terça-feira, 29 de março de 2022

“Quantos anos tens?”

Conta-se que, em certa ocasião, alguém perguntou a Galileu Galilei: “- Quantos anos tens? - Oito ou dez, respondeu Galilei, em evidente contradição com sua barba branca. E logo explicou: Tenho, na verdade, os anos que me restam de vida, porque os já vividos não os tenho mais”. O registro foi feito por um desconhecido, mas importa que tenha ficado a lição dada pelo sábio e a necessidade de, querendo qualificar a existência – a única que se tem - é preciso colocar o tempo na sua real perspectiva: valorizar o passado e o presente como razão para os anos que ainda nos restam.

Neste fim de semana li a notícia da preparação para a morte do ator Alain Delon, que completou 86 anos em novembro e decidiu acabar com sua vida por meio de um suicídio assistido. O francês que tem um dos rostos mais bonitos do cinema, sofreu um AVC em 2019. De lá para cá, passou por muitas dificuldades, reclamando da vida que leva, especialmente depois que a esposa também praticou o mesmo tipo de morte, na Suíça, onde o procedimento é legal. Os meios de comunicação vem publicando o contraste entre o jovem Delon e os “estragos” que o tempo fez em seu corpo…

No fim de semana, participei da reunião de coordenação estadual de Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em Porto Alegre. Reencontrei duas referências para minha vida de fé e conhecimento: o padre e sociólogo Pedrinho Guareschi, aos 82 anos, ouvindo com dificuldade e confessando que sofre com esquecimentos, junto com seu amigo e meu mestre, Attílio Hartmann, beirando os 87 anos, andando devagar (embora continue torcendo pelo Grêmio…) e atuando na livraria Padre Reus, no centro da capital. Ambos atendendo aos seus deveres sacerdotais e sociais.

No meu “alvorecer da terceira idade”, aos 67 anos, tive dificuldade de entender Galilei. Impera a cultura da juventude em que grande parte dos valores passam pela plenitude física. Quando os anos se esvaem e não se consegue ter aquele corpo escultural bate o medo de que seja o prenúncio do fim, sem ter conseguido encontrar um sentido para envelhecer… O triste é que, em muitas fases, sabe-se o que os outros vão passar e o que deveriam fazer – e até lhes impomos como se comportar, mas… - se fará da mesma forma, esquecendo o já dito, e patinando nas areias movediças do tempo!

Gosto de pensar que amadurecer nos torna mais tolerantes. Foi o que entendi ao ouvir a proposta do papa Francisco para o Dia Mundial das Comunicações. Separa o que seja “ouvir” (ato físico) de “escutar”, que remete à necessidade de se prestar atenção a quem está falando, concentrar-se na pessoa que nos diz algo. É um dos aprendizados mais difíceis, pois se poderia ampliar para os sinais da natureza, da vida, do homem, em sua plenitude. Abandonar a própria redoma – egocentrismos e vaidades – tem, mais do que a preocupação com o caminhar para o fim, encontrar razão para ele.

Quantos anos tens?” O símbolo sexual das décadas de 60 e 70 não vê sentido em continuar porque o tempo marcou seu rosto, seu corpo e se desiludiu. De outro lado, ao ver a contribuição de padres idosos para ações religiosas e reflexão social, acredito: a existência não se importa com nossos resmungos. Hoje, sinto prazer numa palestra que dá certo, assim como na planta que viceja por minhas mãos... “Velhos” que não vivem apenas de saudades, mas da simplicidade de um instante e, desafiados, ter o direito a um sorriso, um carinho, um lugar ao Sol… Ou seja, apenas de ser feliz…

domingo, 27 de março de 2022

Os bons cheiros e gostos da vida

A crise econômica e a volta da inflação fazem o brasileiro mudar o cardápio. Com o preço da carne nas alturas, não somente do boi (ou da vaca), mas também da galinha e do porco, as donas de casa têm que voltar os olhos para antigas receitas de acompanhamento do arroz com feijão. Com as remarcadoras fazendo o seu crime nos preços, longe do bolso do pobre, o ovo torna-se presente. Como um, na chapa, pela manhã, com uma fatia de presunto, uma de queijo, pedaços de tomate e orégano, mais uma generosa fatia de pão. É um simples “breakfast” (café da manhã americano)…

Meu gosto pelo ovo vem da infância. Quando estávamos por casa, pela manhã, éramos brindados com um “fristique”. Cozido, no ponto em que a clara tomava consistência e a gema se mantinha “molinha”. A primeira etapa para degustar aquela delícia era, mantendo em pé, fazer um pequeno buraco na parte superior e, com uma colher de chá, colocar um pouco de sal. Depois, era do gosto do freguês, podendo utilizar a mesma colher para limpar a casca, ou, como eu preferia, ir injetando pequenas lascas de pão que voltavam untadas na gema e com pedaços da clara.

A gemada, naquele tempo, não tinha os efeitos afrodisíacos que tanto se apregoa hoje. Era manjar aprontado para um café da tarde, quando se tinha visitas. A gema, batida com paciência, ia tomando consistência. Era preparada e servida numa caneca grande da qual ninguém desgrudava os olhos até que a mãe ou minha irmã serviam as fatias do pão “cacete” untada por aquilo que, se soubéssemos então, deveria ter sido o resultado de um trabalho dos deuses! Falantes e brigões, naquela hora, o silêncio era dominante e se ouvia a crocância do pão se desmanchando em solenes mastigadas.

Éramos carnívoros. Quando não aparecia um naco de carne no prato, havia resmungos. Nos tempos das vacas magras (não que os bichos estivessem de regime, mas faltava dinheiro), era comum a gente ver carne servida em nossos pratos e os pais se contentando com um ovo frito. Eu queria os dois. Mas, começava a ter um pouco de bom senso e pedia a troca. O pai saia ganhando. Era dos poucos momentos em que não misturava tudo que era servido. Era bem melhor abrir uma vala pequena do lado do ovo e deixar o líquido avermelhado misturar com o arroz, separado do feijão!

E tem, ainda os fios de ovos… Meu Deus! Puro, ou misturado com algum outro doce, se possível com calda, tira qualquer um de um regime. O Ninho é dos meus preferidos na Fenadoce, onde nunca resisti em comer apenas um. Então, depois que diminuíram o seu tamanho, sempre fico com alguma vergonha (que passa logo) de alinhar diversos e gastar mais tempo na praça da alimentação. Nunca gostei muito de bolo, mas, quando colocam a mesa com diversas travessas em que o “amarelinho que faz bem” se faz presente, como se diz na gíria: “eu piro!”

O que hoje é prato para enfrentar a crise, na infância era manjar para lambuzar os beiços. Acho que exagerei, desculpem. Mas é assim mesmo. Com o passar dos anos, mais “experientes”, se diminui a ração, como dizia meu pai. Mas tem certas coisas das quais se prefere não abrir mão. Em especial, os bons cheiros e gostos da vida. Na lembrança de um ovo cozido, transformado em doce no pão, no prato feito ou símbolo do melhor da nossa terra... E nem falei das galinhas. E olha que um arroz com feijão, um bife de frango, saladinha básica e um ovo frito é um prato que tem lá o seu valor…

sexta-feira, 25 de março de 2022

Mãos que acalentam a Eternidade

 

Não tinhas este costume de colocar as mãos sobre o colo

e olhar para elas como quem remexe no passado.

Pousadas, silenciosamente entrelaçadas,

dão-te o sossego necessário para meditar.


Elas foram companheiras fiéis:

Na angústia dos momentos em que encobriam teus olhos,

na serenidade com que se juntavam em prece,

na ternura com que ofereciam amparo,

no jeito como acenaram em muitas despedidas…


As mãos que, na infância,

encantaram adultos, com o teu jeito brincalhão e carinhoso.

Ajudaram a levantar das muitas quedas,

a traçar caminhos por rumos que te eram estranhos,

mostraram, no primeiro lar, que, por toda a vida,

precisarias de um recanto onde reencontrar as tuas esperanças.


Mãos que, na juventude, perderam o constrangimento

e souberam abraçar, em momentos em que acolhias ou

que precisavas de um porto seguro.

Nos doces instantes em que viveste juras de amor eterno

ou naqueles em que teus desejos ficaram perdidos

nas dobras do tempo em que desenhavas o teu destino.


Na maturidade, colocaram uma perspectiva diferente,

onde acreditaste que os sonhos haviam ficado adormecidos

e o dia a dia mostrou que não podias desistir.

O que ainda restava de tua família de origem,

a família que formaste,

os novos e diferentes encontros e desencontros...


Foram mãos que, na velhice,

Quando te recolhias ao silêncio, junto ao teu rosto,

eram a serenidade que somente

quem amadurece vê sendo entalhado nos sulcos da face.


Agora, tuas mãos brincam sobre a toalha da mesa.

Amarram os laços da saudade,

enquanto murmuras uma oração.

As cores já se diluíram.

O que tens, hoje, não compensa as lembranças

que carregas no peito…

São sussurros de outros tempos

pedindo para que não esqueças de quem amaste

no murmúrio da brisa que já te acalenta para a Eternidade!

terça-feira, 22 de março de 2022

Uso da máscara: a pandemia não acabou

O maior número de crianças que passa por minha casa em direção aos colégios está indo após o almoço e voltando com seus pais ou responsáveis no final da tarde. É sempre uma grande algazarra com vozes altas, corre-corre e empurrões. Os menores ainda seguram a mão de quem os conduz e alguns carregam o brinquedo que levam como acompanhante. A variedade de máscaras – coloridas, desenhadas, estilizadas – tornou-se um dos elementos que faz a diferença, na ida para casa, assim como qualquer um dos acessórios necessários, como a mochila e o material didático.

O ritual somente foi quebrado, recentemente, quando apareceram alguns seguindo o mau exemplo dos maiores: a máscara “protegendo” o queixo e não mais as vias respiratórias. A forma de não esquecer o material, descolados da sua necessidade primeira de prevenção que ainda existe e, infelizmente, por sermos uma sociedade de terceiro mundo, colocada de forma incorreta e ineficaz. A máscara não começou a existir com a pandemia, já era usada como proteção contra a poluição e pessoas infectadas por algum vírus, desejosos de se proteger e proteger a sociedade.

Ao ponto de que o jornalista Daniel Scola (Rádio Gaúcha) contou que, no Japão, ao entrar no metrô, numa época de frio, sentiu-se deslocado por ser o único que não a usava. O susto está sendo vencido pelo cansaço. E pelo negacionismo… Dos altos números de mortes diárias, chega-se ao patamar de 400, acreditando ser “aceitável”, especialmente se não forem daqueles que nos são próximos. O avanço da vacinação criou uma barreira, assegurando a diminuição mas, tristemente, para as crianças, a realidade não é a mesma, a sua proteção patina e as coloca em risco.

A discussão atual é a liberação do uso de máscaras em lugares públicos. É uma possibilidade viável, não porque a maioria já está praticando e as autoridades tenham que ir a reboque, mas porque está comprovado que os riscos são menores. No entanto, em lugares fechados, a preocupação é maior por fatores também já provados. Que a máscara é um incômodo, ninguém duvida, apresentando dificuldades de respiração, fadiga e sonolência. Porém, ela é necessária e fica a preocupação com quem se desloca para lugar fechado. Será que vai lembrar de carregar a máscara na mão?

Apesar de que, como fazem alguns que colocam no queixo ou sobre o cabelo, o efeito é o mesmo. Parecem com alguns idosos que procuram os óculos que estão sobre a testa… Não posso fazer aqui a comparação que faço para amigos que insistem com a dita abaixo dos lábios. É como se usassem certa peça de roupa que normalmente a gente não vê, rebaixada… está no lugar, mas não protege absolutamente nada! Então, de que adianta? E tem os mal-humorados que se incomodam: “a máscara é minha e coloco onde quiser!” Confesso: não tenho intimidades para dar uma resposta!

Todo o processo de educação passa pelas referências. As práticas corretas de higiene precisam se transformar em valores assumidos e transmitidos. Adultos que usam as máscaras de forma correta são acompanhados por crianças que fazem o mesmo. Infelizmente, o mau exemplo também faz escola. A pandemia não terminou, o que resta da estrutura de saúde no país foi responsável por um gigantesco processo de imunização. Que está longe de terminar. Posso estar errado, mas creio que é melhor um vivo, cansado, usando máscara, do que um defunto descansado e em paz, sem ela…

domingo, 20 de março de 2022

Fotografia: a eternidade de um momento

A fotografia entrou lentamente em nossas vidas. Durante muito tempo, pelo seu custo e dificuldades técnicas, era apenas para o registro de momentos muito importantes ou, em alguns casos, substituir os clássicos quadros pintados em poses “para a eternidade”. Pelo final da década de 60, começou a se popularizar e se tornou mais acessível, sendo presença constante em aniversários, casamentos e passeios. Um registro que entrou para os álbuns ou caixas de retratos que eram acessados quando batia a saudade, recordar bons momentos, ou não se tinha mais o que conversar com as visitas…

Já na faculdade, tive aulas de fotografia e se podia tomar emprestados equipamentos para trabalhos externos. Fiquei com muitos registros de lugares e pessoas ligadas ao tempo em que vivi no Seminário Diocesano. Fotografar já era um prazer mas, depois, íamos para os laboratórios onde se fazia a revelação – em preto e branco – contemplando a maravilha de ver a imagem surgindo gradativamente, enquanto se passava pelo revelador e o fixador. O “pequeno milagre” era colocado em varais que atravessavam a sala para secar e estar pronto para, com muito orgulho, ser mostrado.

Entre professores e palestrantes, fui conhecendo a forma como as pessoas e as diferentes culturas reagiam àquilo que, para nós, já se tornava banal. Numa ocasião, o repórter fotográfico de uma revista nacional contou que percorreu uma região da Amazônia. Registrou muitas imagens e, pensando agradar, revelou algumas para mostrar aos índios, seus novos amigos. Foi uma reação inesperada: os indígenas tremiam de medo e pediam, por todos os deuses, que ele rasgasse aquele papel onde havia capturado as suas almas! Que era um mau sinal e, sem elas, na certa, morreriam...

Não é diferente do que se tem, hoje, quando se vê pelas páginas de jornais e revistas a cobertura da guerra da Ucrânia. Há um embate entre os vídeos colocados à disposição e as fotografias feitas por alguns dos melhores repórteres fotográficos do Mundo. Sempre fico com a impressão de que o vídeo vulgariza uma situação, não conseguindo atingir a sua essência, enquanto a fotografia consegue a captura de um momento. Eterniza naquela situação, naquele rosto, naquele monte de escombros, informação, denúncia, alerta, a necessidade de um olhar que se comprometa com a vida.

Minha curiosidade também é atraída pelas muitas fotos antigas sem identificação que se encontram em baús, antiquários, brechós, feiras de antiguidades… De algum lugar do passado, personagens que cruzam com os nossos olhares, numa insistência em ultrapassar o tempo e, mesmo no anonimato, criar algum tipo de laço. Imaginar com o que estavam preocupados, que bobagem haviam pensado, em quem estavam interessados, o que iriam fazer depois… O papel que já enverga e amarela, as cores que esmaecem, mesmo os lugares que o passar do tempo modificou.

A fotografia é o olhar que eterniza um momento. Desde aquelas que nos olham de um passado remoto, das fotos em preto e branco ou a cores, até chegar ao digital, é um percurso recente de histórias e lembranças. Os mais velhos dirão que não veem graça em mexer com as fotos que ficam em celulares e tábletes. Por gavetas, álbuns e caixas, fica um pouco do que nos fez feliz. Nos sorrisos e brincadeiras que ali estão capturados, sossegamos o coração, pois se fazem presentes os poucos que ainda restam ao nosso lado e uma lembrança carinhosa de quem já partiu.

sexta-feira, 18 de março de 2022

O sentido da derradeira esperança

Sexta com gosto de poesia:

Pela mesma rua, pela mesma calçada,

passam com as suas marcas, como um relógio do tempo…

A criança ainda arrasta os pés no andador.

O idoso precisa de arrimo para não desistir de andar…


Do seu jeito, os dois assinalam a existência:

um principia, o outro já sente que tem direito ao repouso.


A criança olha para a vida como uma grande avenida

por onde ainda vai andar e percebe

que tem muito o que descobrir.

No horizonte, estão sonhos, desejos, sentimento de que

pode fazer cada momento valer a pena…


O idoso já sente que tem pouco o que vislumbrar

e muito o que agradecer.

Já não importa se viveu mal, ou se viveu bem,

apenas que o cansaço da viagem é sinal de

que está próximo de aportar ao seu destino.


Um não sabe o que vai colocar na bagagem.

O mundo é uma imensa vitrine que coloca

aos seus pés todas as expectativas possíveis...

O outro está num tempo em que só precisa

das suas lembranças e da sensação

de que foi marcado pelo caminho.


O idoso sente que não é, apenas,

a projeção do futuro para quem inicia.

Gostaria de falar, mas já nem sabe se precisa,

o quanto a criança é parte do seu passado,

a segurança para o presente e, mesmo que já seja o seu ocaso,

um sentido para o tempo da sua ausência.


A vida é um belo e precioso intervalo entre nascer e morrer.

O desafio é encontrar e dar sentido

a cada ato, cada momento,

cada um que cruza com os nossos caminhos.

Até o fim, a possibilidade de que a última arfada de ar

não tire dos meus olhos o sentido da derradeira esperança!

terça-feira, 15 de março de 2022

Um cemitério de sonhos que se chama guerra

A invasão da Rússia na Ucrânia vem merecendo farto acompanhamento através dos meios de comunicação. Difícil se acionar o controle remoto por canais abertos ou da televisão paga que não se encontre informações a respeito. Num cantinho da Europa, com relativa facilidade de acesso, tendo a possibilidade de transmissões através da internet, consegue mostrar o melhor e o pior das autoridades envolvidas; o melhor e o pior dos interesses econômicos em jogo; o melhor e o pior de um jornalismo que, na busca pela informação, em alguns casos, beira o entretenimento…

O esforço dos correspondentes de guerra é para fazer o “diferente”, que não canse o telespectador, ouvinte, leitor, num autêntico baile de loucos para não perder audiência. A cobertura tradicional não tem o que variar. São, também, conflitos de números e dados oficiais, sem a possibilidade de serem checados. Então, as coberturas se contentam com o que conseguem de imagens e informações dos frontes, mas usam e abusam das matérias que envolvem as emoções de quem fica no país ou daqueles que se transformam em retirantes, numa longa jornada para chegar às fronteiras.

Nesta guerra, em especial, jornalistas envolvidos se deram conta de que tinham nas redes sociais um aliado para gerar imagens de locais atacados e produzir matérias de impacto humano. Confesso que fiquei sensibilizado pela mulher ucraniana que entregou sementes de girassol para o soldado russo, dizendo ser ele um invasor que devia colocar no bolso para quando seu corpo fosse devolvido ao seu país. Ou a do soldado ucraniano que recitou poema antes de partir para o fronte e do russo que mandou mensagem para a mãe, sem entender o que estava acontecendo, antes de morrer.

Emblemático o confronto entre uma mulher sofredora que defende a sua terra e um jovem que pouco entende da situação que está vivendo. Primeiro pelas redes sociais, depois pelos meios de comunicação, deu uma volta ao Mundo. Mas, antes, tornou-se símbolo de resistência e, numa terra rica em produção agrícola, as sementes transformaram-se nos “Girassóis da Ucrânia”. Sendo pedidas para que fossem entregues aos pelotões que já cercam as grandes cidades, assim como enviadas ou deixadas nas portas dos consulados russos, como sinal de resistência.

Zhenya Perepelitsa deixou a esposa, filhos, amigos e o cachorro para defender seu país. Quando conversou com um repórter, recitou o poema persa do iraniano Hamid Mosadegh, “quem lhe dará a notícia da minha morte?” E partiu para o fronte… Na guerra de versões, foi divulgada mensagem de um soldado russo a sua mãe: “estou na Ucrânia. Há uma guerra de verdade acontecendo aqui… disseram que os civis iriam dar boas-vindas a nós, mas eles não nos deixam passar, nos chamam de fascistas, isto é tão difícil”. O garoto teria morrido poucas horas depois da troca de mensagens.

A guerra é, sempre, um cemitério de sonhos. O Mundo nunca saiu melhor dos grandes conflitos. Ficaram ressentimentos nas relações internacionais, especialmente para os perdedores. Infelizmente, a História não fala de quem passou fome ou ficou desassistido, o heroísmo anônimo de quem vê no fruto da própria terra um elemento agregador, ou a vitalidade de meninos transformada em bucha de canhão. Para os senhores da guerra, apenas um efeito colateral. Para as famílias que vivem o luto, um rosto, um jeito, um sorriso... E, na dor de um corpo recebido, a morte de uma esperança…

domingo, 13 de março de 2022

Estão faltando avós do jeito antigo...

Nas coxilhas de Canguçu e de Camaquã, de então, próximo ao rio que leva o mesmo nome, formou-se o casal do seu Manoel e dona França, meus pais. Desde cedo, aproveitei o convívio com as avós: por parte de mãe, a dona Jovita, e por parte de pai, a dona Saturna. Embora próximos, os roteiros de chegada eram bem diferentes. O primeiro se dava pela própria cidade de Canguçu, numa jornada que levava praticamente um dia; o segundo, em direção a Camaquã, desembarcando no paradouro do Grill e começando uma caminhada, por estradas quase sempre desertas, pelo Passo do Sapato.

A rotina era bem diferente da que se tinha na Vila Silveira: deitar cedo, acordar mais cedo ainda; nos chamavam para apojar as vacas e conseguir uma caneca com leite quente e espumante; correr pelos pátios atrás das galinhas, para garantir o almoço; ajudar em coisas adequadas para a idade, tanto na horta, quanto nas lavouras; ir até a cacimba para buscar a água que servia para a higiene e alimentação, tomar banho nas sangas... No jeito simples de uma vida pobre, o reencontro de meus pais com irmãos e suas mães propiciavam um sentido muito forte do que eram laços de família.

Falo das “avós” porque não convivi com os avôs Eduardo (paterno) e Claudestino (materno). Morreram com pouco mais de 60 anos. Para as condições de então, eram considerados “velhos”, o que tinha a ver com poucos recursos e condições de saúde. Formaram famílias numerosas que precisavam subsistir com a dificuldade de terem poucas terras e nenhuma assistência que os tirasse da miséria (como meu pai dizia que viviam) para a pobreza (que uma vez chegou a contar, no que se transformara a vida de migrante que os retirou do interior para as periferias da cidade).

Estas memórias vieram quando uma vizinha passou por mim numa tarde que chegava ao minimercado para buscar pão. Com máscara, óculos escuro e chapéu de palha, parecia personagem de faroeste pronto para um assalto ao trem pagador. Quando me reconheceu, sorriu e brincou: “estava achando que era o seu Manoel (meu pai) quem estava chegando!”. Já não era a primeira pessoa que dizia algo semelhante, especialmente no jeito de andar, já um pouco arqueado, e no uso do chapéu, porque o pai não usava óculos escuros e nem conheceu as máscaras contra o covid.

A ocasião seguinte em que as memórias se fizeram presente foi ao conversar com as atendentes do salão onde corto o cabelo e uma delas disse que o filho sentia falta de um avô. Contei como seria a presença do seu Manoel junto às crianças que hoje estão na faixa dos 5 a 9 anos, na quadra. Brincalhão, era comum, quando alguma estava provocando estresse, reunir uma turminha e levar para campinhos próximos, onde, segundo ele, podiam “escramuçar e pastar à vontade”, gastando energia e voltando para casa, muitas vezes, prontos para banho, temas de casa e um bom sono.

Estão faltando avós do jeito antigo... O distanciamento físico, diferentes compreensões de educação, transformaram a cumplicidade entre gerações em ausência e o sentimento de que ambas perderam. Têm direito à parceria, presença e aproveitar do carinho de quem, descobrindo o Mundo, encontra alguém disponível. Avós são mais do que uma ligação física: são laços que, perdidos, atrofiam a sensibilidade e a capacidade de entender o que é o carinho de alguém que é pai ou mãe por duas vezes, o vovô ou a vovó, que descobre, no olhar da criança, o sentido da vida que já percorreu…

sexta-feira, 11 de março de 2022

A música que abraça a vida

Deixa que eu caminhe devagar…

Já andei como andas, correndo atrás de projetos;

buscando as satisfações do dia a dia;

com inúmeras preocupações a resolver.


Deixa que eu pare quando julgar necessário…

Não é mais o teu tempo, em que a pressa

te faz querer chegar a lugares que não queres;

fazer coisas que não te agradam;

iludir-te que estás mudando de vida.


Deixa que eu pare diante do espelho…

Meu sorriso é sulcado pelas marcas do meu tempo,

que garantem o direito ao silêncio.

Deixei vaidades, diminuíram anseios,

já não preciso de muito

e encontrei valor naquilo que ainda me resta.


Deixa que eu ande devagar…

Já não tenho pressa, transformei o passar

das horas em cúmplices: eu não corro, nem elas me

iludem com janelas para futuros que somente

foram realidades na minha imaginação.


Deixa que eu dormite encostado na poltrona…

É quando revejo o passado, acomodo-me ao presente

e sinto que o futuro ainda se esconde em devaneios.

Sou apenas um velho senhorzinho que não desiste da vida,

amparado pelas batidas dos corações daqueles

que me envolvem com o seu carinho.


Sem pressa, talvez tenha demorado,

mas o olhar que me abraça

ensinou, afinal, que amar – e ser amado - é a música

que faz a vida valer a pena!

terça-feira, 8 de março de 2022

Quaresma com jejum do egoísmo

Desde a Quarta-feira de Cinzas até a Semana Santa (Páscoa), os cristãos vivem a Quaresma. Para aqueles que frequentam alguma das igrejas cristãs, a sugestão é de que seja tempo de introspecção (reflexão) e de algum tipo de sacrifício, como o jejum de carne, por exemplo. Por diversos motivos, este costume está sendo deixado de lado, mas bem que se poderia pensar e assumir o espírito deste tempo. Quando se fala tanto de que é necessário se reinventar ou reciclar, a preparação para a Morte e Ressurreição de Jesus pode ser um momento diferenciado para um “desapego” mental e espiritual.

Ao simples jejum, o papa Francisco propôs 15 ações do dia a dia que qualquer um pode viver: “cumprimente sempre e em todo lugar; dê graças (mesmo que não acredite que deva ou deseje fazê-lo); lembre aos demais o quanto você os ama; cumprimente com alegria as pessoas que você vê todos os dias; ouve o que o outro tem a dizer, sem prejulgamentos, com amor; pare para ajudar; esteja atento a quem precisa de você; anime alguém; comemore as qualidades e os êxitos do outro; separe o que não usa e doe a quem necessita; ajude quando necessário para que o outro descanse.”

Mas tem ainda mais: “corrige com amor, não cale por medo; tenha boas relações com quem está perto; limpe o que usa em casa; ajude outros a superar obstáculos; telefone para seus pais, se ainda tiver a felicidade de tê-los.” Já seriam indicativos suficientes para, ao menos, pensar. Não diz respeito somente aos cristãos de todas as denominações, mas de como humanizar um tempo em que se valoriza a individualidade sobre a capacidade de sermos solidários/cuidadores, não de forma distante e teórica, mas com quem está ao lado, no apagamento de um pretenso olhar social...

Como se não bastasse, acrescenta: “jejue de palavras ofensivas e transmita palavras gentis; jejue de descontentamentos e se encha de gratidão; jejue da ira e encha-se de mansidão e paciência; jejue do pessimismo e se encha de esperança e otimismo; jejue de preocupações e se encha de confiança em Deus; jejue de queixas e se encha das coisas simples da vida; jejue das pressões e se encha de oração; jejue das tristezas e amarguras e encha de alegria o coração; jejue do egoísmo e se encha de compaixão pelos demais, tenha atitudes de reconciliação, de silêncio e escuta ao outro”.

Muito do que se aprende em sociedade leva a atitudes “umbigocêntricas”. Mesmo quem pensa em jejuar o faz porque tem alguma necessidade de saúde ou de estética. Em alguns casos, dependentes do álcool, do cigarro, chocolate... acabam por fazer um tipo de regime. A professora Tininha falou a respeito na live Partilhando, dizendo que para ter significado é necessário consciência de que é uma atitude religiosa e social e, aquilo que se economiza, deve resultar em algum “investimento” em atividade que demonstre o sentido da solidariedade de quem se abstêm com o necessitado.

Francisco é referência para cristãos do nosso tempo. Transforma-se, também, em “guru” espiritual de homens e mulheres de boa vontade que desejam, para além do seu credo religioso, fazer jejum do seu próprio egoísmo. Não há nada contra quem se sinta em condições manter a tradição da abstinência, especialmente da carne. Mas, novos tempos pedem novas posturas e os conselhos vão neste rumo: é preciso uma revolução de costumes, com a revitalização de uma simples palavra, desgastada e judiada, que ressurge em meio a conflitos e angústias: a prática e a vivência do amor!

domingo, 6 de março de 2022

Ainda é tempo para se esperançar

A brincadeira – muitas vezes levada a sério – é de que a semana que inicia é “a primeira semana útil do ano”. Passado o Carnaval que, por incrível que pareça, sem os festejos de Momo, conseguiu ser ponto facultativo com feriadão para o sistema bancário e educacional e o comércio funcionando precariamente, apresenta o Rio Grande do “Sol” atormentando os viventes e, quem pode, saiu em direção a rios, lagunas, mar para encontrar um refresco nos dias abafados e desanimadores. A turma com problemas de pressão achando que São Pedro, por algum motivo, está nos castigando...

Mas o que se pode fazer senão tocar a vida… Na sexta-feira, conversei com a psicóloga Margarete Andreazza, no programa “Bem viver, corpo e mente”, pela TV Cidade de Farroupilha/RS. Leu o texto que publiquei: “2022, nós esperançamos” e queria aproveitar o momento para refletir sobre a temática do seu programa: corpo e mente, acrescentando a necessidade dos cuidados espirituais. Em tese, é simples, talvez na prática seja mais difícil - ninguém consegue cuidar do outro: marido, esposa, filhos, pais, sogros, amigos, se não tiver uma rotina de cuidados consigo mesmo.

Bato seguidamente numa tecla: em momentos de tranquilidade ou na crise, é preciso se preservar espaços de sanidade mental. A pandemia trouxe dificuldades de se fazer isto em grupos – reuniões comunitárias, almoços em família, chopinho das sextas-feiras, futebolzinho com amigos, a noite das meninas, enfim, o jeito e as desculpas que se dá para encontrar com aqueles que são mais próximos. Mas… antes é preciso que a gente se encontre consigo mesmo: rezar no silêncio do quarto, ouvir música no cantinho preferido, ler as mensagens que procuram dar um “up” na vida de cada um.

Não me julgo uma pessoa que seja exemplo de relacionamento social. A culpa não é do coronavírus que somente acentuou o jeito de ser que se tinha antes, com virtudes e defeitos. Talvez tenha ajudado a explicitar o lado mais humano, que no agito do dia a dia fica velado. O jeito de se fazer uma autoavaliação e tomar consciência de que, além da idade, a “ogrice” de quem se esconde nos seus “pântanos” não é simplesmente “não gostar de alguém”. Fica mais parecido com o fato de que a rotina, a casa, as flores, as comodidades e os serviços são uma prefiguração da casa final…

Ainda acho que uma das boas metáforas que se pode utilizar a respeito da vida é a do livro. Muitas brincadeiras: um livro fechado, com páginas em branco, com elas arrancadas, enfim, as coisas que se diz para não tomá-lo nas mãos e sentir que, por aquelas páginas já amareladas, passou uma existência… A releitura não é com a intenção de reescrevê-lo, isto não existe, ou negar o passado de cada um. Viver plenamente o hoje exige que se assuma acertos e erros, especialmente, que se tome ciência de quem efetiva (e afetivamente) esteve ao nosso lado durante todo este tempo.

“Tô sentindo a tua falta”, dito de forma física (meios de comunicação, mensagens) ou para quem já partiu, em espírito, é a forma de não perder laços que as muitas e mal traçadas linhas registraram e, seguidamente, afloram nas lembranças. Jeito de mostrar que não importa que já se tenha vivido mais do que o que vai se viver pela frente. Ainda é tempo para se esperançar e fazer valer a pena a história já escrita, valorizando o “presente” de cada um. A consequência do que se fez e se plantou: o “presente” é um mimo, um regalo, único e intransferível nesta aventura que se chama vida!

terça-feira, 1 de março de 2022

A velhice, a inutilidade e o silêncio da morte

 

A notícia - Marinella Beretta morava em Prestino, na Itália. Seu corpo foi encontrado mumificado em uma cadeira, dois anos após a sua morte, reacendendo o debate sobre a solidão na velhice. Sem parentes, a polícia chegou à sua casa para verificar denúncia de árvores mal cuidadas que poderiam colocar em risco a população. Os vizinhos acreditavam que tivesse se mudado no início da pandemia, que atingiu fortemente o norte da Itália, a partir de fevereiro de 2020.

A Crônica - Marinella arrumou a mesa onde sentaria. Não lembrava bem do que tinha pensado em fazer para gastar o tempo. Mas, também, não importava muito. Havia ficado sozinha, sem família que a procurasse ou que ela achasse que valia a pena procurar. Os vizinhos até que eram respeitosos, mas não eram muito acolhedores. Afinal, era apenas uma velha senhora que morava sozinha e cada um tinha seus afazeres, entre os quais não estava se responsabilizar por alguém que não era familiar e sequer tinha privado do seu convívio.

Teve tempo de fechar toda a casa. Quando arrumou a cadeira e sentou, acariciou a toalha da mesa e tentou não se preocupar. Fora uma vida vazia e já estava cansada. O lugar não era dos piores, ninguém a incomodava, mas a solidão era sua única companhia, sem demonstrar interesse por quem estivesse fora da sua moradia. Vivera o suficiente para saber que já era chegada a sua hora. Não se preocupava em morrer, queria apenas apagar como tantas vezes fizera com as velas que acendia em frente ao seu pequeno santuário.

Ouvira muita coisa a respeito de idosos e da velhice. Quase sempre eram doutores e especialistas que deitavam falação sobre a melhor forma de chegar a uma idade avançada. Sempre sorria para a televisão e se perguntava: será que esta gente vai saber envelhecer? Lembrou da mãe que dizia que conselhos, se fossem bons, não deveria se dar, mas se vender… Todos tinham casas, uma família para a qual retornar, mas e quando tivessem que voltar e encontrar a porta fechada, o silêncio angustiante, a ausência que entristece?

Porque viver tanto tempo? Quem havia se preocupado em procurá-la e cativá-la? Isto já era a história daquele Pequeno Príncipe que falava: “tu te tornas eternamente responsável por aqueles que cativas!” Não fora cativada, sequer tivera uma mão estendida ou abraço que juntasse e curasse suas muitas feridas… Conhecia os personagens que a televisão mostrava, mas não conseguia identificar vizinhos que moravam próximos. Mesmo quando precisava sair, baixava os olhos e fazia seu percurso sem cumprimentar ninguém.

Alguém a encontraria. Falariam sobre como os idosos são tratados nestes tempos em que a comunicação de massa deixou de lado o cuidado com as pessoas; de que muros estavam sendo erguidos, mesmo nas pequenas comunidades, isolando os mais debilitados, doentes e velhos. Sabia que o número de idosos morando sozinhos já era um alerta de que há um problema social que os discursos não resolvem. Tinha a impressão de que saíra andando por uma estrada e, numa curva, deixou de ser vista e também de que sentissem a sua falta.

Cruzou as mãos sobre o colo e sentiu-se triste por perceber que a morte chegava. A memória brincou com lembranças de infância, juventude e idade madura. Era uma questão de culpa? Podia ser responsabilizada porque não soubera viver? Quando a inutilidade bateu à sua porta e se estabeleceu em seu corpo? Já desaparecera para os outros há tanto tempo que não faria diferença. Encontrariam o que restara dela. Não sabia para onde iria, mas queria descansar: a morte era simplesmente o fim para todas as suas preocupações…