos. Em programa de rádio, lembramos de alguns e disse que um dos que me marcou se chamava "Pelotense a caminho do Sol". Poético: pleno de sentido e de atrativo. Depois, a televisão anunciou espaço de entrevistas que valorizava o que pessoas que convivem conhecem uma das outras. "Simples assim" não aponta diagnóstico nos relacionamentos, mas se dar conta de que, na maior parte das vezes, a graça é que a vida é, mesmo, simples assim...

Quando faço minha oração, sempre leio algo sobre o santo do dia. Pessoas especiais que nem sempre foram marcantes por mudanças sociais, mas fizeram a diferença nos ambientes em que viveram. Agradeço por aqueles e aquelas que a história apontou como diferenciados para sua época, mas especialmente por "santos" e "santas" dos quais não temos nenhum registro, já que viveram plenamente a sua capacidade de empatia com os menos favorecidos ou com quem, naquele momento, precisava de uma mão estendida. 

Tive a graça de conhecer alguns destes "santos encarnados". Registrei num texto chamado "a solidariedade de dona Braulina", que ainda mora em nosso meio, na Vila Silveira, e da qual dizia que possivelmente não soubesse dar uma definição para "solidariedade", mas sim o que fazer com ela, na prática... Daquelas pessoas para quem se deve pedir a "bênção" por cada vez em que visita um doente, leva uma "quentinha" para uma família, ou passa com uma trouxa de roupa para lavar e aliviar as dificuldades de alguém.

Quando escrevi sobre música italiana, um comentário veio da minha prima Leli. Lembrou a versão da música "era um garoto que como eu...", do italiano, 1967, quando Gianni Morandi interpretou "c'era un ragazzo che come me...". Das preferidas, que não citei. Parece que existia um motivo especial... Podem pensar que não tem nada a ver, mas foi minha lembrança quando comecei a tomar conhecimento e me interessar pela vida de quem pode ser o mais novo santo da igreja católica: Carlo Acutis!

Desenterrado e com grande parte do seu corpo encontrado em bom estado de conservação, foi elevado ao altar dos beatos, o primeiro passo para sua santificação, vestindo calças jeans e tênis Nike. Morreu aos 15 anos vítima de uma leucemia repentina. No dia 10 de outubro, foi beatificado em Assis, na Itália. Garoto típico do século XXI, fez seu apostolado pela comunicação, informática e redes sociais, conectado com uma geração de católicos afastada de muitos mitos da santificação. 

O jornal El Pais o chamou de “influencer de Deus”. Dançando diante da câmera, jogando futebol, rezando o terço ou ante a Eucaristia... apenas "um garoto que como eu..." amava a vida e sua  fé o consagrou na morte. Um novo referencial para jovens que, como na música, não tem a guerra como perspectiva, mas precisam ser resgatados da indiferença e, olhando para Carlo Acutis, encontrar um santo pra chamar de seu...

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Uma defesa que não precisaria ser feita...


O lançamento da encíclica Fratelli Tutti, recentemente, recolocou o papa Francisco no centro das discussões. Num documento pastoral de fácil compreensão, apela para a fraternidade universal e a amizade social. O suficiente para que os críticos, até mesmo dentro da igreja Católica, lançassem farpas sobre o pensamento de um pastor, que, a exemplo de João XXIII, tem um olhar sobre o seu próprio rebanho, sem perder a noção da realidade social e espiritual em que vive a humanidade.

Em sala de aula ou discussões pela internet, quando pinçam um ou outro elemento e tentam fazer uma análise descontextualizada, sou cirúrgico: não há discussão se a pessoa, ao menos, não se der ao trabalho de ler material que está à disposição - impresso ou pelos meios eletrônicos. Se, em tempos não tão remotos, era difícil conhecer a íntegra do pensamento papal, hoje, está à disposição e fazer uma leitura preguiçosa, a partir de outros, é um desserviço e uma irresponsabilidade.

Quando católicos não se prestam para conhecer o que pensa o papa, grupos filosóficos ou religiosos o fazem e endossam o pensamento de Francisco. Caso de maçônicos que o elogiaram. Suficiente para ganhar a pecha de "documento maçom". Não duvido que ficassem felizes de ter um papa escrevendo textos para suas discussões filosóficas. Mas quem disse isto vai ter trabalho se outros grupos o elogiarem. E terão que chamar de "documento espírita", "budista", "protestante", "umbandista" e assim por diante... 

Num outro ambiente, comentou-se que as críticas são porque o "papa deixa a bola quicando". Expressão do futebol para dizer que deu oportunidade para o adversário aproveitar da situação e levar vantagem. Há sete anos à frente da igreja, Francisco não foi "convertido" no que muitos queriam: um intelectual, como tivemos Bento XVI; ou político, como João Paulo II. Marcantes e respeitáveis, mas que, na essência, não tinham este olhar sobre a periferia do mundo, para muito além dos muros do Vaticano.

Das muitas maldades que circulam, especialmente pelas redes sociais, está "o equívoco que foi a sua escolha". Não sou teólogo, mas do pouco que entendo, um católico que pense ou diga algo assim está cometendo um grande pecado: Francisco foi eleito num conclave de cardeais. Para quem não lembra, eminentemente conservador... sob a ação do Espírito Santo! Então, quem duvida das atitudes tomadas pelo papa está duvidando do próprio Espírito Santo... sugerindo que poderia ter se enganado! Como assim?

Esta é uma defesa que não precisaria ser feita... Com honestidade e bom senso se percebe que Francisco não precisa flertar com filosofias como o marxismo, quando se tem a Doutrina Social da Igreja, a respeito da organização social, política e econômica, que embasou o pensamento de outros grupos. Em tempos de "achismos", pensar dói ou cansa... mais difícil ainda é buscar uma sociedade em que sejamos "Fratelli tutti!"

domingo, 18 de outubro de 2020

A trilha sonora das nossas vidas

Saí cedo de casa, 11 anos, completaria 12 em junho. Naquele tempo o seminário menor compreendia também a formação fundamental. Dos 17 meninos que ingressaram naquele ano, uns 10 eram de origem italiana. Foi meu primeiro contato com falantes de outra língua, mesmo que, neste caso, fosse um dialeto que traziam dos migrantes que povoaram a região da serra. Melhores de vida, contavam as histórias dos avós que vieram corridos pela fome da Itália (conhecia algo semelhante, pois meus pais saíram de Canguçu na mesma situação) e enfrentavam as dificuldades que "exportaria" colonos ítalo-brasileiros em direção às regiões que se tornariam celeiros de produção agrícola do Brasil.

Acordávamos pela manhã com músicas, tocadas pelo padre Guerino. Em muitas ocasiões, com o cancioneiro italiano. Corria a segunda metade da década de 60 e as canções que passavam pelos festivais - especialmente o de San Remo - popularizaram cantores como Domenico Modugno, Gianni Morandi, Sergio Endrigo, Peppino di Capri, Gigliola Cinqueti e tantos outros. Seu romantismo dominava o mundo e não éramos indiferentes... Depois veio o padre Olavo Gasperin e as suas audições musicais, nos finais das tardes de sábado. Nem precisa dizer que era de origem italiana e conseguia, ainda com a Casa Beiro de Discos, os lançamentos, fazendo um apanhado e refinando nosso paladar cultural.

No apagar das luzes daquela década, Roberto Carlos fez parceria com Sergio Endrigo e cantou no festival de San Remo, apresentando Canzone Per Te. Foi como chegar a final num dos grandes campeonatos de futebol. A torcida e o resultado: Roberto cantou, encantou e levou o troféu. Não se deu o mesmo quatro anos depois
, quando apresentou Un Gato nel Blu. Estávamos equipados com radinhos de pilha e varríamos as ondas curtas em busca do sinal da RAI Itália, que transmitia os espetáculos e chegava oscilante, havendo momentos em que se escutava "perfeitamente" (para então), ou ia morrendo lentamente, até sobrar a estática, um ruído irritante e abafado.

As canções italianas chegaram aos bailinhos da década de 70, quando embalavam os flertes e alguns namoros mais sérios. O italiano macarrônico de que se dispunha (já era tempo em que se pensava em aprender inglês e, até, um pouco de francês, mas não passava pela cabeça aprender italiano), servia para que se virasse papagaio de pirata e repetisse no ouvido das meninas algumas palavras ou frase de sentido desconhecido. Engraçado, Gigliola Cinquetti, em 1966, cantou Dio, Come Ti Amo. Nos meus tempos de seminário, confesso, pensava que era uma declaração a Deus... somente mais tarde, fui entender que era a intensidade com que se estava, como se dizia, enamorado por alguém... 

Para nós, os mais velhos, são músicas que não morrem. Fizeram a diferença em muitos momentos. Repaginadas, as encontrei em festas, formaturas, bailes e, imaginem só, até em funeral. Letras inspiradas e melodias envolventes que serviram para que surgisse no Brasil uma série de cantores que fizeram versões, muitas vezes sequer respeitando os originais. Ou surgiram brasileiros capazes de interpretar com maestria como Zizi Possi e Délcio Tavares. Hoje, quando ouço uma playlist feita no computador ou no smartphone em que recupero todo o romantismo de uma época, tenho que agradecer a Deus por ser privilegiado... Em tempos de sofrência, recorro à informática para salvar meus ouvidos...

Vivi neste o tempo em que ouvia, ainda na vila Silveira, músicas tocadas pelas torres dos cinemas que chamavam para as sessões, especialmente matinés de domingo, arranhando os discos de vinil, ou as grandes paradas de sucesso; fui privilegiado em ter o bom gosto musical de pessoas que me iniciaram no conhecimento da cultura e os sabores da comida italiana. As mudanças eram inevitáveis, pois começavam a rodar as músicas dos Beatles e dos Rollings Stones, que criavam um novo jeito de "embalar o esqueleto". Mas ainda havia o romantismo de se desacelerar luzes, o som e dançar devagarinho com o gosto de que o tempo era apenas um dos muitos detalhes que teríamos que enfrentar pela frente...

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Desculpas não protegem a saúde


Ela apareceu de peruca no corpo do Jornal do Almoço... Algum tempo depois, já no RBS Esportes, mostrava seu cabelo curtíssimo, modulando o belo e expressivo rosto da apresentadora pelotense... Entre um e outro, anunciou que deixava de usar o cabelo postiço para se mostrar tal e qual estava agora, depois de passar por um carcinoma - o câncer de mama. Alice Bastos Neves, sem perder o sorriso e a simpatia, postou-se ao lado de mulheres que enfrentam situações parecidas e reforçam a conscientização do Outubro Rosa.

O Outubro Rosa - prevenção do câncer de mama (e mais recentemente sobre o câncer de colo do útero) - assim como o Novembro Azul - cuidados com o câncer de próstata - transformaram-se em momentos emblemáticos no tratamento de doenças que podem ser curadas se atendidas adequadamente. As mulheres já compreenderam que faz parte das suas rotinas, enquanto parcela dos homens se equilibra entre saber que precisa e a maledicência de quem é atrasado e preconceituoso e acaba fazendo seguidores...

"Quanto antes melhor" é a chave motivadora e deve servir de incentivo a que se busque suporte adequado em postos de atendimento da rede pública ou particular. As campanhas precisam ganhar suporte das redes de atendimento para adequar sistemas de prevenção e, depois de detectado, fazer o tratamento. Porém, é preciso começar o mais cedo possível para evitar o pior. Esta não é uma área para se fazer politicagem, não bastando anúncios bem elaborados em meios de comunicação, se, depois, na prática, não encontram o atendimento devido.

As pacientes que necessitam deste serviço já encontravam dificuldades em conseguir consultas médicas e exames. A pandemia do coronavírus, infelizmente, piorou a situação. Recentemente, quando o Ministério da Saúde lançou a campanha do Outubro Rosa 2020, foi apresentado um levantamento feito pela Fundação do Câncer, com base nos dados do Sistema Único de Saúde (SUS), que indicou a queda de 84% nas mamografias feitas no Brasil, em comparação com o mesmo período do ano passado.

A diminuição de atendimentos mostrou o quanto é preocupante - enquanto ainda se tem no horizonte uma segunda onda do coronavírus - este refluxo da crise sanitária. Exige um cuidado com o  represamento de exames e tratamentos que foram interrompidos ou adiados. Das muitas consequências para o pós-pandemia, está lançado um desafio para o SUS, demonstrando que a saúde pública, mais do que nunca, precisa ser prioridade para os governos.

Desculpas não protegem a saúde: dadas pelas autoridades ou atendentes dos serviços nos pontos em que a população tem seu acesso e as que "justificam" que não se insista com o direito previsto pela universalização do atendimento à saúde. Neste momento de fragilidade, sente-se na pele as dificuldades e as incertezas. O mantra continua o mesmo: "Vai passar!" Mas, enquanto não passa, não custa nada cada um insistir e fazer a sua parte...

domingo, 11 de outubro de 2020

O mundo da fantasia e a magia do "faz de conta"

Um programa de rádio lembrou de brinquedos que apresentadores e ouvintes tiveram na sua infância. Entrevistas de jornalismo normalmente têm um público mais velho, passando dos 30, consequentemente, daqueles que são pre-eletrônicos, quando muito puderam usufruir dos games de tipos restritos e preços que não cabiam nos bolsos de todo o mundo. Um dos comentaristas mais velhos, voltou um pouco mais no tempo e contou da sua experiência, sem artefatos de plástico ou industrializados. Fiquei atento, porque era a descrição do que aconteceu na minha infância.

Raros e restritos eram os brinquedos em série, mas a criatividade fazia com que se "torneasse" um pedaço de madeira e transformasse em taco. Uma lata de óleo servia como "casa" para o jogo. A mesma lata que poderia servir para fazer um carrinho. Duas latas arredondadas eram o suficiente para que se fizesse um andador ou pés de latas. A Vanessa e sua turma lembraram das "cinco marias" (que eu já não lembrava, mas eram aqueles saquinhos que se atirava um para o ar e se recolhia outro no chão, até errar), "telefone sem fio", "pião", "mola maluca"... e também havia um terreno em toda a extensão da rua, com proteção de Maricás, que era o "esconderijo" nas brincadeiras de mocinho/bandido, durante o dia e, nas noites de verão, o lugar preferido para o "esconde-esconde".

Quando começaram a entrar os saudosistas dizendo que hoje as crianças tem muitos brinquedos mas já não usufruem da rua. O mesmo comentarista disse que são outros tempos, com outro tipo de satisfação, e que as crianças, tendo um ambiente propício, exercitam a criatividade e são capazes de encontrar suas próprias formas de diversão. Não quero discutir aqui os erros e acertos pedagógicos que colocaram as crianças dentro de uma embalagem e colaram o carimbo de "frágil"... Tão pouco falar da violência que retirou praticamente toda a atividade social da rua. Embora, em muitos condomínios populares, o que se encontra é o microcosmo das vilas de antigamente...

Já disse que uma das minhas metas enquanto aposentado é colecionar. Semana passada falei a respeito dos carros que tive e pretendo conseguir em miniatura. Verdade que tem gente desistindo até de andar comigo a pé porque, depois do que leram ou ouviram, não acham que eu seja uma companhia segura... Mas, vamos lá: a outra coleção é de brinquedos que, de alguma forma me marcaram. Minha primeira leitura, como a de muitos do meu tempo, foram os gibis. Em priscas eras, como se dizia, reinavam o pato Donald, o Mickey, o tio Patinhas, o Pateta, a Margarida, a Minnie, a Maga Patológica, Madame Mim... Os pilas para comprar  do jornaleiro, o seu Ananias, eram poucos, e então, depois de ler, trocávamos nas portas dos cinemas, nas sessões matinés do domingo.

Talvez já existissem, mas, para nós, os brinquedos não eram acessíveis. Na verdade, nem sabíamos que existiam. Fui tomar contato com eles já na minha adolescência e, então, a gente já tinha outras preocupações... Passamos a assistir televisão e, de lá, foram surgindo outros personagens, que viraram bonecos: da série "Perdidos no espaço", o doutor Smith e seu robô, que chamada de "lata de sardinha enferrujada"; a fofura do ratinho Topo Gigio, que marcava o final das nossas noites, no Brasil, conversando com o Agildo Ribeiro; ou ainda o Fofão, que teve seu momento alto no programa Balão Mágico, que a gente dizia ser "coisa de criança", mas todos sabíamos de cor e salteado a sua música. Mais recentemente, os personagens centrais de Harry Potter, que recuperaram o gosto pelo mundo encantado da leitura...

O mundo da criança é o mundo da fantasia. Aterrissar na realidade é coisa de adulto, que nunca pode esquecer que já foi criança e, especialmente, manter um pé no encantamento que toda a magia do "faz de conta" é capaz de dar. O dia é da criança, mas também da mãe Aparecida. E mãe sempre tem a ver com aqueles anos passados em que aprendemos os primeiros passos, as primeiras palavras, onde encontrar nosso lugar de abrigo e carinho. No dia das crianças, o brinquedo que se dá, na verdade, é um pouco da saudade do lugar de onde saímos, por onde andamos e que, de alguma forma, não se quer esquecer...