terça-feira, 30 de março de 2021

Semana Santa: o caminho da dor, o caminho da esperança

A Semana Santa é, para os cristãos, o momento mais importante do ano - desde o domingo de Ramos, quando Jesus ingressa em Jerusalém; institui a Eucaristia, na quinta; agonia e morte, na sexta, até o domingo de Páscoa. Dias de reflexão baseada nos evangelhos, que contam a história de Jesus, o filho do carpinteiro, que viveu 30 anos em Nazaré e, por três, fez o anúncio de que era o Filho de Deus - anunciador de um novo Reino. Das narrativas, uma delas se destaca, a de são Lucas, exatamente por ser quem não conviveu com Jesus. Mas se pode imaginar como teria acontecido…

Lucas olhou para a rua. Parecia ter todo o material necessário. Conversara com Maria e Pedro, conseguira os escritos de Marcos e ouvira das pregações de Jesus através do que uns contavam aos outros (tradição oral), ou de algumas pessoas que tinham anotado frases ou sentenças. Sabia que faltava alguma coisa... percorrera Israel como peregrino, mas não chegara a Jerusalém. Os apóstolos estavam mais ao norte, onde ainda vivia Maria e João. Muitos ainda pescavam e mantinham atividades com as famílias, frequentando e pregando nas sinagogas dos judeus.

Era hora de visitar a cidade santa. À tardinha, avistou os muros decantados pelos escritores sagrados. Queria iniciar seu percurso pelos derradeiros passos de Jesus: o lugar da última Ceia. Não teve dificuldades de entrar. Era o suficiente para um pequeno grupo fazer a refeição, o jantar de Jesus com seus discípulos. Saiu em direção ao Jardim das Oliveiras. No escuro, apenas o luar mostrava as formas dos arbustos e das árvores. E o peso da dor vivida por antecipação...

Dia seguinte, percorreu os palácios onde Herodes e Pilatos sentenciaram o Galileu. Nas primeiras horas da tarde, iniciou a caminhada até o Calvário: imaginou Simão, o Cirineu, que o ajudou a carregar o lenho; as mulheres que choravam entristecidas e desamparadas; as quedas que machucavam, dificultavam a respiração e tornavam difícil levantar. O largo campo da morte, lugar infestado por animais que procuravam restos, um descampado cheirando a tristeza e dor…

No chão, as marcas dos buracos onde enterravam o lenho principal, no qual pendurariam a parte em que os braços ficavam estendidos. Por aquilo que lhe contaram, imaginou o lugar onde Jesus, em plena agonia, fora capaz de abençoar a humanidade dando-lhe uma mãe. As palavras ecoavam em sua memória, ditas a João: “eis aí a tua mãe!”. Difícil não imaginar homens e mulheres que fizeram a longa vigília, abatidos e confusos, diante do que a morte parecia roubar da própria vida…

Lembrar do que aconteceu dava motivos para que desejasse fazer ecoar, ao longo dos tempos, a história do homem que dera novo sentido à sua vida. Passaram-se anos, mas o sentimento era de que conversas, pregações, risos, caminhadas, milagres, ainda não estavam concluídos. Um novo pregador trouxera uma nova pregação. Mostrou, para quem ainda o ama, que valia a pena persistir, já que o caminho da dor é, também, o caminho da esperança! Feliz e abençoada Ressurreição!

domingo, 28 de março de 2021

Merenguinhos da saudade...

As grandes festas do calendário cristão são também grandes eventos familiares. Veja-se o Natal, que tem o maior apelo, especialmente pelo meio comercial, mas também a Páscoa, com os seus atrativos religiosos, de turismo e gastronomia. Nos dois casos, o grupo que ainda se abriga sob um mesmo teto deveria encontrar motivação para celebrar e comemorar os marcos mais importantes na vida de Jesus Cristo - nascimento, morte e ressurreição. Entre luzes, cores, comidas, presentes e abraços, o mistério do Deus que se faz menino e morre atraindo pela pregação do amor e da paz…

Não recordo a Páscoa nos tempos em que morávamos no interior de Canguçu. Depois dos quatro anos, em Pelotas, lembro da mãe e minha irmã mais velha tendo o maior cuidado para não quebrar a casca de um ovo. Depois, preparar guloseimas, especialmente amendoim doce, colocar dentro, cobrir o buraco com papel celofane, e pintar o lado de fora. Antes dos chocolates, vieram os ovos e coelhos de açúcar. Eram raros e degustados em partes, dava-se valor a cada pedaço. Meu pai trançava cestas de vime e a “barba de velho”, que dá nas árvores, era limpa e servia de caminha...

Numa ocasião, com tios em casa, inventaram de “tirar o aleluia”. Eu e meus irmãos ficamos apavorados pois se dizia que as crianças eram acordadas com uma surra de varinha de marmelo (minha mãe sempre tinha uma sobre o armário, que fazíamos desaparecer, mas se regenerava…). Não que fôssemos santos, mas a sua simples existência e exposição em ponto visível era alerta para não se pensar em alguma arte maior… A surra não aconteceu, mas diferente de tudo, pela madrugada, nos acordaram com os tios preparando churrasco na rua, em pleno sábado de aleluia.

Creio que desde que chegamos a Pelotas, minha família se integrou na paróquia Santa Teresinha (assim, com s minúsculo em Teresinha, porque o padre Roberto Oliveira da Silva dizia que era nome próprio). Na quinta-feira santa, havia a Missa do Lava Pés e, depois, a vigília por toda a noite e dia seguinte, até a cerimônia de morte de Jesus, às 15 horas. Os homens faziam o turno da madrugada. Num deles, meu pai me chamou em torno das 3 horas da manhã. Fomos, fizemos e voltamos. Até hoje não sei o que aconteceu e não lembro de nada, nem de quem estava lá…

Longas cerimônias, em que as crianças dormiam pelos bancos e muitas vezes quase caiam bêbadas de sono… também as procissões feitas na tarde de sexta-feira pelas ruas da vila, quando muitas famílias faziam nas janelas pequenos altares com seus santos de devoção, lindas toalhas, belos arranjos e uma profunda e sentida devoção… as representações feitas pelos jovens em estrados na frente da Igreja, momento em que cenas dos Evangelhos ganhavam vida em interpretações que ajudavam a compreender melhor o sentido de fazer memória da morte e ressurreição.

Na primeira vez em que entrei em um mercado e vi uma gôndola cheia de “merenguinhos” parei. Era quitute que se preparava para a festa da Páscoa. Precisava de muitos ovos do próprio galinheiro. Então, quantas galinhas para retirar clara suficiente para aquele amontoado de merengues? Merenguinhos da saudade… a inocência que fica pelo caminho. Infelizmente, perdeu-se a preocupação em acarinhar com detalhes. Tempos que nos amadureceram, fizeram felizes e deram sentido a que a gente se emocione ao dizer simplesmente: “uma feliz e abençoada Páscoa!”

terça-feira, 23 de março de 2021

Religião: ajuda ou atrapalha?

No último sábado, um canal de televisão passou matéria sobre a religiosidade em tempos de crise, com o título “fé para enfrentar a pandemia”. Foram entrevistados o bispo de Rio Grande, dom Ricardo Hoepers; o líder espírita Divaldo Franco e a missionária budista, monja Coen Roshi. Na matéria de Fábio Eberhardt, as motivações próprias e as formas como religiões e filosofias encontram para vivenciar um tempo de crise. Com diferentes idades e formação, foram capazes de mostrar que a presença é fundamental, mesmo que à distância, através das novas tecnologias.

Quando se discutem os instrumentos de informática, alerto para o fato de que, pelo século XIV, quando os primeiros cristãos chegavam aos templos carregando a Bíblia em formato de livro, idosos que traziam papiros e pergaminhos reprovavam as novas tecnologias de então. O bispo de Rio Grande destacou a importância das transmissões ao vivo para serviços essenciais. O líder espírita ressaltou a necessidade de ver que o problema é a criatura humana que precisa se reformatar. E a monja budista: “a pandemia antecipou a tecnologia, precisamos aprender e nos adaptar”.

Ouço de muita gente que o maior medo com o tempo passado em casa era com o que fazer. Depois de um ano de idas e vindas, uma parte garante que vê os dias escorrendo de forma acelerada e não se confirmou o fato de que fosse muito lento, quase em agonia. Divaldo Franco, com seus 93 anos, deixou uma agenda de viagens e passou a ser ocupado com transmissões ao vivo. Pontuou: “não sei quem está correndo atrás de quem - se sou eu buscando o tempo, ou o tempo me procurando”.

Conhecida por suas reflexões, programas de televisão e retiros, a monja Coen marca presença através das redes sociais, garantindo que as novas tecnologias são vantajosas e benéficas. Quando viu o chimarrão nas mãos do repórter brincou e lembrou do quero-quero, que se expõe para proteger a família e suas casas. Com o significado de “querência” - o lugar do querer bem – recordou aos gaúchos que a pandemia tem que rever hábitos de higiene e preservação já bem esquecidos…

Dom Ricardo é conhecido por sua presença em eventos estaduais e nacionais que tratam da família, em especial o setor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, para o qual é referência. Seu exemplo é a demonstração de que a internet é um dos instrumentos que ajudam em tempos de crise. A presença de líderes religiosos é a motivação necessária para encorajar, até, idosos e grupos de riscos a se manterem em casa, sem perder o contato com o seu meio social e religioso.

Religião, ajuda ou atrapalha? Quem atrapalha, dificilmente é a religião: são “religiosos”, homens e mulheres que não compreenderam o sentido da fé e fazem “barganhas” com Deus ou se transformam em porteiros dos Céus... O sentido da fé está em viver, na “querência”, a passagem para outros “pagos” - cidadãos de uma terra que ficará com as cicatrizes da pandemia, sem perder a confiança de que é exatamente a fé que não deixa ofuscar a perspectiva da Eternidade.

domingo, 21 de março de 2021

A terapia que recupera a vida e a esperança

Um dos medos de infância era ouvir pessoas falarem que alguém da família ou conhecido fora levado para um hospício. Não se usava a expressão “manicômio” - ou hospital psiquiátrico - eram pessoas que iam ficando alienadas da realidade – ou violentas - por motivos que, hoje, são conhecidos e tratados, mas que, então, surpreendiam. O caso de três irmãos que tinham família, trabalhavam, conviviam com a comunidade e, gradativamente, foram se isolando e sendo isolados. Mais do que a doença, quase sempre a sociedade estigmatizou o doente, pelo desconhecido.

Quando morei no Seminário, uma das rotas até em casa passava pela clínica Olivé Leite. A frente era isolada, mas nossos dormitórios davam para os fundos, onde ficavam os pacientes que precisavam de maior controle. Anestesiados no início da noite, pela madrugada, quando o efeito da medicação passava, virava um coro da demência, com gritos, cantos, uivos… O que fazia minha passagem mais curta para economizar as pernas ser, também, a mais rápida, porque acelerava ao cruzar em frente e me sentia aliviado quando enxergava as hortas e um galpão que já não existe…

Foi do que lembrei ao organizar as participações na live Partilhando da semana passada, quando frei Alfredo Souza refletiu sobre como tocar a vida em tempos de pandemia. Pouco antes, passara roteiro com temáticas interessantes, começando por mostrar que se vive tempo de vulnerabilidade, quando as restrições geram emoções desencontradas, até mesmo pelo fenômeno da infodemia (informações que fazem mais mal do que bem). Situações do passado, mesmo que não se soubesse o nome – estresse, ansiedade e depressão – fizeram parte do roteiro discutido e questionado.

Em situação de crise, o pior é encerrar-se em si mesmo. O grito de socorro que fica preso na garganta necessita de lugar e de alguém em condições com quem se possa compartilhar. E pessoas próximas precisam estar atentas aos sinais de que há sentimentos sufocados que vão asfixiando emoções e causando transtornos. Depois de um ano de coronavírus, a preocupação continua sendo com salvar vidas, tratando as sequelas que ficam... Com toda a razão, porque as disputas políticas estão colocando em risco nossos bens mais preciosos - a vida e as pessoas que amamos.

Quando as batalhas terminarem e começarem a chegar os trôpegos, feridos, sequelados, vamos precisar da disposição de religiosos, profissionais da saúde, da psicologia, do entretenimento para recuperar traumas e transtornos que ficam e marcam as próximas gerações. A terapia sugerida passa pela redescoberta das relações próximas. Frei Alfredo brincava que o grupo familiar poderia, até, afastar os móveis da sala, tocar uma música e dançar. Porquê não? Tem momentos em que cantar no banheiro ou bailar com a vassoura dá, sim, sinal de que a sanidade mental persiste.

Entre “loucos” do passado e “loucuras” do presente, há uma diferença: os novos tratamentos. As perguntas vinham com o detalhe da utilização de medicações para controlar o estresse, a ansiedade e a depressão. Um avanço, quando usadas sob prescrição médica. Conviver com o luto, a perda, cuidar de pessoa com marcas físicas e psicológicas é onde a crise mostra ser necessário mudar o modelo político, relações sociais, afetivas e familiares. Tristezas e alegrias vividas dão uma certeza: a terapia de que se precisa, hoje, é aquela que não deixa perder o sentido da vida e da esperança…

sábado, 20 de março de 2021

As tintas da saudade

 A lua tremula por sobre as águas.

Dança embalada pelo trilar dos grilos.

Apenas as estrelas e a imensidão do espaço fazem moldura para que o olhar não se perca.

 

A brisa que move a superfície enquadra a sua imagem, sem retirar o seu brilho.

Realça o encanto de quem se queda absorvendo a finitude de um momento passageiro...

 

O Outono que se aproxima derrama as folhas que se desprendem das árvores.

Salpicam pontos dourados na imagem que a tela não reproduz...

Não há pincéis, não há tintas, apenas a lua solitária, que marca o seu destino.

Seu silêncio se perde na brisa, nos grilos que adormecem

e nos primeiros raios de sol, que tingem de saudade

o breu que prenuncia as cores do amanhecer...


terça-feira, 16 de março de 2021

Francisco: as dificuldades de uma igreja em saída

Oito anos se passaram desde que o Mundo foi surpreendido pelo anúncio de que era um argentino – idoso e bonachão - o novo papa, naquele 13 de março. A primeira aparição na sacada do Vaticano foi diferente de tudo o que se havia visto: pronto para se aposentar, implicou com os cardeais que, segundo ele, foram ao fim do mundo buscá-lo para transformá-lo em sucessor de Pedro. Os meios de comunicação transmitiram para todos os continentes quando os sorrisos foram se misturando com as lágrimas ao inclinar a cabeça e pedir que os cristãos o abençoassem e rezassem por ele!

Desde o primeiro momento, bateu numa tecla: é preciso formatar uma “igreja em saída”, que definiu e traçou como o melhor jeito de se fazer na exortação apostólica Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho). Infelizmente, também em tempos fora da pandemia, não conseguiu alcançar seus objetivos, mesmo que tenha feito de sua atuação exemplo, como a recente viagem pelo Iraque. Embora o Vaticano tenha uma representação política, sua atuação foi pastoral e humanitária.

Ao sair das acomodações do Vaticano, um senhor octogenário, foi criticado por, algumas vezes, não usar a máscara… ele tem parte de um pulmão e dificuldades para respirar. Mesmo assim, mostrou que se pode, em tempos de crise, ser sinal de esperança, quando se juntam homens e mulheres de boa vontade. Vindos de diferentes credos, concretizam a solidariedade e a justiça, deixando posturas acomodadas e omissas que tem sido o alimento para a ação do radicalismo fundamentalista.

Pontua suas reflexões por momentos fortes da religião. Pediu que se faça memória pelos 150 anos em que São José é considerado Padroeiro Universal da Igreja, com a festa em 19 de março. Na carta apostólica Patris Corde diz: com coração de pai, assim José amou a Jesus, designado nos quatro Evangelhos como «o filho de José» (o filho do carpinteiro)”. O santo que passa despercebido, com a marca da ternura pelo menino e sua mãe e uma fé criativa para que a Sagrada Família sobreviva.

Para o Dia Mundial das Comunicações, em maio, utiliza o evangelho de São João para desafiar: “vem e verás”, afirmando ser necessário “comunicar encontrando as pessoas onde estão e como são”. Diferente dos documentos de igreja com linguagem em “teologuês”, conclama a “gastar as solas dos sapatos”, numa crítica direta tanto a jornalistas que se acomodam nas redações, quanto a bispos, padres, religiosos e leigos que preferem ficar ao abrigo das sacristias…

Às vésperas dos seus 85 anos, anda mais devagar… cansado de atividades como referência no cuidado aos desassistidos. Olhando imagens nas ruas do Iraque, não se pode deixar de pensar que por ali passou um homem de Deus! Como Pedro e Paulo, que concretizaram ano testemunho pessoal de uma “igreja em saída”, a lembrança de que os cristãos deixaram uma marca: “vede como eles se amam”. Desafio para o agir social e reagrupar forças para tempos difíceis, que se desenham no horizonte... e mesmo assim, repetir o papa: “não podemos deixar que nos roubem a esperança!”

domingo, 14 de março de 2021

Maricás, alamedas e caminhos...

Minhas caminhadas, pela manhã, têm, sempre, os mesmos percursos: saio de casa em direção da avenida Francisco Carúccio, passando por região que, pouco distante do centro da cidade, guarda um quê de rural - lugar de banhado, com árvores ralas, onde é solto o gado; ou, em direção da avenida Fernando Osório, sem chegar até lá, passando ao lado da Unimed, até os fundos do Engenho São Paulo – Ferro & Fogo, galpões onde se encontrava de tudo, mas também, um bom passeio para desestressar e ver desde potes com bolinhas de gude, até equipamentos para carroças…

A terceira via contorna o que vai ser o bairro Quartier, que já tem boa parte de suas ruas calçadas, permitindo que se aventure em áreas que estavam escondidas do público e agora revelam o que já contei: laguinho formado pela retirada de barro para tijolos e telhas e uma das chaminés das antigas Olarias Carúccio. Em janeiro e fevereiro, a surpresa foi se formando na beira da sanga que corta a região norte, correndo paralela aos antigos trilhos da viação férrea: dos poucos lugares onde os maricás são abundantes e a sua floração formou um tapete de flores brancas por sobre a paisagem.

Numa manhã de sábado, parei na parte mais alta, de onde se divisa o espetáculo por longa distância. Me veio à memória os maricás que existiam em toda a extensão da minha rua, desde a entrada do sítio dos portugueses, até a outra sanga, que agora está canalizada, ao lado do condomínio Granada. Estava com 11 anos, era manhã de domingo e a primeira vez que voltei do Seminário Diocesano, onde fazia duas semanas que estudava. Parei à sua sombra para enxugar as lágrimas e respirar fundo. Sabia que minha mãe não deixaria eu voltar se me visse com os olhos molhados…

Mas queria voltar e foi o suficiente pegar aquele arzinho bom, no início de março, aspirar o perfume que ainda restava e lembrar de quando correra por ali para caçar violinhas, colocar em caixas de fósforo e “ouvir música”. Ou, nas noites quentes de verão, prender vaga-lumes em vidros cobertos por um pedaço de tecido, para ter uma “lanterna”… Depois, quando meus pais envelheceram, observar da janela, todas as manhãs, caminharem devagarinho, embaixo das sombras, com as mãos cruzadas às costas e parando, aqui e ali, para atualizar as conversas com os vizinhos…

Devo ter falado sozinho, porque, apesar da máscara, pessoa que passava se voltou, esperando que repetisse. Não disse, não era o caso. Dei-me conta do porque gosto de caminhar, já que não tenho persistência para fazer outros tipos de exercícios. Para confirmar, o único que faço, quando não vou para as ruas, é o simulador de caminhada. Mesmo assim, preciso do tablet para procurar na internet programas de viagens por diversos lugares do Mundo. E o que me encanta? As ruas. Percursos que os apresentadores fazem por vielas, estradas, caminhos, praças, parques, museus…

Maricás, alamedas e caminhos… Aplicativos e o YouTube já mostram roteiros (Porto Alegre já tem. Pelotas, que eu saiba, ainda não). Mesmo lugares por onde se andou surpreendem. Pode ser uma passada nas proximidades de um ninho de quero-quero, quando, sentindo-se ameaçados, se alvoroçam e dão voos rasantes… aproveitar o sol e sentir-se vivo e em paz, razão maior de uma esticada nas pernas. Dado o primeiro passo, como na vida, há um destino a percorrer, porém, aqui - ou na Eternidade - há sempre um lugar para se voltar e sentir que, cada passo, de fato, valeu a pena!

terça-feira, 9 de março de 2021

A oração dos filhos de Abraão

A peregrinação de Francisco pelo Iraque é marco que o diferencia - em seus oito anos de pontificado - das viagens de outros papas, que se dirigiram, especialmente, para centros religiosos, na Europa, América do Sul e África. Mudando a “geopolítica” da Igreja Católica, percorre locais onde os cristãos são minoria (em alguns deles, perseguidos), como Tailândia, Emirados Árabes Unidos, Japão e Coreia do Sul. O pontífice deu provas de que é um pastor por excelência, não descuidando dos lugares onde o cristianismo é ameaçado, assim como de viabilizar o ecumenismo.

Depois das recepções protocolares, tanto por autoridades do país, como representações da própria Igreja Católica, fez questão de dar um sinal para o Mundo: reuniu-se com líderes islâmicos na região de Ur (província de Dhi Qar), onde supostamente nasceu Abraão, que é tido como o pai das três principais religiões monoteístas da história (judaísmo, cristianismo e islamismo). Junto ao que teria sido a casa do patriarca bíblico, fez a “oração dos filhos de Abraão”, quando pediu: “ajudai-nos a cuidar da terra, a casa comum que, na vossa bondade e generosidade, destes a todos nós”.

Antes de embarcar, fez um apelo ao povo iraquiano e da região: “venho como peregrino penitente, para implorar perdão e reconciliação do Senhor depois de anos de guerra e terrorismo, para pedir a Deus consolo para os corações e cura para as feridas. E venho até vocês como peregrino de paz... pelo desejo de rezar juntos e caminhar juntos, também com irmãos e irmãs de outras tradições religiosas, unidos pelo pai Abraão, que reúne em uma só família muçulmanos, judeus e cristãos.

Foi recebido pelo presidente Barham Qassim e apelou: “venho como penitente que pede perdão ao Céu e aos irmãos por tanta destruição e crueldade. Venho como peregrino de paz, em nome de Cristo, Príncipe da Paz. Quanto rezamos ao longo destes anos pela paz no Iraque! São João Paulo II não poupou iniciativas, e sobretudo ofereceu súplicas e sofrimentos por isso. E Deus escuta; escuta sempre! Cabe a nós ouvi-Lo. Calem-se as armas! Limite-se a sua difusão, aqui e em toda a parte!”

Um dos momentos mais esperados foi o encontro com o líder xiita, aiatolá Ali al-Sistani, costurada por pessoas, de ambos os lados, que desejam fazer vingar o ecumenismo. Afirmou: hostilidade, extremismo e violência não nascem dum ânimo religioso: são traições da religião. E nós, crentes, não podemos ficar calados, quando o terrorismo abusa da religião. Antes, cabe a nós dissipar com clareza os mal-entendidos. Não permitamos que a luz do Céu seja ocultada pelas nuvens do ódio!”

Francisco é homem de visão. Sabe que a pandemia vai longe, especialmente em países pobres, e deixa no rastro o aumento da miséria e de migrantes. Como consequência, escalada da violência, alimentada por fundamentalistas, inclusive cristãos. É profeta: aponta o erro que mistura economia e poder, com religião – falsos deuses, com seus falsos pastores... Empunha a cruz e conclama: “calem-se as armas”, o perigo está próximo se faltar o sentimento de que se pode ser “construtores e artífices da paz”. Momento único para resgatar o nosso sentimento de pertença à humanidade!

domingo, 7 de março de 2021

Sangas, açudes e saudades...

Nos bons tempos em que as férias de final de ano iniciavam no dia 1º de dezembro e iam até o dia 1º de março, quase sempre um dos irmãos da minha mãe vinha fazer uma visita e já levava, “na bagagem”, um ou dois sobrinhos. Era uma longa jornada que prometia ter, no seu final, o convívio com primos e tios, comer muita melancia, banhos em sangas e açudes. Na madrugada, a gente saia do antigo prédio da rodoviária, na esquina da rua Marechal Deodoro com Lobo da Costa, ainda pela estrada de chão que passava por Morro Redondo. Quase no fim da manhã, se chegava a Canguçu.

Na “baldeação” (sempre gostei desta palavra), tinha que se tomar outro ônibus daqueles que, pelo caminho, ia aceitando caixas com porquinhos e pintos; receber e entregar correspondência; passar e ouvir recados. Cada emissor ou destinatário fazia questão de subir a bordo e cumprimentar todos os “viventes” que não via há muito tempo e dar um minuto de prosa. Além de fazer o reconhecimento dos novos visitantes, sempre identificados pela origem: “mas não é o filho do fulano?”, “mas como cresceu!” e a gente já ficava se achando especial, porque estava se reencontrando com as origens.

Ao fim da tarde, desembarque nas Três Porteiras, sob o olhar curioso dos frequentadores do armazém do Antônio Mattos, de onde o pessoal vinha para a rua, aprumava a mão sobre os olhos para mirar melhor os viajantes. Ares e espaços conhecidos, percorridos de carroça ou a pé, tendo as araucárias como referências. Uma boa pernada até a porteira, velha conhecida, que servia de brincadeira cada vez que um de nós era escalado para abri-la, se pendurar e balançar no vai e vem, vendo a tia enxugar as mãos no avental e saber que a saudade seria sufocada por abraços e beijos.

Na casa do tio Ciano e da Tia Toninha, havia um moinho, movido por águas de um córrego. Um dos pontos nos fundos da casa - chamávamos de sanga - tinha múltiplas utilidades: o banho refrescante à tarde, colher e enterrar melancia na areia sob a água para resfriar e onde eram lavadas as roupas e, muitas vezes, nas pedras, colocadas para quarar. O passatempo era se catar todas as pedras possíveis e, num determinado ponto que não atrapalhasse, se construía uma represa que tornasse mais fundo o local de banho. No dia seguinte, pedras, madeiras e terra tinham sido levadas pela ação das águas…

Uma evolução foi quando o tio Graciano e a tia Dinoca construíram um açude para preservar as águas da chuva. Reserva para a plantação que ficava abaixo, assim como criadouro de peixes. Mas, também… um gostoso banho no que, para nós, era o mais próximo que conhecíamos de uma piscina. Em épocas de menos trabalho na lavoura, se passavam longos períodos desfrutando com a parentada que só se recolhia ao final do dia para tomar o chimarrão e sintonizar emissoras de rádio da capital ou de Canguçu, ouvir música tradicionalista e recados dados por parentes ou vizinhos.

Sangas, açudes e saudades… ouço as vozes e vejo tias e primas em afazeres domésticos. Do meu jeito atrapalhado, tento debulhar o milho e elas enchem o avental e percorrem o pátio espalhando para os animais… ou atrelar cavalos ao arado e seguir pela lavoura, revirando e renovando a terra, abrindo sulcos onde novas plantas prosperariam. Pedaços do passado, carregados de nostalgia, que o tempo enquadra nas gavetas da memória. Raízes da identidade, lugares que, de alguma forma, foram construindo nossas histórias e teceram as bagagens que levamos pela vida…

terça-feira, 2 de março de 2021

Colapso na saúde: a pedagogia da dor

Embora as autoridades públicas evitem criar pânico, deixando de utilizar a palavra “colapso”, a realidade evidencia que, se já não se chegou a este patamar, se está muito próximo. As regiões que ainda não atingiram 100% de ocupação dos leitos nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) aproximam-se perigosamente destes números. Indicando que é preciso tomar uma atitude mais incisiva, como a do governador Eduardo Leite, que anunciou, para esta semana, a bandeira preta (praticamente um lockdowm), sem a possibilidade da já duvidosa flexibilização.

De todos os setores, especialmente da economia, vieram as costumeiras críticas. Mas foi sintomático perceber que da área política se teve quase um suspiro de alívio, porque alguém bancou aquilo que a sociedade com mais informação e melhor preparada sabia há algum tempo que seria necessário. Infelizmente, manobras políticas e eleitorais, bem como maus exemplos de figuras públicas – vide Carnaval e eleições do ano passado – fizeram o prenúncio do quadro que, hoje, torna macabra estatística em que, de cada dez pessoas entubadas, seis não voltam para suas casas…

A própria flexibilização, que permite aos prefeitos, estando numa bandeira mais avançada, trabalhar com as liberdades da anterior, causou confusão na cabeça das pessoas. A pergunta que mais se ouvia era: “afinal, pra que serve uma classificação, se está se usando os critérios da outra?” Verdade, para o entendimento das pessoas mais simples causou perplexidade e dúvidas e, gradativamente, foram caindo na vala das coisas públicas sem sentido, que já se tem bastante no dia a dia.

Os prefeitos apostaram na negociação para ampliar o número de leitos, sem compreender (?) que tratavam das consequências e não da origem do problema. O anúncio de que fiscalizavam não é comprovado por parte das pessoas que tentou denunciar aglomerações e sequer foi ouvida. Estes ouvidos surdos estão estressando os profissionais que, em muitos casos, ultrapassam seus limites e levando a que as mortes comecem a acontecer às portas dos postos de atendimento e hospitais…

A advertência de Leite é para que se volte à consciência dos primeiros tempos da pandemia, quando as pessoas perceberam a gravidade do momento e, assustadas, queriam colaborar. Concordo, mas, passado um ano, isto já não é suficiente. O confronto de opinião entre presidente, governador e o prefeito de Porto Alegre, por exemplo, fizeram muitos desprezarem as normas e se julgar acima do bem e do mal. Momento propício e necessário para que quem tem a autoridade efetivamente a use.

O gargalo nos leitos demonstra o colapso do sistema de saúde, pressionando quem atende nas ruas até os profissionais das UTIs. As mortes cada vez mais próximas podem ser o elemento pedagógico que estava faltando, neste período de isolamento forçado. Sendo verdade que “a dor ensina a gemer”, já estamos sentindo a ausência de entes queridos que poderia ter sido poupados. Tornaram-se estatísticas, sacrificados no altar da indiferença, do descaso, da omissão e da incompetência…