sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Deixa o teu coração conversar com o meu...

O tiquetaquear do coração

Solavancou meu peito quando te reencontrei.

Acreditava que nunca mais

Ousaria a intensidade do amor.

Foram anos em que

O senti machucado, ferido, apertado.

As veias foram congestionando,

Parando, trancadas nas

Minhas angústias, medos, rancores e decepções.

 

Não acreditava que alguém tivesse

Paciência para assoprar

O ar que limpasse cada um

Destes dutos da minha sanidade.

Senti o frescor da tua passagem,

Quando, finalmente, consegui arfar...

Tua sensibilidade percebeu que

Meu coração estava doente e

Tiveste paciência para diagnosticar

O que era frágil e demandava

Poções de ternura e doses de compaixão.

 

Driblaste minha insensibilidade,

Não te importando com meus gemidos,

Sabendo onde querias chegar:

O âmago dos meus sentimentos...

Uma por uma, transformaste cada chaga

Numa cicatriz que guarda uma história,

Que já não queria mais fazer parceria com a dor...

Finalmente, com ternura,

Tu cerziu meu peito

Com a linha e a agulha do teu desvelo.

 

Eu havia soçobrado ao silêncio.

Acreditava que iria

Me consumir em meio a dúvidas e remorsos.

Estava conformado

A viver com a pobreza do que

Restaram das minhas emoções.

 

A cura levou muito tempo.

Precisava reaprender a amar.

Foi quando me ensinaste a

Olhar para as estrelas cadentes

Que despencavam dos céus

E marcavam teu olhar.

Tive medo de fechar os meus

E perder alguma fagulha que

Naufragasse ao longe.

Sequer me animei a fechá-los

Na hora de fazer uma prece e um pedido...

 

Tenho cicatrizes no peito das vezes

Em que fui abalroado.

Meu coração definhou e

O medo era de que fosse parando aos poucos.

No entanto, eu já sabia que, em qualquer momento,

No silêncio que se derramava pelo

Meu olhar suplicante

Sempre poderia te pedir que

O teu coração estivesse de aberto e

Pudesse acolher e conversar com o meu...

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Setembro Amarelo: valorize a vida de quem ama

Confesso que, no círculo das minhas relações, há muito tempo não se tem notícias de um suicida. O que não significa que, periodicamente, apareça, aqui e ali, uma notícia de alguém que tenha tentado. Sempre que isto acontece, são informações repassadas ao pé do ouvido, quase em confidência. Há um silêncio meio assustador quando se escuta um: “tu sabias que o fulano tentou se matar?” O que preocupa é que estas iniciativas têm sido tomadas por pessoas cada vez mais jovens, muitas ainda em bancos escolares.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) propõe que se reflita e fique antenado no chamado Setembro Amarelo. Movimento mundial de alerta aos pais, educadores e responsáveis pela valorização da vida (em primeiro lugar) e prevenção das ocorrências de suicídio (em situações extremas). O que já seria capaz de prevenir, segundo especialistas, 90% dos casos. O número parece alto, mas é realidade. Antes de pensar em alguém que se propõe a morrer, é necessário auxiliar a que valorize a própria vida.


Postagem no Facebook chamou a atenção: “a escola voltará a ser a segunda casa, quando a família retornar a ser a primeira escola.” Pensei em tudo o que se diz (e não pratica) sobre educação. Encaixa perfeitamente no que propõe a OMS desde que... a família seja efetiva (e afetivamente, repetindo) uma estrutura de acolhida e carinho com a continuidade na escola. Pode-se começar por algo básico: a chamada orientação sexual. E aqui não quero e não vou discutir gênero, mas o básico da sexualidade...

A piadinha do menino que pergunta ao pai que o chamou para conversar sobre sexo e a criança questiona o que quer saber a respeito. Os mais velhos, somos da geração em que muitos de nossos pais não tiveram e não saberiam dar esta orientação. Ao contrário, fomos cercados de tabus e de uma sexualidade mal explicada e mal resolvida, quando, muitas vezes, se responsabilizava (ou se confundia) com afetividade. O corpo foi transformado em objeto sexual de preservação... Discussão proibida em muitas relações.

Porque trago o assunto à baila? Porque é uma época de muita instabilidade emocional, talvez nem tanto para os mais jovens que até já não se importam com o que passou ou viveu a “velha guarda”. Mas que teriam a vida facilitada caso fossem acolhidos e amados nos primeiros ambientes que formarão a personalidade, sem precisar de se sentir culpados pelo resto da vida. O aprendizado da rua, muitas vezes, forma pessoas que, por não resolver a sua sexualidade, maculam o sentido da afetividade.

Setembro Amarelo é proposta de valorizar a vida de quem se ama. Uma afetividade mal resolvida confunde muitas coisas. O simples fato de parecer que há algo errado com um jovem é sinal de alerta. “Coisa de garoto...” é a porta da omissão em que, numa atitude covarde, se nega prevenir, pela busca de ajuda e tratamento. E quando achar que palavras não foram suficientes, não tenha vergonha: estenda o coração e deixe que ali ele encontre um arrimo, para saber que em nenhum momento esteve ou estará sozinho...

domingo, 24 de setembro de 2023

Disciplina escolar: “aprendendo a envelhecer”

Não tenho pretensão de dizer coisas absolutamente novas nos meus textos. Estamos num tempo em que dificilmente se consegue fazer isto. O que se precisa é encontrar um novo olhar sobre a mesma questão. Enriquecê-la ou enriquecermo-nos com aquilo que alguém diz a respeito. Fiquei feliz quando, coincidentemente, dois bons jornalistas – Túlio Milman e Juliana Bublitz – em “Uma disciplina na escola para entender os avós” e “O Japão e seus cafés da demência”, no mesmo dia, abordaram o que vinha gestando...

Em publicação anterior falei da necessidade do jovem conviver com os avós para entender o envelhecimento dos próprios pais. Tinha em mente o que tratei sobre a família como “primeira escola”. Túlio lembrou que, quando o convívio familiar era mais próximo, esta conexão acontecia naturalmente. Não é o caso de hoje. Diz, com acerto, que “se os mais velhos precisam se atualizar para conversar com as novas gerações, os mais jovens precisam aprender a conviver com quem tem mais idade”.


Não há outra receita: a melhor forma de entender, aceitar e se preparar para envelhecer acontece quando se convive com idosos. O colunista de ZH brinca que poderia haver uma disciplina na escola com o título: “entenda os seus avós!” Justifica que “as transformações das pessoas determinadas pelo tempo – todas normais e naturais – deveriam ser ensinadas nas escolas, no sentido prático de estabelecer pontes de compreensão”. Vou mais longe: a disciplina deveria ser “aprendendo a envelhecer”!

Juliana comentou notícia do jornal Washington Post, ressaltando que, “nos cafés da demência do Japão, pedidos esquecidos fazem parte do serviço”. População envelhecida e o avanço de doenças neurodegenerativas fizeram surgir espaços de convivência seguros para idosos. O café em que a reportagem esteve é conhecido também por “Café dos pedidos errados”. Atendidas por um senhor com demência feliz em recebê-las e a quem chegava, até mesmo quando confundia ou esquecia o que havia sido pedido.

Muitos dos que estavam ali têm na família alguém assim, “ou têm consciência de que um dia poderão ser como ele”. Com a compreensão de que “o avanço da demência é um fenômeno global, que todos os países enfrentam, inclusive o Brasil. Juliana também pergunta ao leitor se iria a um café assim. E já responde que ela, sim. Eu também. O idoso consegue fazer o que qualquer um faz, na medida em que é bem tratado, acolhido, consegue se sentir feliz, quando responde positivamente, querendo ser parte deste todo.

Não consigo me convencer de que afastar idosos das suas casas seja solução. Claro, há casos e casos... Jogar para debaixo do tapete o processo de envelhecimento não significa que o adulto e o jovem de hoje um dia não serão velhos. Ajudar o idoso a lutar pela vida é batalhar para não esquecê-lo e, num futuro, não ser esquecido. Tomar consciência de que processos naturais – inclusive do envelhecimento – seguem seu rumo, querendo ou não. Fica mais fácil quando se aceita que a Natureza tem seus próprios caminhos...

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Pétalas com cheiro de caminhos...

Quando,

Depois do tempo da espera,

Encontrares novamente

Uma rosa branca no jardim,

Me aguarda: esta noite venho te visitar

Nos teus sonhos...

Serão doces, como são doces as saudades.

A lua será testemunha dos teus devaneios.

 

Nas brumas que percorrem as memórias

Me dissolverás em pétalas,

Para que ainda guardes uma delas

Em meio às folhas de um livro

Onde restarão nossas lembranças.

 

Multiplicadas pelo vento,

Flutuarão quando

As correntes que percorrem os ares

As depositarem como oferendas nas margens do rio.

Só então, terei coragem de pedir ao Eterno

Que permita planar nas asas do vento,

Acima das nuvens e dos céus...

 

Nas ausências, as lágrimas

Gotejarão sobre as águas que,

Displicentes, beijam os seixos.

Em uma sombra na encosta,

Quero te encontrar, murmurar carinhos,

Realizar desejos...

 

Já não posso seguir em frente.

Prefiro ficar contigo exatamente aqui,

Onde o rio corre

Envolvendo e acariciando as pedras.

São lugares sagrados em que

Espíritos murmuram preces.

Borboletas no dia

E pirilampos à noite,

São guardiões que celebram a vida.

 

Na dança da chuva que salpica a correnteza,

As pétalas se reúnem em redemoinho,

Onde teus olhos vertem palavras mágicas,

Borbulhando elementos capazes de

Fazer o reencontro onde reencarna a flor.

 

Juntam-se as partes,

Agora com a poeira dos passantes,

Os ventos dos desertos...

Pétalas com cheiro e gosto de caminhos,

Recobertas com as gotículas

Que refrescam e inebriam...

 

Antecipa-se o que se perdeu

Para se encantar com

O reencontro do sentido de um sonho.

A dor do parto,

Que rasga o presente, e

Deixa na boca o gosto de que

A vida é pura expectativa!

terça-feira, 19 de setembro de 2023

O mate que cabe dentro de um abraço...

Ao que tudo indica, seu Mário tinha visão privilegiada das margens do rio Taquari, desde a sua casa, na área urbana de Muçum. Aos 90 anos, solteiro, levava vida pacata na pequena comunidade, uma das mais atingidas pelas cheias. Na reportagem, era o quadro da dor: no local que fora a morada, apenas escombros e, no que restou de um piso, rolou uma pedra de alicerce e passa o dia sentado, de costas para o rio. Os vizinhos deram abrigo e alimentação, mas diz que sente falta de um rádio de pilha que faça companhia...


Na Semana Farroupilha, grupos, especialmente de cavalarianos, trocam as tradicionais festividades e percorrem as cidades solicitando apoio em donativos. Infelizmente, por ser situação recorrente, já se está acostumando com a lista: alimentação, água potável, material de higiene pessoal, material de limpeza para as casas, comida e cuidados para animais de estimação. Multiplicam-se os grupos que, especialmente em fins de semana, viajam em autênticos mutirões, colaborando na busca pela retomada da vida quotidiana.

Mas uma destas equipes teve uma ideia diferenciada: pedir doação de equipamentos para o chimarrão. Tudo foi levado ou prejudicado pelas águas barrentas que, se não tragaram, fizeram grandes estragos nas moradias. Cuias, bombas, erva, térmicas... Querem distribuir nos pontos em que estão abrigados ou que possam levar para o trabalho nas casas. É o básico para que alguém possa sentir um pouco do gosto de não estar sozinho enquanto sorve um amargo e compartilha o mate numa roda de conversas.

Fiquei imaginando, para pessoas acostumadas ao chimarrão, como eu, a tristeza de não ter uma cuia. Não sei tomar água de outra forma. Então, é hidratação e companhia, nos momentos de leitura e trabalho, pela manhã e à tardinha. Quando, por algum motivo, não cumpro o ritual, sinto que faltou alguma coisa no dia. Até gosto de tomar com outros, mas quem tem o costume sabe que a cuia da casa é diferente, personalizada, e se tem uma série de manias para fazer e sorver o “doce amargo que faz bem!”

A gente já viu mateiras penduradas na garupa de cavalos, ao ombro, presa ao banco do motorista, no carro ou no caminhão. Desfilar por eventos cívicos e também na praia, em parques, numa voltinha pela calçada na rua... Idosos gastando seu tempo à mesa, sobre um aparador de escritório, o primeiro gole do mate já mais frio para a criança que insiste... É um pouco da nossa identidade gaúcha. Faz bem em todos os sentidos: num momento de introspecção ou para quem está precisando de um dedinho de prosa...

Seu Mário agradeceu à equipe de televisão que voltou trazendo o radinho. Já estava se preparando para ouvir na cama, no silêncio da noite. Porém, garanto, não ficaria brabo se viessem não apenas para gravar, mas com a cuia de mate, sentados no lugar que foi a sua moradia. Conversar, fazer companhia, ouvir histórias, notícias, músicas na “rádio” local. Ameniza a dor, a solidão e, com certeza, quando, bem gringo, dissesse: “obrigado de tudo, viu!?” afloraria a emoção: seria o mate que cabe dentro de um abraço...

domingo, 17 de setembro de 2023

Um universo que se chama coração

Não lembro de todos os detalhes da história. Fiquei com o que julguei ser essencial: a idosa foi internada numa casa geriátrica, recebendo do filho ligações todas as noites, sempre com a mesma conversa de que estava ocupado e não conseguia chegar até lá. A mãe tentava parecer despreocupada, até que, passados alguns anos, começou a pedir investimentos no seu quarto. Curioso, o rapaz resolveu ver de perto o que estava sendo feito. É quando reencontra a senhora alquebrada e já com a sentença de que está no fim.


Sendo homem de negócios, pergunta por que não pediu antes, quando recebe a resposta: “porque um dia, filho, vais estar aqui e, com estas arrumações, espero que, de alguma forma, compense a falta dos teus filhos.” Após a morte, recebe um bloquinho e chamou a atenção um dos registros: “não morri quando senti que a vida se esvaiu, mas quando não soube lidar com as ausências. Morri aos poucos: primeiro, quando me afastei dos amigos, depois quando faltou meu marido, por fim se distanciaram os meus filhos...”

Depois de certa idade, fico com preguiça de responder a mensagens escrevendo nas redes sociais, então, o faço com áudios (alguns são podcasts - palestras – incomodando amigos). Também não tenho problemas em ouvir, desde que sejam curtos (não abusem porque a paciência também acaba). Só para contar que uma conhecida começou a elencar os muitos amigos que já teve e que, hoje, estão distantes. Durante bom tempo, a família foi se tornando o centro das atenções e a absorvia com dedicação exclusiva.

Negligenciou aqueles com quem conviveu a juventude e, mesmo, na universidade. Mais tarde resolveu efetuar o que muitos tentam: refazer contatos e, se possível, retomar o convívio. Amigos e amigas haviam feito o mesmo processo e, parecia, todos tinham seguido caminho semelhante: "desaprenderam" a arte do encontro! Muitos conseguiram realizar sonhos financeiros e de sucesso profissional, mas lhes escapou o convívio humano. Acomodaram-se em pequenos mundos de onde se torna difícil escapar...

As pessoas dão sinais das suas carências. Talvez elas mesmas não percebam. Porém, sempre existe na família alguém sensível que identifique, ajude e, quando necessário, busque apoio espiritual e psicológico. Não é fácil. Envelhecer deveria ser mais uma etapa de aprendizado, todavia se torna fase de negação do que não se entendeu e se fez diferente... Não vale a pena na aposentadoria ou quando “descartado da família”, “morrer em vida” ou “apenas esperar pela morte”. A bênção da própria vida é viver...

O coração é um universo estranho e misterioso. Não se dá o valor a quem está presente e se busca, no passado, aqueles com quem se conviveu. Naquele momento, não os valorizamos e, por isto, se afastaram. Idealizações também acontecem quando se maquiam lembranças e saudades. O hoje e o agora são a realidade que não foge, o “presente” a ser desfrutado em encontros que deixam risos e sorriso... Afinal, a vida continua, sempre, precisando abrir uma fresta na porta que se chama Felicidade!

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

O broto que desperta a Primavera...

Eu desisti de mim quando percebi

O que significavas em minha vida.

Tu não sabes o quanto dói

A falta que sinto quando te ausentas.

Tuas lembranças cravejaram

Luz nos lugares por onde se andou.

Derramaste o brilho do firmamento,

Pontilhando rumos,

Acendendo estrelas quando

Me deste coragem de reerguer os olhos.

 


Eu senti frio quando faltou teu sorriso e

Apagou-se a chama que norteou a minha felicidade.

Foram tantos caminhos que,

Em alguma encruzilhada,

Tomamos rumos diferentes.

Nunca mais consegui ver

O Mundo do mesmo jeito.

 

Não creio que consigas saber a falta que me fazes.

Foste o Outono que vivi na espera

Pela Primavera, que

Transformasse as cores,

Os cheiros e retomasse o gosto pela vida.

 

Te confesso, não lembro de tudo.

A partir do momento em que

Minhas recordações guardaram

O teu jeito, o teu sorriso,

O olhar perdido,

O abanar de cabeça,

O pentear os cabelos com os dedos...

 

Depois, quando estávamos sozinhos,

Esfregar teu nariz no meu rosto,

Mostrar a língua quando me provocavas,

Ameaçar uma mordida que era cheia de risos.

Aprendi contigo a não me importar com o improvável,

Mas apenas viver a certeza de que

O simples fato de estares ao meu lado me bastava!

 

Poderias ser amante, amada,

Filho, amigo.

Alguém que faz com que não se desista.

Abre-se mão de tudo o que é pré-estabelecido

Quando se encontra o sentido de uma presença.

 

Sempre nos entendemos mais por

Silêncios do que com palavras.

Fui resgatado da solidão e

Me acostumei com a tua companhia.

Em qualquer situação, em qualquer idade,

A vontade de esperar por

Quem cuidou e ensinou os primeiros passos do amor.

 

No eco que delineou a tua imagem,

O teu riso e as tuas palavras

Tive a garantia de que

O Sol iria renascer em meio à escuridão.

Quando os olhos se quedam,

No instante mágico em que alguém

Toma a tua mão para acarinhar

O primeiro broto que desperta a Primavera...

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Enchentes: as lições a serem aprendidas

Andávamos no interior de Santa Catarina quando a guia falou a respeito dos primeiros migrantes que chegaram ali e negociaram com os índios o uso da terra. Pretendiam fazer uma povoação às margens do rio. Estranharam que não houve resistência. Os nativos preferiam ficar nas colinas. Acreditaram terem feito um bom negócio, já que as águas eram as estradas de então. Isto, até que chegasse a primeira enxurrada. Aprenderam da forma mais dolorosa que o caudal não se importava se eram indígenas ou estrangeiros...

A lembrança veio pelos noticiários a respeito da enchente do Vale do Taquari, afetando municípios como Muçum, Roca Sales, Lajeado e Estrela, entre outros. Visitei o primeiro a cerca de 50 anos e conheci a rua principal num ponto mais alto. Depois a área urbana se expandiu para as margens do rio, a causa da tragédia daquela localidade e em outras que acompanham os fluxos de água. Acabou sendo uma das cidades mais afetadas (estima-se que cerca de 85% das casas foram pura e simplesmente arrastadas).

 


Olhando para o que já aconteceu com populações ribeirinhas (inclusive aqui em Pelotas) é impossível não se entristecer com o fato de que é um filme que já se viu em outras ocasiões (com menor intensidade e efeitos não tão devastadores). As imagens e depoimentos mostram o dia seguinte como um estado de guerra. O rio Taquari subiu o que não fazia desde 1959. O resultado é a perda de imóveis, mobiliário, lavouras e, sobretudo, vidas humanas. Além do terror de quem passou pela espera por socorro.

É hora de salvar vidas sem perder a perspectiva. Ainda olhando para os céus em busca de nuvens carregadas, populações castigadas limpam as áreas para, só depois, pensar na reconstrução. Quem sabe, agora, nas regiões mais altas, já que os eventos climáticos ciclicamente se repetem, seja com a seca ou a enchente. Contar as perdas é quantificar valores financeiros, acreditando que para a outra – dos entes queridos – apenas restam as lembranças do que se fez ou se deixou de fazer para que sobrevivessem...

Uma outra coisa que chama a atenção é a linguagem do jornalismo nas longas intervenções que são feitas, especialmente por televisão. Com raras exceções, tem se tratado como espetáculo trágico, bem mais do que a real e necessária prestação de serviços. Contar histórias para humanizar a dor e provocar pressão política e a indignação, não significa a necessidade de repetir clichês para que as vítimas cheguem às lágrimas ou incentivar a indignação com os setores públicos envolvidos.

Este é um fenômeno novo? Pela opção dos índios em não ficarem às margens dos rios, parece que não. Faltou aprender a lição e, para quem insiste, a legislação e fiscalização que preservem os vales das correntes de água. Tudo é recente e mesmo os voluntários, muitas vezes, sentem-se perdidos... Paciência. Não se pode é tolerar o turismo da catástrofe. Já existem cidades montando barreiras. Nada mais justo. Este é um dos ensinamentos a ser aprendido: a desgraça nunca pode ser transformada em espetáculo!

domingo, 10 de setembro de 2023

Quando morre a cidade na beira do rio...

Era o fim da década de 70. Fazíamos um curso de extensão na Escola de Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Porto Alegre, como internos na Vila Betânia. Aos fins de semana, muitos voltavam para suas cidades, quando próximas. Não era o meu caso. Além da distância, os pilas eram curtos... Restava umas voltas pela capital e, quando havia sobra, ir ao Beira Rio para um jogo do Internacional. No resto, nos dividíamos entre as teorias na própria casa e a prática em veículos de comunicação, como a então Rádio e TV Difusora, pertencentes aos freis Capuchinhos.

Num fim de semana, estava com a carteira um pouco menos vazia e me convidei para ir à casa de um dos grandes amigos que fiz no Seminário Diocesano, em Muçum: o João Carlos Dal Magro. A viagem já era uma aventura, num tempo em que se fazia baldeação e, antes de chegar, uma escala em Estrela (eu creio, ou foi Lajeado?). Depois iniciar as andanças pela serra que eu via pela primeira vez. Fui me encantando com as pequenas cidades que margeavam o rio Taquari, formando o vale do mesmo nome.

Não sou bom em geografia (e ainda pior de lembranças), mas também acho que era uma pequena rodoviária tipo parada de ônibus (sem ofensas!). Dali conhecer a família e a casa, próxima ao rio. Visitar a cidade, então, era relativamente fácil: uma rua principal e muitas estradas para o meio rural. O acesso ao viaduto 13, um dos mais altos das Américas (a Rodovia do Trigo), fazendo ligação de Roca Sales a Guaporé. À noite, com muito frio, no aconchego da família, tomar chimarrão com polenta e pinhão na chapa...

Já conhecia muitos meninos de descendência italiana que estudaram no Seminário. Mas uma imersão na família e estilo de vida é impactante pela simplicidade de quem trouxe da Itália a cultura, religiosidade, valores e referências, desbravando uma região inóspita. Não era apenas um amigo perdido do “Jonca”, parecia um velho conhecido retornando ao convívio familiar. Nunca mais fiz uma experiência assim. A cidade que corria à margem do rio havia passado a correr, também, pelas minhas lembranças...

Imaginem, então, ouvir autoridades dizerem que “a Muçum que vocês conheceram não existe mais!”. Lógico que, hoje, depois de quase 50 anos, eu não a reconheceria como a vi daquela vez. Mas fiquei triste em pensar que uma cidade que me deixou tão boas lembranças havia morrido... As imagens que os meios de comunicação passaram e depoimentos de quem perdeu familiares, casas, bens, é um soco no estômago de quem tem na memória a placidez de águas correndo tranquilas e o verde que emoldurava o rio.

Por lugares onde o frio achegava ao fogão, idoso passou a noite tentando prender a mão da esposa para não desistir. Na região, rapaz não conseguiu segurar a mulher e os filhos, levados pela correnteza. As marcas físicas são pequenas diante do que resta no peito. Depois de um tempo, sobram memórias. Desconfiados, machucados por um fenômeno climático com muitas explicações e poucas soluções. Triste: muitos serão enterrados às margens (quem sabe na curva) do mesmo rio que um dia lhes tragou a vida...

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

As cinzas onde dormitam as brasas...

O destino faz com que

Momentos se tornem especiais:

Quando raios de sol se espreguiçam,

Suspirando pela noite.

As nuvens se tornam palhetas para

Misturar as cores e fazer o pôr do sol.

As nuances da escuridão são

A transição entre o mar e o céu.

Nas ondas que murmuram dolentes,

Já não importa o que é o mar e onde

As águas se confundem com o infinito...

 

Realizam sonhos que

Penetram pelos sentidos ao inalar a maresia.

No derradeiro grasnar das gaivotas,

Acompanhamento perfeito,

A música que toca os acordes no seu apogeu,

Mexendo com cada fibra do meu corpo...

 

Na praia,

A fogueira não se importa

Que o seu luzir seja visto ao longe.

De onde o olhar alcança é sinal na escuridão;

De perto,

Recebe para se recolher ao silêncio e

Perder o olhar na imensidão dos devaneios.

 

A pequena e fugidia labareda,

É uma brasa em meio a gravetos e pedaços de madeira,

Precisam ser remexidas,

Atiçadas para não perder o calor.

Por sobre os tições,

As cinzas fazem

O lugar certo para renascer a chama.

 

O quebrar das ondas na areia

Sussurra ao ouvido e

O que se vê é um risco de espuma branca

Marcando o mar, que está ali,

Pertinho, e, aos poucos,

Se mistura ao breu da noite.

 

Apenas uma fogueira na praia...

Já não importa o rumo que se toma,

O certo é que o caminho continua

Deixando pegadas,

Tragadas pelos esquecimentos.

Ficar é enfrentar a noite e seus desafios,

Partir é, por toda a vida, saber que

Ali restou o encantamento,

Quando se descobre a dor de

Se desperdiçar um pôr do sol.

 

As lembranças de quem compartilhou

O derradeiro sopro para manter a chama.

Por toda a vida, remexer saudades

É impedir o esquecimento.

No sussurro das ondas que quebram na praia,

O sonho não desiste

Da felicidade que esteve ao alcance.

Eterniza o instante mágico

Para não perder o sentido do horizonte

Quando restam nas mãos

As cinzas onde dormitam as brasas...

terça-feira, 5 de setembro de 2023

7 e 20 de setembro: em busca de uma identidade

As comemorações do 7 de setembro (Independência do Brasil) e do 20 de setembro (Revolução Farroupilha) não podem permitir que a palavra "povo" seja apenas uma expressão corriqueira e deturpada pelo mau uso. Não é uma questão de consulta dicionários, mas entendimento de que sinônimo pode significar, mais do que “grupo de pessoas”, um agregado de valores, referências, princípios, que deveriam formar uma identidade. Infelizmente, a identidade que, hoje, o “povo brasileiro” não tem...


A História não é ciência exata. Portanto, está sempre sujeita a interpretações. Mesmo novas pesquisas, novos entendimentos não garantem que se possa compreender o que de fato aconteceu e como pensavam as pessoas daquela época. Tanto num, quanto no outro caso. O certo é que sempre existiram idealistas e aproveitadores. Nenhum movimento e nenhuma causa escaparam de ter entre seus defensores aqueles que acreditaram piamente nas suas propostas, mas também os oportunistas de plantão, como hoje.

Revisitar a História não nos dá o direito de querer reescrevê-la (embora sempre se diga que os vencedores é que a escrevem). Podemos tentar entender o que se passou, como chegou a acontecer e as suas consequências. Afora isto, são ilações, que muitas vezes beiram a má fé. O mesmo que negá-la porque não atende aos “padrões” daqueles que a escrevem hoje. Quem assim o faz está negando seu passado, com suas virtudes e seus defeitos. Seres que viveram intensamente, com padrões culturais e sociais diferentes.

Setembro, especialmente para nós, gaúchos, deve ser ocasião privilegiada de refletir sobre as relações sociais e culturais. Infelizmente, na maior parte das vezes, ainda são momentos de conhecimento e representação das classes intelectuais abastadas e sem qualquer interesse, a não ser por curiosidade, da maior parte dos gaúchos comuns. A falta de educação formal da nossa gente e um ranço histórico não permite que haja um sentimento popular de respeito pelos símbolos, tanto do estado, quanto da nação.

Mesmo a forma como se escreve a História, hoje, será de difícil compreensão, num futuro não muito distante. Olhar para as representações políticas partidárias e administrativas é ver um quadro caótico de difícil interpretação, porque não se tem uma identidade partidária que respeite ideologia e princípios, virando uma maré de oportunismo, balançando conforme as vagas que movimentam o poder. De onde não escapam sequer a cumplicidade de grupos religiosos e de meios de comunicação...

A política (no sentido lato) existe para alcançar o bem social a maior parte possível da população. Interpretações de uma visão de estado que dê regalias a alguns deturpa o sentido da cidadania. É triste saber que privilégios foram dados a grupos que legalizaram seu mando sobre a máquina administrativa – executivo, legislativo e judiciário. Inversamente construídos sobre tudo aquilo que pensaram os idealistas que de fato tinham o espírito gaúcho e brasileiro ao concretizarem o 7 e o 20 de setembro!

domingo, 3 de setembro de 2023

O Mestre e o Aprendiz: o começo do que se chama futuro

O Aprendiz chegou à porta da sala do Mestre e não entrou. Tinha uma mochila nas costas e se mostrava decidido.

- Eu vou embora!

O Mestre brincou:

- Eu também. Posso ir junto?

Mas o menino já tinha se afastado em direção ao portão do Mosteiro. Só então, o Mestre percebeu que a coisa era séria. O pequeno tomou a estrada em direção à vila, no sopé da montanha, utilizada apenas pelos monges, aprendizes, assim como os moradores das proximidades. Todos eram conhecidos, familiarizados com o Aprendiz fujão.

O Mestre recordou que, nos últimos dias, o menino tivera algumas desavenças com seus colegas, por questões que julgou triviais. Pensou que eram coisas de crianças e que era melhor não se meter, que eles mesmo resolveriam.

A estrada era irregular, estreita, passando pessoas, mulas e algumas poucas carroças. Descuidado, o Aprendiz não se deu conta de um buraco e, quando percebeu, ainda tentou se equilibrar, mas foi ao chão. Era muito azar. Agora estava brabo, cansado e ainda sujo. Tentou levantar e não conseguiu. Havia torcido o pé. Arrastou-se até a sombra de uma árvore. Muitos dos que passavam lhe ofereciam ajuda. Não queria, não precisava...

Era quase o fim da Primavera. Um vento quente soprava. Lembrou do Mestre dizendo que eram os ventos dos espíritos da intriga. Dificilmente, nesta época, não haviam desavenças. Tentou lembrar do que o irritara tanto. Eram coisas tão pequenas que já começava a sentir vergonha. Mas não tinha o que fazer. Iria descansar e arrastar-se até a vila...

No final da tarde, o Mestre teve a notícia de que viram o pequeno pisado na beira da estrada. Sem muita pressa, deixou o Mosteiro e, pouco antes do povoado, avistou o menino. Não era a melhor hora para dizer alguma coisa. Preferiu oferecer seu colo para trazê-lo de volta. Embora já estivesse crescendo, ainda era muito magro. Em pouco tempo, chegariam em casa.

O pé precisou ser enfaixado. Só que, agora, ao invés de emburrado, o Aprendiz estava encabulado. Seus colegas não sabiam o que fazer e o Mestre acreditava que era bom dar um tempo. Depois de dois dias, convidou para jantar no refeitório.

Quieto chegou e quieto ficou. Durante a refeição, um a um deram um jeito de ajudá-lo no que precisava. Faziam parte daqueles com quem havia se desentendido.

Depois de um tempo, o Aprendiz apenas baixou a cabeça. Tinha medo de chorar. Olhava para sua tigela onde o arroz chegava a um pouco mais do que a metade. Mas não tinha fome.

Foi quando o Mestre usou o hashi para depositar o primeiro bolinho em seu prato. Na sequência, um a um, os demais companheiros de mesa foram colocando pedaços de comida, num gesto de carinho que não esperava. E que o desarmaram!

As lágrimas foram rolando devagarzinho. Quando levantou os olhos, o Mestre estava junto dele e se aconchegou ao abraço que lhe era oferecido.

Enquanto o burburinho de crianças e jovens voltava ao normal, o Aprendiz deu-se conta de que o Mosteiro era a sua casa. Ali, não precisava ter medo do que lhe poderia acontecer. Seria o seu lugar de partida e para onde sempre poderia voltar. Ainda doía ter que reconhecer, mas seu erro era uma das etapa do seu aprendizado. O certo é que Mosteiro era mais do que a sua casa, era o seu lar.

De longe, o Mestre observava o pequeno com a perna estendida ao lado da mesa sendo paparicado pelos demais. Por quanto tempo ainda estariam por ali? Um dia, cada um deles faria mais do que pegar sua mochila e fugir para a vila. Iriam além, se arriscando no Mundo. A vida que continua... Pássaros que saem do ninho e voam pela primeira vez, certos de que o horizonte é apenas o começo do que se chama futuro!

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

A razão de ser de uma lágrima

Há uma lágrima que rola por teu rosto

Quando a madrugada acaricia teus sonhos,

Sem o direito de recordar a razão.

É o pranto que acompanha tua vida,

Desde o teu primeiro gemido,

Quando reclamaste por não intuir o teu futuro.

Choraste quando querias ter rido,

Começavas a partilhar de uma história,

Sem perceber que de muitas outras

Acabarias por tomar parte...

 


Ninguém passou por ti indiferente.

Alguns despertaram o riso,

Outros sorrisos,

E os que mais te marcaram

Foram os que te deixaram lágrimas.

Que te fizeram sofrer,

Misturadas à alegria,

As que despertaram em ti emoções.

 

Vieste ao Mundo em busca de felicidade,

Querias aprender com as flores,

Que bailam no sussurro da brisa

E não esquecem de quem as regou e acarinhou.

 

Mendigaste a partilha dos teus sentimentos.

Idealizaste um sonho:

Com qualquer sofrimento,

Viverias nas sendas em que

Cores e perfumes fazem a química

Onde borbulha a essência da vida.

Ali, soluços transbordam e

As dores já não cabem num peito.

 

Assim como não se controlam as lágrimas,

Também não se controla o amor.

Há um choro contido quando

O pranto encontra o caminho de um olhar,

Por trilhas já percorridas, na descoberta

De que as lágrimas que secaram

Ficam na memória e as marcas selam teu rosto...

 

Ecos do pranto da criança que se aventura

Necessitando demarcar caminhos;

O jovem experimentando na sedução

Sentimentos conturbados;

O momento em que a única lágrima

No rosto do idoso marca a despedida;

 

Regam o rumo da esperança,

Que não precisa ser o caminho do pranto.

Não pode deixar

Que te arrependas dos teus sonhos.

Deixa as secar ao sabor da brisa

Que atiça os cata-ventos.

Seguindo o teu destino: a agonia da perda é

A lágrima que não encontra a sua razão de ser...