terça-feira, 29 de junho de 2021

A noite escura da ignorância

Quando lecionei no curso de Jornalismo da Universidade Católica, um dos meus colegas trabalhava numa instituição com pesquisadores. Tanto ele, quanto os estudantes que lá estagiavam, sempre foram categóricos em afirmar que as pesquisas realizadas na área da produção agrícola eram vastas e poderiam resultar em grandes benefícios para os produtores rurais. Mas havia um problema: os cientistas eram avessos a apresentar seus resultados ao grande público, não conseguiam traduzir a linguagem técnica para aquela que tornaria de melhor compreensão todos os seus conteúdos.

Foi do que lembrei ao ouvir o depoimento do epidemiologista Pedro Hallal, que, só para constar, tem graduação em Educação Física, mestrado e doutorado em Epidemiologia, por uma universidade pública, a Federal de Pelotas. De uma nova leva de pesquisadores, não tem dificuldades e encadeia argumentos de forma lógica e didática. Confirmou dados divulgados e foi honesto em reconhecer o que não sabia. Disse o que é constatação técnica: pesquisadores sinalizaram em alerta e o governo brasileiro errou na forma como conduziu a prevenção e o tratamento da pandemia.

Na última quarta-feira (23), o coordenador internacional da Pastoral da Criança e referência nacional para a área, Nelson Arns Neumann, esteve na live Partilhando, da Arquidiocese de Pelotas, e foi categórico: por onde andou, no Mundo, as pesquisas na área da epidemiologia da Federal de Pelotas são referência para estudos e posturas públicas. Para que não restem dúvidas, Nelson se formou em Medicina, fez seu mestrado em Epidemiologia e doutorado em Saúde Pública, já tendo atuado como médico e missionário leigo na diocese de Bacabal, no Maranhão.

Muitos pontos podem ser destacados do depoimento prestado à CPI, mas, confesso, um detalhe me incomodava e Pedro usou uma figura apropriada para esclarecer: aqueles que preferem valorizar a estatística dos recuperados (não curados, porque ainda não se tem certeza de que sequelas ficarão), em detrimento das mortes. Como assim? o sistema de saúde tem a obrigação de tratar e recuperar pacientes e evitar, ao máximo possível, as mortes. Neste caso, de fato, minimizar perdas e valorizar “curas” é comemorar gol a favor, quando já se levou mais sete. E que, num país com tantos problemas, precisaríamos de lideranças mais fortes e medidas enérgicas para evitar o pior...

Não conheço o professor Pedro Hallal, pessoalmente, mas faz política e das boas, a que se preocupa com pessoas, cuidando, especialmente, de quem mais precisa. Seu trabalho me representa e grande parcela da população que está aturdida com tantas informações desencontradas e gente amarga que destila veneno, criando supostos “inimigos” até naqueles que buscam melhorar as condições de vida de todos nós. De um jeito ou outro, vai passar. A ciência vai ajudar a minimizar as perdas. A noite escura da ignorância precisa ser vencida pela informação e pela esperança. A marca de mais de 500 mil mortes não pode ser a lápide que sepulta a nossa própria consciência de viver em sociedade!

domingo, 27 de junho de 2021

No plural: vão fazer falta!

Foi uma semana pesada em que figuras conhecidas com as quais muitos conviveram, direta ou indiretamente, partiram das nossas vidas, algumas sem a chance de se despedir... A idade, a pandemia e a “doença ruim” (o câncer, como diziam meus pais), foram marcando aqueles que seguem mais cedo e vai ficando o sentimento de que, pelos mais variados motivos, deixam um vazio. Já resmunguei que uma frase que está se tornando costumeira nos meus textos é “vai fazer falta”. Pois chegou um tempo em que não está mais no singular, mas preciso declinar no plural.

Padre Léo Poersch morou no Seminário. Foi capelão do quartel, professor universitário e atendeu no Asilo de Mendigos. Na casa dos 80 anos, precisou de assistência, que não lhe faltou no apoio do José Inácio e da Sandra, junto com a família. Em duas ocasiões, com o Paulo Sérgio Moreira, jantamos na casa e pude visitá-lo, já sem mobilidade e com pouca percepção de quem estava ao seu redor. Eu atendia a mãe e senti, no jeito como o tratavam, que não errara ao pensar que um idoso precisa de referências quando chega ao fim da vida… uma delas, a própria família.

Gilmar Moscarelli Levien era um dos filhos (creio que eram 11) do seu Ivo e da dona Maria. No Seminário, conheci o Carlos, meu afilhado de Crisma, e o Mathias. Depois, no Grupo de Jovens da Santa Teresinha, a Margarida. Por fim, fui colega da Mônica, no curso de Teologia. O coronavírus levou um líder no setor empresarial, que era sócio-administrador na gráfica Sem Rival. Fiquei sabendo que também transitava pela benemerência, caso da escola para deficientes visuais Louis Braille. E tinha uma grande virtude: era torcedor do Esporte Clube Pelotas!

O Paulo Nogueira foi vítima desta pandemia que leva muitos dos nossos valores. Narrador esportivo, estive mais próximo dele quando cursou Jornalismo, na Escola de Comunicação. Atento, brincalhão, voz alta, sempre cercado por rapazes que o viam como referência do jornalismo prático. Ainda representava um tempo em que os profissionais do rádio tinham a preocupação de servirem como os “olhos” dos ouvintes à beira do campo. Ágil e criativo, foi desfilando bordões impossíveis de serem esquecidos e que permanecerão por muito tempo no imaginário popular…

Adelvar, ah, o Aldevar. Um dos caras mais “chatos” que conheci! Éramos dois “chatos”, agora restou um... Mas era dos “chatos” diferentes. Persistente, não tinha medo de defender aquilo em que acreditava e empilhava argumentos. Os convites para conversar no Movimento Familiar Cristão, comentários das atividades que eu fazia, ou, simplesmente, uma chamada para se conversar e trocar ideias, especialmente, sobre coisas de igreja. Papo longo, sempre interessante, que, eu creio, a Ana, sua esposa, já devia saber: os dois “chatos” estavam reunidos de novo!

Ancião e família, que encontra espaço vazio em suas vidas; companheiro de atividades sociais, irmão, esposo, pai, empresário; a voz inconfundível que silenciou; Líder em que o corpo definhou, não o espírito e o carinho pelos seus e a sua igreja. O Mundo vai ficando mais vazio de quem fez história conosco. Envelhecer e amadurecer não têm o mesmo sentido, mas o tempo entalha no coração a certeza de que a passagem pela vida é aprendizado. Um portal por onde se anda acompanhado, apenas de lembranças: as que se leva e as que ficam em quem um dia compartilhou do nosso amor...

terça-feira, 22 de junho de 2021

A teoria da miséria e a prática da pobreza

O anúncio de que a pandemia ceifou mais de 500 mil vidas no Brasil preocupa no conjunto da obra, mas também revela detalhes e consequências que se fazem presentes no interior das moradias. As mazelas sociais que já existiam no país tomaram novas proporções, no que se refere à fome, desemprego, pobreza e transtornos causados a pessoas já castigadas por aqueles que teorizam a miséria e não se dão conta de que ela existe de fato. Políticas de “atacado” esquecem que, quando chegam nas ruelas e becos, o sofrimento recebe nome e sobrenome e deixa de ser uma estatística.

Recentemente, duas informações passaram batidas pelos noticiários e o debate público: as pesquisas de instituições respeitáveis apontam o distanciamento entre as classes sociais, repetindo o que parece ser um bordão de que “os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres”. Junto com projetos de saneamento, promessa feita há décadas a respeito de esgoto, especialmente, que chegou aos grandes centros, mas, convenientemente, esqueceu de chegar às periferias.

O então ministro Delfim Netto dizia que era preciso “aumentar o bolo para depois reparti-lo”. A economia já teve altos e baixos, mas a população não soube do que era feita a massa ou a cobertura. Passado meio século, os discursos se assemelham, destacando-se os números da economia como promissores, enquanto despencam os índices do desenvolvimento social, arrastados por desemprego e o esfacelamento de áreas fundamentais como a saúde, a educação, a segurança e a moradia.

O prefeito Bernardo de Souza, nos anos 80, tinha um sonho: avançar a implantação de esgotos cloacais, já com algum alcance em áreas centrais, mas incipiente na periferia. Recebeu a crítica de outros políticos por ser obra enterrada e que não rendia votos. Na época, elencava a contribuição para a saúde pública, que beneficiaria, especialmente, populações pobres. Não concretizou e, ainda hoje, moradores de bairros e vilas sofrem com valetas e dejetos que apodrecem em meio às ruas.

A dita “Constituição Cidadã” já assegura que o brasileiro tem o direito ao saneamento básico, num conjunto de serviços que prevê o abastecimento de água, esgoto sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejo de resíduos sólidos e de águas pluviais. Um tostão pelo seu pensamento e se acredita que isto está em vias de se concretizar. A nua e crua realidade está nos números de 2018: 83,6% da população tem água em suas casas e 53,2% tem acesso ao esgoto tratado.

A mentalidade continua a mesma, com a miséria na teoria e a pobreza na prática. Ainda se pensa que obra enterrada não dá voto e quem mora nas vilas mais distantes encontra valetas a céu aberto e esgotos jogados nas sangas, que deveriam ajudar o escoamento das águas das chuvas. A palavra da moda é “transparência”, acompanhada de fiscalização e punição para todo o tipo de corrupção – dos grandes aos pequenos desvios de dinheiro, por exemplo. Prestação de serviços do setor público é a devolução em benefícios do que se paga em tributos. Elementar, na tese; mas tão difícil, na prática.


domingo, 20 de junho de 2021

Os sinos que dobram pela vida

Os sinos que dobraram na tarde deste sábado em muitas igrejas Cristãs atenderam a um convite da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. O país chegou à trise marca das 500 mil vítimas pelo coronavírus. “Toda a vida importa” foi a motivação para sensibilizar, manifestando solidariedade aos que choram suas perdas, esperança por aqueles que viram uma vida interrompida e consolo para quem ficou sequelado ou vai cuidar de um… Trôpegos pela própria dor e pela dor alheia, é preciso despertar o sentimento de cuidar da sociedade, sem esquecer as individualidades...

A foto mostrava a mãe segurando o filho autista de quatro anos no colo enquanto o “barbeiro” explica o material que utilizaria. A cena é resultado de uma história que emocionou as redes sociais: o profissional, na verdade, era o pai, Michael Kratina, que aprendeu a profissão porque o filho ficou traumatizado quando cortava o cabelo numa barbearia e havia uma criança chorando muito. Sua reação foi de pânico e se negava a chegar próximo do local. O carinho e o cuidado pelo Augusto valeu o sacrifício de ter uma formação para a qual, possivelmente, só terá um “cliente”…

Gabriela Mazza é mãe de Sofia. Acompanhei a história da menina “guerreira” desde o nascimento, pelas redes sociais. Com apenas um pulmão, teve todas as compensações por uma família invulgar e capaz de lhe dar a sofreguidão que existe naqueles que são apaixonados pela vida e aceitam os desafios exatamente como são: oportunidades de superação, obstáculos a serem ultrapassados. Venceram mas, agora, encontram novo campo de batalha: adolescente com uma comorbidade, na faixa dos 16 anos, precisa da vacina para voltar a uma rotina o mais próximo possível do normal.

O Edinho mora num condomínio de apartamentos com a mãe, a Marli. Tem síndrome de down e viu uma série de atividades serem restritas àquilo que a internet propicia. Quando podia, era “rueiro”. Meu pai brincava que a agenda da Marli dependia da agenda do Edinho. Neste meio tempo, viu alguns companheiros e familiares serem abatidos pela pandemia. Nem sempre é fácil entender o que pensa, mas é certo que está mais introspectivo, mais preocupado e, embora ainda goste dos contatos e do que pode fazer navegando pelas redes, perdeu bastante da sua energia e alegria.

Dona Dalva não quer mais sair às ruas. Foi vacinada com as duas doses contra o coronavírus e mais a da gripe. Desde o início, respeitou as exigências feitas pelos filhos e saía, apenas, quando alguém a acompanhava, fazendo um “checklist” da máscara, álcool gel e distanciamento. Viu pessoas da mesma idade morrerem e pediu para fazer uma procuração para o filho. Agora, recolhe-se a um tempo de silêncio na sala ou no quarto, acompanhada de uma gata, onde faz o tricô de toda uma vida, como voluntária na produção de enxovais para recém-nascidos em situação de pobreza.

Os sinos que dobram pela vida não podem esquecer que pessoas especiais demandam cuidados especiais e prioridade em atendimento público. Vidas que importam e precisam da cultura do cuidar, onde não se veja pessoas com deficiências ou comorbidade como um estorvo. Apenas como necessitadas de carinho e atenção. Todos sairemos marcados da pandemia. Então, é simples assim: não se muda uma sociedade porque se passou por tempos difíceis, mas se torna melhor ao perceber que o “diferente” não é um estranho, mas a oportunidade de humanizar uma perspectiva de futuro!

terça-feira, 15 de junho de 2021

O “baile” continua: não tire a máscara!

A discussão da última semana girou em torno do uso da máscara em tempos de pandemia. Quem anda pelas ruas de qualquer cidade sabe que tem sido difícil para o cidadão comum se acostumar com a ideia de que é um elemento de proteção necessário. Ouve de parcela de políticos, médicos e cientistas ser fundamental para evitar o vírus; e outro grupo de médicos, menor, com “autoridades”, que não se incomoda em bater em ponta de faca. Navegam por mares onde caem brasileiros à direita e à esquerda, mas tem um norte definido: o enfrentamento nas eleições do próximo ano.

Se os judeus foram marcados quando saíram do Egito e, depois, pelo Nazismo, para os diferenciar do que seria a raça pura, o arianismo, hoje, com menos de 20% da população vacinada, retirar a máscara significa demarcar território, isolar adversários. Num macabro jogo de interesses e fazer com que, nas ruas, se tenha pessoas que se definem como de um lado ou de outro por posições ideológicas e políticas que a maior parte da população não consegue entender e não está interessada.

Bom número de brasileiros não tem hábitos saudáveis de higiene e acesso a produtos elementares para a prevenção. Básico dos básicos: lavar adequadamente as mãos (não apenas passá-las embaixo d’água) com sabão; álcool gel, máscara e o distanciamento social. Uma questão de educação e de condições financeiras. Com quase um ano e meio de pandemia, os governos já deviam ter cadastros das famílias e articulado programas que munissem a população de informação e material necessário.

Embora seja “novidade” em nosso meio, bom número de países já utiliza a máscara, especialmente no outono e inverno, quando diversos vírus de gripes se disseminam, de maneira especial em ambientes públicos e fechados. Muitas pessoas testemunham que o uso fora de casa e recolhimento à noite, especialmente para idosos e pessoas em grupos de risco, diminuiu os problemas respiratórios, como a sinusite e outras alergias. Evitando crises, consultas e internações…

Ainda temos um longo inverno pela frente. A descoberta das possibilidades pelas redes sociais – conversas, palestras, aulas…, para citar o que se pode fazer “presencialmente” - alcançou uma possibilidade que não se teve igual em nenhum momento da História. Não creio que continuar se resguardando, quando possível, e, ao sair de casa, utilizar a máscara, vá prejudicar um fim de outono e a estação mais fria andando pelas ruas apenas quando necessário e com a devida proteção.

O “baile” (para o bem ou para o mal, não importa sua posição ideológica ou candidato nas próximas eleições) continua. Olhar para países do primeiro mundo com índices maiores de vacinados e tentar “copiar” a ideia é irresponsabilidade. Somos de terceiro mundo, beirando o quarto… as dívidas sociais estão acumuladas e mostram saldo impagável, porque está sendo cobrada com vidas! O estilo da proteção pode ser seu, mas o benefício é para todos nós. A hora é de sanidade mental e responsabilidade: use máscara, a diferença entre sacrificar vidas ou alimentar a esperança!

Manoel Jesus – Educador – manoeljss21@gmail.com

domingo, 13 de junho de 2021

Maria de Lourdes Almeida

Fazia um longo tempo que não caminhava pela calçada da minha quadra. Gostava de ir ao Salão de Beleza, mas sentia falta do Émerson, que, dizia: “tinha acertado com o seu cabelo!”. Também era o caminho para visitar outra amiga, a dona Braulina. Sobreviventes da grife “mulheres guerreiras”, que marcaram gerações por seus cuidados com os vizinhos. Olhava cada uma das casas como rememorando quem ali já viveu e partiu para a Eternidade ou tomou novo rumo na vida. Sempre havia alguém para a acompanhar. Seus passos devagar, na vontade de aproveitar o que a vida ainda lhe dava… e não perder o contado com as pessoas.

Aqui em casa, chegava em algum momento da tarde, todas as semanas. Transformou-se na única visita que não falhava em vir passar algumas horas com a dona França. E, mesmo quando a mãe já não falava muito, ainda assim, contentava-se em sentar numa poltrona próxima e assistirem televisão. No final da vida da mãe, já sentia dificuldades em andar, mesmo amparada por uma bengala. A distância de uma quadra entre as duas casas era percorrida vagarosamente, com algumas paradas, encontrando amigas no portão com quem conversar e, na volta, um de nós a acompanhava até que estivesse em segurança no interior do seu lar.

Durante um ano, eu e a Marli ministramos uma Oficina de Espiritualidade para o Centro de Convivência do Idoso da Universidade Católica. Todas as tardes, quando estava saindo de casa, ela já aguardava a carona no portão. Aposentada em serviços de lavanderia, na Beneficência Portuguesa, tinha uma curiosidade permanente por conhecimentos religiosos. E aqueles momentos eram privilegiados para que percorrêssemos a história do Cristianismo e a tentativa de compreender alguns princípios religiosos. Passávamos a tarde em conversas e reflexões e, já que ninguém é de ferro, encerrávamos com um lanche compartilhado.

A comunidade Sagrada Família a teve por ministra durante longo tempo. Além da preparação das celebrações, atendeu a distribuição da Eucaristia, e esteve presente na formação do grupo de jovens que existiu na vila Silveira, criação do grupo de crianças e catequese. Tinha um “bichinho carpinteiro” e, muitas vezes, foi a incentivadora para que se fizessem excursões aos mais diferentes lugares. Sua casa transformou-se, naqueles tempos idos da década de 80, em lugar de referência para reuniões religiosas, mas também serviu para organizar algumas demandas sociais da comunidade ou jantares festivos.

Emocionante ver, em tardes de sábado, passarem empurrando a cadeira de rodas da sua mãe, a vó Amélia, em direção da igreja da Sagrada Família. Um trecho era asfaltado, mas havia percurso em chão batido, porém as dificuldades não os preocupava. Ao contrário, a distância ia sendo percorrida e outras pessoas que faziam o mesmo trajeto somavam-se ao trio, com crianças e jovens, e quando chegavam à porta da igreja, em muitas ocasiões, era uma autêntica procissão de pessoas bem-humoradas, bem-dispostas e preparadas para celebrar pelo sentimento de que chegaram e viviam o espírito de comunidade.

Depois de uma cirurgia cardíaca, um AVC e o covid, silenciou... A última vez que telefonou, em seguida desligou. Retornei e informaram que tentou ligar. Disse que ligasse quando quisesse, mas não ligou, não vai ligar mais. Em crônicas registrei pessoas que fazem falta. A Maria é uma delas… partiu sem a chance da última conversa, com sensação de tristeza e deixando uma trilha de saudade. As “marias” que partem fazem o existir ter sabor de luto eterno. As marcas de uma fronteira da alma, onde a vida teima em mostrar as nossas fragilidades e de que, querendo ou não, em algum momento, é preciso tomar o rumo da Eternidade...

terça-feira, 8 de junho de 2021

Uma espiritualidade para o cuidador

O lendário arcebispo de Recife, dom Helder Câmara, disse que, “se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Se mostro por que os pobres não têm pão, me chamam de comunista e subversivo”. Um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que teve forte enfrentamento à ditadura militar, defendia a espiritualidade enraizada na ação social. Biógrafo do arcebispo, padre Ivanir Rampon, diz que “foi um místico original… apóstolo da não violência ativa, a esperança de uma sociedade renovada segundo o ideal cristão”.

Como secretário-geral da CNBB, em 1956, trouxe para o Brasil um braço da Cáritas Internacional, que já existia na Europa desde 1897. Hoje, tem sua sede em Roma, de onde coordena operações de emergência, propõe políticas para corrigir as desigualdades e suas 170 organizações membro trabalham em defesa de um mundo mais justo e solidário. Cárita é o pseudônimo de uma mártir cristã, Santa Irene, sacrificada em Roma, nos anos 300 d.C., por ordem do Imperador Dioclesiano.

Os tempos de pandemia mostram a necessidade dos serviços de caridade feitos por igrejas, entidades sociais e indivíduos. As demandas são grandes e pressionam para que as estruturas se reforcem no sentido de novos voluntários, mas também de buscar, junto às comunidades, material para a alimentação, higiene e frio. Como “a dor ensina a gemer”, também se veem cristãos de todas as denominações trabalhando com umbandistas, espíritas e pessoas de boa vontade.

Exatamente aí entra a preocupação com a espiritualidade do agente social que trabalha com uma população que necessita ver suas necessidades imediatas atendidas. Também uma perspectiva de vida com o necessário para a subsistência. A caridade não é o descarrego de consciência em que, feita a doação em produto ou dinheiro, julga-se estar isento de todas as demais responsabilidades. A responsabilidade não é com o que se dá, mas para quem se alcança o que minimiza sofrimentos...

A Cáritas Arquidiocesana de Pelotas está neste caminho: mobiliza a sociedade para o enfrentamento dos problemas que já se fazem presente e prospecta as sequelas que advirão com o controle (e não o fim) da pandemia. Não tem receitas mágicas… aliás, a única “mágica” que faz é colocar comida na mesa de quem precisa, dar condições de higiene e amenizar o frio… com agentes, funcionários e voluntários, que se veem em meio ao furacão, necessitando de ajuda para minorar os estragos.

Dom Helder provocou um “arrastão profético”, pois vivia a mística e espiritualidade de um jeito que foi amado por uns e odiado por outros. Mas não há, até hoje, quem se mostre indiferente. Encontrar-me com o pessoal que trabalha na Cáritas de Pelotas, ontem, foi um momento de sugerir que se aprofunde a espiritualidade helderiana e a Doutrina Social da Igreja. O pão que se coloca na mesa, hoje, é o pão da esperança (como a Eucaristia, para os cristãos), em que a justiça é o fermento e o percurso é longo iniciando pelo primeiro gesto: estender a mão e caminhar na solidariedade!


domingo, 6 de junho de 2021

As histórias que a História não vai contar

A pandemia vai deixando marcas pelo caminho. Ainda não se tem como afirmar que parcela da população aprende, com este momento, valores básicos da solidariedade, responsabilidade social e empatia. Alguns fazem uma comparação capenga de que são milhares de pessoas curadas e, em épocas como esta, sempre existem baixas. Pena que autoridades acreditem e os números são tratados como estatísticas, num quadro em que o Brasil se aproxima das 500 mil mortes. Isto sem contar com o número dos sequelados e diagnósticos que ainda não foram concluídos…

A mãe retornou para casa “curada”. Poucos dias atrás, deixou a UTI, dando graças a Deus porque não precisou ser entubada. “Está tudo bem”, com um detalhe: não sente o cheiro e o gosto dos alimentos. A primeira coisa que o filho de seis anos pediu, quando a viu em casa, foi um bolo de aipim com coco, o de pacote. Não é difícil, porque os ingredientes já vêm prontos. Mas ela sempre fazia dele um momento especial, porque assavam juntos e, quando estava praticamente pronto, a cozinha recendia do aroma. Brincavam, com o nariz empinado, que era um “manjar dos deuses”.

Os sintomas apareceram para a atendente pela noite, mas não acreditou. Chegou ao hospital e seus colegas disseram que sua aparência era horrível. Foi encaminhada para teste e a recomendação de que voltasse para casa. Fim da tarde, o anúncio: positivou. Reclusão e tratamento que passariam por mensagem. Sentiu-se mal e amanheceu sem forças e ânimo. Mas precisava reagir e arrastou-se até o banheiro. Deu-se conta de que seu quadro era difícil quando, para escovar os dentes, teve que sentar numa banqueta e realizar um esforço sobre humano. Sentiu na pele o que ouvira outros contarem...

Uma cena linda, mas as lágrimas que teimavam em rolar foram causadas pelo empenho para chegar até ali. Por detrás da cadeira de rodas que levou a senhora até a maternidade para ver a filhinha, pela primeira vez, haviam atendentes, enfermeiros e médicos. Que não descansaram enquanto a mãe positivada não esteve em condições de vivenciar aquele momento. Faltava uma etapa: que a neném pudesse estar no colo e recebesse todo o carinho e dedicação que o afeto proporciona. Aquelas coisas que somente uma mãe sabe fazer quando recebe o olhar de quem gerou e deseja amamentar.

A enfermeira que acompanha pacientes para a entubação perdeu a conta do número de pessoas que levou para um atendimento difícil e quase sempre irreversível. Quem não se conformava, se perguntava o que fizera, porque Deus permitia; havia aqueles que apenas rezavam... e muitos, mas muitos idosos que desistiram e tinham nos olhos a indiferença entre a vida e a morte. Tratava a todos de igual forma, mas seu coração ficava entristecido quando lhe pediam a mão... no dolorido sentimento de que eram as últimas – e o derradeiro carinho – recebido de um outro ser humano!

Possivelmente, estas sejam histórias (com “h” minúsculo) que a História (com “h” maiúsculo) não vai contar. Os registros, relatos e estatísticas, perdem a razão quando, separados, viram números e personagens. Os livros não relatam sentimentos vividos por pessoas próximas e que dão o sentido da própria vida. O aprendizado da dor do outro, presenciada ou compartilhada. Quando o tempo se limita a um olhar, uma lágrima, um afago… quem sabe, isolado em casa ou por trás da janela de vidro de uma enfermaria, apenas e tão somente, a necessidade e carência de um abraço…

terça-feira, 1 de junho de 2021

O desempregado, o jovem e o desalentado

Não é preciso ser economista para saber que uma das consequências da pandemia vai ser o agravamento da crise social. Especialistas anunciam que uma terceira onda se aproxima (se é que de fato já não está acontecendo), mas parte da população entrou em processo de letargia e não reage, pensando em se prevenir e evitar problemas maiores. Porém, se envolve na dicotomia de que deve estar ao lado de um ou outro líder político, que faz do coronavírus cavalo de batalha, acentuando erros alheios, e, especialmente, embotando números que, por si só, deveriam ser escandalosos.

O mais recente levantamento da área do emprego feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que 14,7% da população - pode-se arredondar para 15%, em função da subnotificação - está desempregada. Um recorde da série histórica iniciada em 2012. Acarretando em diminuição do poder aquisitivo do brasileiro, que tem como consequência, além da queda da capacidade de consumo próprio e da família, a diminuição da circulação de dinheiro no país.

Como se isto já não fosse ruim, uma leitura mais apurada dos números mostra que a crise feriu de morte a população jovem do Brasil. Nesta faixa, o número de desempregados subiu para 27,2%, no final de 2020. Dois anos antes, mais de 1,76 milhões jovens havia perdido o emprego. Sem contar aqueles que acabaram seus cursos ou sentiram a necessidade de auxiliar na formação do orçamento familiar e partiram para o mercado, percorrendo filas de seleção de emprego em vão.

O IBGE ainda flagrou um terceiro grupo realmente preocupante: o dos desalentados, aqueles que, apesar de terem condições de trabalhar - e interesse - desanimaram diante de portas fechadas e decidiram ficar em casa ou vagando à toa. Os números gritam, mas possivelmente sejam maiores que as estatísticas: cerca de 5 milhões de pessoas, nesta situação. Os registros cresceram com a recessão (2014/2016), havendo sinais de retomada em 2019, quando a pandemia se instalou…

Seguidamente, os meios de comunicação chamam analistas para entender o que está acontecendo. Dão como causa a diminuição da circulação de capital - consumo e produção; a substituição das pessoas por máquinas e a baixa capacitação da população mais pobre, por não ter acesso a uma educação de qualidade. A sofisticação do processo tecnológico não acompanhou a preparação para que a mão de obra se especializasse e migrasse, ocupando novos nichos no mercado.

Filas nas portas das empresas, agências com maior procura do que oferta de empregos; pessoas circulando com pastas de currículo embaixo do braço… O Brasil enfrenta problemas na saúde e vê sua gente perder a esperança… O desemprego é a ponta de um iceberg onde também estão a educação e a violência. A crise é de competência, sinalizando a necessidade do cidadão se qualificar e cobrar de sua representação ousadia e honestidade. Momento em que, no dizer de Júlio César, se “separam os homens (maturidade política) dos meninos (as birras e os confrontos desnecessários)”.