terça-feira, 28 de dezembro de 2021

2022: “nós esperançamos!”

Não sei quando ouvi a palavra esperança (substantivo feminino, sentimento de quem vê como possível a realização do que deseja; confiança; ou ainda de quem professa a cristã, como uma das virtudes teologais, ao lado da fé e da caridade) transformada em verbo. Esperançar empoderou-se, por sua força na ação e na busca, contrariando a espera passiva. Como disse Paulo Freire: “esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir!” Uma aposta no indivíduo, a outra no grupo; uma aguarda, a outra quer fazer seu próprio caminho.

Esperançar… O pior havia passado. Seu marido pegou a covid e enfrentou uma luta maiúscula para sobreviver. Resistiu, mas do homem forte, disposto e ativo, restou muito pouco. Seus pulmões estavam comprometidos… assistiam televisão e, no sofá, teve dificuldades em alcançar o copo. Suas mãos se encontraram quando pensou em ajudar. Durante um instante, precisou parar e descansar deste que, em outros tempos, não seria nenhum esforço. O tratamento seria longo e difícil, é necessário reaprender com exercícios básicos de respiração e cuidados com a saúde.

Esperançar… Já não tinham outra saída. Precisavam voltar para a casa dos pais. O casal perdeu seus empregos e aumentaram as dificuldades. Tiveram a luz cortada, o mesmo aconteceria com a água, e o aluguel foi atrasado. Ficaram com os bicos que não seriam suficientes. No quarto de solteiro tiveram que se acomodar, junto com o filho, de quatro anos. O menino não entendia e, à noite, achava um lugarzinho em meio aos dois com seus brinquedos. Antes de dormir, murmurava: “quero voltar pra minha casinha...” Precisavam conter as lágrimas, respirar fundo e, por ele, tocar a vida...

Esperançar… O Bruno levantou os 100 jurados no programa “Canta Comigo Teen”. Ao falar do seu gosto pela música, quase parodiou o filme “A vida é uma festa” ao contar que, morando com a avó que tinha Alzheimer, encontrou um jeito de fazer com que o reconhecesse ao cantar para ela. De alguma forma, os acordes das melodias penetravam em lugares escondidos da memória da velha senhora e a traziam, por alguns instantes, à realidade. Tempo suficiente para receber o amor incondicional do neto. O toque mágico de lembranças que fazem uma ponte com o seu presente...

Esperançar… O menino levantou os olhos da prova e perdeu-se contemplando pela janela. O professor não quis chamar a atenção. Era um dos “órfãos da covid”. Os pais morreram durante a pandemia, o mesmo caso de, ao menos, outros dois na mesma sala. A luta por recuperar conteúdos somente era menor do que a necessidade de buscar arrimos afetivos para adolescentes que perderam familiares tão cedo. Nenhum deles falava a respeito. Haviam mudado o comportamento, tornando-se silenciosos e “na deles”. Se o processo de educar já era difícil, agora tornava-se um desafio...

Em 2022, esperançar é a chave que troca um substantivo pela conjugação de um verbo. Em especial se for declinado na primeira pessoa do plural: “nós esperançamos!” A acusação aos que acreditam na Utopia é de que não percebem a crueza da vida. Para “esperançar”, preciso acreditar que o sonho é possível... A doença de alguém que se ama, o lugar para se chamar de seu, a canção que resgata do silêncio, as lições que doem no aprendizado... colocam cada um numa encruzilhada: viver um novo ano apenas como mais um fardo, ou gastar um derradeiro suspiro para reacender a chama da vida!

domingo, 26 de dezembro de 2021

Ano Novo com gosto de espera...

Por muito tempo, as festas de final de ano eram vividas em função de reforçar a economia familiar. O pai, seu Manoel, sempre pensava em alguma coisa que pudesse aumentar as vendas no armazém. Enquanto isto, a mãe, dona França, alistava-se para trabalhar as safras nas indústrias de conservas. Ainda se tinham férias que iniciavam, religiosamente, no último dia de novembro e as aulas retornavam em 1º de março. Tempo suficiente para que eu procurasse um trabalho temporário, buscando alguns pilas que ajudassem a me manter como interno no Seminário, durante o ano.

Em tempos idos, no armazém, quando chegamos a Pelotas, reforçava-se o estoque de refrigerante e cerveja. Só que não havia eletricidade, porém tendo ficado, dos donos anteriores, um buraco no piso, embaixo do balcão de atendimento, que era forrado com serragem, espalhavam-se as bebidas e cobriam com gelo. Depois, uma tampa de madeira ajudava a que o resfriamento fosse mantido por mais tempo. Também precisava pedir ao seu Albino um reforço de querosene para os lampiões de todos os tipos e formatos, que propiciavam a claridade necessária para as festas, em todas as casas.

O mais difícil era para a dona França. A safra do pêssego coincidia com as festas. Não havia pausa. E folga, nem pensar. Trabalhavam até 14 horas, do nascer do sol até tarde da noite. Depois, criaram os turnos, o que possibilitou a diminuição da carga horária. Porém, com um detalhe, viviam como safristas e quanto mais trabalhavam, mais ganhavam. Custaram a se acostumar, porque era sacrifício que possibilitava alívio familiar. As que ficavam mais do que uma safra, “forravam” os bolsos e tinham carteira assinada, valendo para atendimento previdenciário por todo o ano.

Meus três meses de férias de verão já eram programadas com algum emprego arranjado com amigos ou conhecidos da Igreja Católica. Deste modo, trabalhei fazendo e vendendo lanches, em escritório de fábrica de conservas, cobrador de sorveteria, talonagem em gráfica, abastecedor de supermercado e, por fim, o mais tranquilo para o final do ano: “faz tudo” na Catedral, onde acompanhava as Celebrações, mas também tinha que recolher o tapete dos noivos, estendido somente no sábado à tarde e que, antes da Missa das 18h30m, precisava voltar para o batistério.

Quando meu pai fez a casa em que moro até hoje reservou um espaço para a “garagem”, onde abrigava uma charrete. Era o veículo que se tinha para entrega ou sair em busca de um fornecedor. Com dois portões de madeira tosca na frente e nos fundos, ainda tinha uma parede lateral com espaçamento entre os tijolos para ventilação. Ali, às vezes com frio, em muitas ocasiões, esperamos pela mãe chegar da “fábrica”. Minha irmã mais velha, a Loci, auxiliava na cozinha e providenciava alguma coisa para a nossa refeição das festas e, muitas vezes, nem se esperava a meia-noite...

Os tempos são outros, as dificuldades também. Mais tarde, já com mais tranquilidade, meus pais e irmãos se davam a alegria de partilhar com vizinhos e amigos as celebrações religiosas, as noites em preparação para desejar o “Feliz Natal” e o “próspero Ano Novo”, como, no dia seguinte, churrascos e almoços… Churrasqueiras eram raras e, de forma improvisada, o convívio virava festa e dava sentido à espera. Não era (e não é) apenas mais um Natal ou uma nova virada de ano. O tempo, que brinca com nossas lembranças e sentimentos, pede um brinde, um brinde à vida!

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O caminho apontado pela Estrela…

O menino mais novo do grupo era sempre quem preparava a fogueira do acampamento. Percorreu os arredores em busca de lenha e gravetos. Anoitecia e, em seguida, os homens voltariam com o rebanho. No horizonte enxergou, novamente, a Estrela que aparecera nas últimas noites. Estranha, mais brilhante, com uma coloração que as outras não tinham. Concentrou-se no trabalho. Estava com medo de que, em meio aos gravetos, encontrasse alguma cobra ou aranha. Na encosta do morro, o frio chega mais cedo. Precisava preparar e aquecer uma panela de água para a janta.

Quando estava ao redor do fogo, ouviu que os homens comentavam a respeito da Estrela que, agora, estava parada acima das tendas. Paciência. No inverno, a noite era longa e queria dormir. Enquanto os outros ainda conversavam, encostou-se no irmão mais velho e no pai para se manter aquecido. Foi na madrugada que o acordaram: “depressa, depressa, tem um homem de branco falando com o pessoal!” Meio zonzo percebeu ao longe os pastores concentrados olhando em direção da vila de Belém. O pai voltava, com uma expressão de felicidade e lágrimas nos olhos: “nasceu, nasceu!”

Pensou com seus botões: “mas que estranho. Não havia nenhuma mulher grávida na família ou entre as vizinhas”. O irmão lhe explicou que o homem de branco apareceu no meio deles e disse: “não temais, porque vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo, pois na cidade de Davi vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto vos será dado por sinal: achareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura!” A noite ficou ainda mais iluminada e muitos outros homens de branco vieram cantar com o primeiro.

Trancaram as ovelhas num cercado de pedra e apagaram a fogueira. Os pastores já estavam reunidos. Haviam reforçado as mantas, pegaram os cajados e tomaram o caminho que os levaria até a vila. A Estrela continuava sobre eles, vagarosamente, seguindo em direção a Belém. Não sabia porque, mas estava com medo e com frio. “Que coisas mais estranhas estavam acontecendo”. Na pequena fila de homens simples e que sempre caminhavam conversando muito, hoje era diferente. Ficou atrás do pai e do irmão mais velho que seguiam pelo caminho em silêncio.

A Estrela parou sobre o estábulo de um vizinho. Ao chegarem perto, ouviram vozes. Abriram a porta e viram que um casal havia se abrigado bem no fundo, no lugar onde o frio era menos intenso. Tinham preparado o cocho com palhas. Onde era servida a ração dos animais havia um pano por cima, como se fosse um berço, e uma criança, um menino. Era uma cena diferente de tudo o que já tinha visto. “Como uma criança estava abrigada entre seus pais, numa estrebaria, enfaixada numa manjedoura?” Ficou para trás, e somente se animou a espiar sob o braço do irmão.

A Senhora o viu e o chamou. Encolheu-se. Até que foi empurrado pelo pai. Ficou parado, vendo as mãozinhas que se estendiam para ele. Ouviu da mãe a saudação: “que a bênção do Todo Poderoso esteja contigo, meu menino”. Não era apenas dela que vinha a voz. Impossível, a criança não podia estar falando. Tinha medo de tocar. Sentia a doçura com que mãe e filho o atraiam. Na beira do fogo, muitas vezes, ouvira os adultos falarem a respeito Daquele que seria a redenção de Israel. Estava ali, brincando com a sua mão. O caminho apontado pela Estrela havia indicado o Salvador!

Feliz e abençoado nascimento do Senhor!

domingo, 19 de dezembro de 2021

Por um pedaço de carne…

“Meu sonho é ganhar uma carne para passar (o Natal) com a minha família”. Quem disse isto tem 7 anos – o Hector - e mora no vizinho município de Arroio Grande, na carta endereçada ao Papai Noel. A mãe compartilhou o pedido pelas redes sociais e, em seguida, choveram manifestações, tomando uma proporção que não esperava. Pelas dificuldades financeiras, não era somente a carne que faltaria para a festa, também estava difícil que o bom velhinho chegasse para entregar qualquer presente. A energia elétrica fora cortada, era o fundo do poço... E uma luz de esperança apareceu!

Doações chegaram de diversas regiões. Veio a carne e também doações em dinheiro que melhoram substancialmente a vida da família. Suficiente para reverter, por agora, uma situação que estava se tornando crítica. A pronta repercussão através da internet tirou o Hector e a sua turma do anonimato. Contrariou o papa Francisco, de que ele veio do “fim do mundo” (e nós estamos ao lado), lugar perdido e esquecido para onde a sociedade não volta seus olhos. Não é assim, especialmente quando há um fato sensível e curioso, envolvendo crianças, então, existe uma forte reação.

E os demais “hectores”? Milhares pelo Brasil, fruto da pandemia e desagregação econômica e social que se vive. A proximidade das festas torna as pessoas mais dispostas a colaborarem em causas pontuais… mas, no dia 3 de janeiro, a vida continua e será necessário mais do que uma mobilização localizada para atender aos apelos de uma situação concreta pelas redes sociais. São muitas as “histórias” que se repetem desde que o ex-ministro Delfim Netto disse que era necessário aumentar o bolo para só depois repartir. Discurso que se mostrou enganoso e ainda persiste…

Pode-se fazer longa e penosa discussão sociológica, política, econômica… mas, o que mais preocupa, desde que me senti capaz de olhar criticamente a realidade brasileira é a falta de Justiça. Sim, com maiúscula, que perpassa todas as áreas e faz com que as relações, de todos os tipos, sejam de transparência, que alça todo e qualquer brasileirinho à condição de cidadão. E cidadão de primeira grandeza e não o que a justiça, sim, com minúscula, mostra em suas atitudes em que alguns a compreendem – e dela se beneficiam – e outros são, simplesmente, “atores secundários”…

Os desvios de recursos, as obras superfaturadas, caixa dois, orçamentos secretos são dutos que privam o brasileiro, há muito tempo, da dignidade de não precisar da caridade para viver e tocar a vida dos seus. Mas como? Se temos uma justiça que se diz preparada e com legislação apropriada? Infelizmente, para nós, leigos, tristemente enrolada e confusa, causando perplexidades nas suas idas e vindas de decisões que parecem contraditórias, sempre em prejuízo da população que já cansou, desistiu e conformou-se em afirmar que a “justiça é para quem tem dinheiro!”

Entidades sociais, religiosas e grupos se esforçam para que as festas sejam passadas com dignidade em lares pobres. Que haja o elementar - comida na mesa - mesmo com a ausência de guloseimas e brinquedos. Lugar onde deveria acontecer a presença da Justiça dos homens. As crianças expõem nossas chagas sociais nas cartinhas que escrevem ao Papai Noel. O pedido de um pedaço de carne, ou da vacina para a sua idade, mostra que lhes tiramos um direito elementar no Natal: a confiança de tempos melhores para si e suas famílias e o sonho que alimenta a própria esperança!

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Desconfie do “Papai Noel”...

Aposentados e pensionistas da Previdência tiveram seus vencimentos do 13º salário antecipados, em duas parcelas (como vem acontecendo nos últimos anos) para maio e junho de 2021. A explicação do governo foi de que este recurso já estava reservado e a situação econômica vivida pelas famílias - que tem nos idosos o arrimo financeiro - era de dificuldades e seria um respiro de alívio. Muitos economistas alertaram que a antecipação retirava um recurso importante da virada do ano, quando muitos pagam impostos de imóveis e de carros, além de gastos extras, como a educação.

Começou, então, a discussão sobre um possível “14º salário”, que tramitou a passos de tartaruga e chega ao final do ano sem ter cumprido todas as etapas no Congresso. Como “possibilidade”, já remota para dezembro, mas viável para março de 2022. Sai o 14º salário? Ninguém pode afirmar, mas também dizer que não. É “possibilidade” e, em ano eleitoral, tudo é possível. Ainda há uma comissão na Câmara, Senado e, então sim, ser sancionado pela Presidência da República. Não é dinheiro certo, portanto, não contem com o ovo antes que a galinha ponha...

No entanto, alguns bancos estão maquiando anúncios que se referem à “antecipação do 14º salário”. É golpe, trata-se de empréstimo disfarçado pelo qual são pagos juros de mercado e, não se concretizando o benefício, será necessária renegociação para pagar a dívida. Em tempos bicudos, com pilas minguados, colocar mais uma conta na relação das já existentes significa asfixiar o orçamento. As chamadas mostram situações em que se pode gastar estes valores, propiciando bem-estar para a família. Sem contar que, depois de passadas as festas, a vida continua.

Outra “fake” que circula é a de que aposentados terão “aumento”. A notícia mostra o percentual que deve reajustar os vencimentos que, diga-se de passagem, não repõe a inflação. Não a que o governo e instituições informam com fartas explicações, mas a da feira, do mercadinho, do açougue, da padaria, onde se vê que, a cada mês, sobram dias e falta dinheiro. Aumento é quando há um ganho efetivo e real. O que se tem é a reposição, mesmo que esteja longe do que já se perdeu ao longo do ano, sempre ficando com a impressão de que o salário entrou em regime para emagrecer.

Cada vez me convenço mais de que temos uma geração de “velhinhos espertos”. Já se deram conta da responsabilidade em família, auxiliando a manutenção de filhos e netos, precisando de mais cuidado com os parcos recursos. Há receitas que são bem simples. O Banco, por exemplo, é um prestador de serviços. Não é um “amigo”. Tem interesse em vender produtos financeiros. Numa discussão, é difícil afirmar se estará ao lado do cliente ou da financeira, que incentiva a que se tome cartões de crédito - que nem sempre são necessários - e passam a ser uma tentação...

Infelizmente, “golpes” disfarçados de benefícios estão aí. Desconfie até de algum “Papai Noel” que queira “facilitar a sua vida”, quando as coisas estão difíceis e ninguém “dá almoço de graça”. É hora de gastar o mínimo necessário, porque tempos bicudos se mostram no horizonte para além de 2022. Ano eleitoral e que, infelizmente, vai trazer muita benemerência encobrindo razões espúrias da política partidária. São Nicolau, que deu origem à lenda do Papai Noel, ficaria ruborizado de vergonha se visse o que instituições financeiras e políticas estão fazendo em seu nome…

domingo, 12 de dezembro de 2021

Atendimento ao Down: sem limites para sonhar

O nascimento do Edson Silva (o Edinho, filho da Marli e do Edson) há mais de 40 anos, foi o marco inicial para que acompanhasse portadores da Síndrome de Down. Na época, até se fazer diagnóstico e estabelecer seu grau era uma longa jornada que precisava de viagens a Porto Alegre, quase sempre com o professor Jandir Zanotelli, que tinham seus retornos na madrugada. O atendimento ainda era precário e necessitava de muito esforço dos familiares com um estigma: não durariam muito e era necessário enfrentar um preconceito arraigado com os “pobrezinhos” e “doentinhos”.

Passadas quatro décadas, há mudanças sensíveis e profundas que se tornam realidade no número cada vez maior de pessoas que vivem mais de 60 anos com esta síndrome, além ter vez e voz na sociedade, nas mais diferentes áreas. O trabalho da Associação de Pais de Down de Pelotas é emblemático de que não é possível desistir e, mesmo, necessário resistir e vencer barreiras do preconceito. As conquistas são de pequenos ganhos, especialmente na qualidade de vida daqueles que hoje buscam atendimento nas áreas de fonoaudiologia, fisioterapia e terapia ocupacional.

Os mutirões familiares que muitas vezes se formam para atender a um portador da síndrome agora recebe o reforço do Rotary Club, no caso, em Pelotas, o Oeste, que fez a ponte para o Alpharetta, nos Estados Unidos. Como resultado já aconteceu uma visita dos americanos e foi fechada uma parceria que vai resultar num centro especializado de atendimento, em área da prefeitura, no bairro Fragata. Já atendendo às novas metodologias, precisa contar com o apoio dos empresários locais e da população para concretizar o sonho de ampliar os horizontes, especialmente dos jovens.

É uma mudança de paradigmas. Do que se tinha para “tratamento”, hoje, se consegue qualificar cada um deles para não se sentir tolhido por olhares que ainda são de desconfiança com relação à sua capacitação e rendimento numa atividade profissional. É possível prepará-los para o meio universitário, assim como alcançar-lhes autonomia para gerir a própria vida. O projeto feito em parceria prevê exatamente isto. O centro terá um conjunto de quitinetes para que, sendo seu desejo, possam morar “sozinhos”, com a assistência especializada de voluntários e profissionais da área.

A Aline Klug fez matéria para o Diário Popular e levantou que existem 350 crianças e adultos com Síndrome de Down, somente em Pelotas. A Associação atende menos de 10 por cento, na faixa etária dos 3 meses aos 60 anos. Isto significa que há um grande grupo precisando de atendimento especializado. Na busca por um lugar ao sol, concretizam o pensamento expresso num post do Facebook: “A Síndrome de Down tem um cromossomo a mais… o cromossomo do amor!” Um amor que, de fato, faz deles indivíduos diferentes pelo carinho que são capazes de dar e buscar...

Pessoas com alguma síndrome precisam de cuidados especiais ao longo de toda a vida. Podem ter acompanhamento remoto que permita autonomia de forma que, como qualquer um de nós, quando se precisa de assistência, se tenha de alguém próximo. Nas últimas décadas, assim como para os idosos, por exemplo, conseguiu-se ampliar sua expectativa de vida. O passo seguinte é qualificar a vida que se prolonga. Infelizmente, a maior limitação que encontram em sociedade é a pobreza, a ignorância e o preconceito. Um sonho, que precisa se concretizar no respeito por quem é diferente!

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

A pandemia e o rastro de dúvidas…

A discussão dos últimos dias envolve as autoridades municipais com o coração dividido entre a liberação para festas de final de ano (trazendo no rastro o Carnaval) e a precaução necessária com os problemas causados pela Covid. Em pauta, a África, mas, também, a Europa, onde o sentimento de que tudo ia bem abrandou as restrições e estão tendo que correr atrás para controlar novamente a pandemia. Situações diferentes, que deixam atordoadas até as autoridades médicas e científicas, comprovando que o vírus não é previsível e ainda se está longe de um mapeamento que o controle.

A pressão exercida pelos meios econômicos sobre quem deve decidir envolve interesses de todos os tipos, com argumentos que mostram a fragilidade do sistema, causador do desemprego, assim como a insegurança alimentar. Também por apelos falsos como os repetidos à exaustão de que “todas as medidas de segurança foram tomadas pelos organizadores do evento...” Basta olhar, por exemplo, para o que acontece no futebol onde até aparecem as máscaras quando ingressam nos estádios, mas somem, assim como se fazem as aglomerações. Fiscalização? Que fiscalização?

Hoje, se não se correm maiores perigos é porque a população já tem uma cultura da vacinação e não foi atrás dos negacionistas. No entanto, o perigo não está no número de vacinados, mas dos “sem vacina”, por “n” motivos, que podem ser ideológicos, mas tem muito de medo, relaxamento e ignorância. Enquanto não se prova ao contrário – e os números apresentados são a garantia – as vacinas mostram-se a salvação da lavoura. Pode-se precisar de mais tempo para responderem de forma efetiva, mas se constata que foram fundamentais na diminuição de internações e mortes.

Alguns argumentos são velhos e batidos. Um deles diz que se coloca a democracia em perigo quando se apela para medidas restritivas. Acontece que autoridades precisam atuar em situações extremas, quando há riscos para a sociedade. Quando alguém coloca em perigo a própria vida e de quem convive, é preciso tutela e responsabilização. Veja-se o que voltou a acontecer nas madrugas dos fins de semana, com acidentes causados pelo álcool, agora com uma novidade: deixam carros abandonados porque o lugar onde capotaram era “ambientes propícios para assaltos…”

Com todos os problemas que se tem, um deles na área da educação, por onde deveria passar a conscientização, é um milagre que coisas piores ainda não tenham acontecido. Aglomerações na madrugada, festas que fogem à fiscalização, aqueles que seguem, ao menos, com o uso de máscara quando precisam entrar em algum ambiente fechado, mas a descartam em seguida… O que não significa que estejam convencidos de que é o melhor. Ainda há um sentimento de que isto acontece por fatalidade com os outros, mesmo que os outros sejam vizinhos, conhecidos e amigos.

A pandemia deixa um rastro de dúvidas. O quadro, no fim de ano, é desanimador. Técnicos e cientistas percorrem um labirinto. Quando pensam que acharam o caminho, há uma derivação e é necessário retomar, sem abrir mão das conquistas. O flagelo que se abateu sobre o Brasil e levou mais de 616 mil vidas ainda é sinal de alerta. Não se precisa do retorno deste martírio. Que se façam festas em 2022, 2023, 2024, ou quando der. Agora, não. É tempo de contar os mortos e sequelados. Buscar uma luz de esperança que dê sentido a todas as festas que a vida ainda pode proporcionar!

domingo, 5 de dezembro de 2021

“Eu não gosto do Natal”

Faltando duas semanas para a celebração do Natal, há uma enxurrada de filmes na televisão aberta e nos canais pagos, assim como no streaming, apelando para seus principais símbolos. Fofuxos e não tão fofuxos assim, recontando lendas ou buscando histórias sentimentais, emocionando por ser uma festa em que os sentimentos transitam desde o “eu não gosto de Natal” até o “este é o momento mais lindo do ano para mim”. A “bipolaridade” é maior conforme o tempo passa e os filmes provocam mescla de reações que vão das lágrimas incontidas aos sorrisos de carinho e saudade.

Também, há elementos de reflexão, como a imagem que circulou semana passada - recebi da Maria da Graça Marques - mostrando menina remexendo o lixo e encontrando uma caixa de boneca. Pela janela, via-se uma outra criança que segurava nas mãos o brinquedo que ali estivera acondicionado. Ambas mostravam-se felizes, sem se dar conta do distanciamento que fazia com que uma tivesse recursos para comprar, enquanto a outra precisa catar nas latas as sobras de uma sociedade que não consegue tratar de igual forma suas crianças que, cedo, são apresentadas às mazelas da vida...

Campanhas se multiplicam com pedidos para que o final do ano seja de momentos que não apenas estimulem o consumo, mas crie uma “bolha” de gratidão e solidariedade. Grupos religiosos e sociais se articulam a fim de conseguir brinquedos em boas condições para que não se tenha alguém precisando se contentar com uma caixa vazia. E alimentos que permitam sobreviver e a vivência de momento tão especial com o que ainda resta do que já foi uma família. Os catadores e seus filhos que percorrem as lixeiras também merecem um lugar na grande mesa de Natal da humanidade.

A Monja Coen conta a história do rapaz que se formou e quis percorrer o caminho de Santiago. Muitas discussões, o pai queria que ele imediatamente fosse trabalhar, enquanto o filho não abria mão da experiência mística. Contrariou o “futuro patrão” e foi. Morreu no meio do caminho… O pai buscou as cinzas e providenciou o funeral. Resolveu atender ao pedido do filho e fez o caminho de Compostela. Em cada etapa, também fazia o seu processo de conversão e foi deixando um pouco da memória do filho. Hoje, é um dos palestrantes que motiva os romeiros em sua peregrinação.

Somos um contínuo de vida. Vai ser bom abraçar e partilhar da mesa com familiares e amigos… As redes sociais repassam informações sobre economia, sociedade, política, educação, segurança e tantas áreas que viveram momentos difíceis, especialmente na pandemia. Problemas que não foram resolvidos e que estarão à porta já nos primeiros dias do ano novo. Isto não impede que se faça uma pausa e se renovem as esperanças de melhorias apregoadas e muitas vezes esquecidas... Somos filhos e filhas da esperança, que necessitam demonstrar gratidão e solidariedade.

A monja Coen diz que “quando a gente abre as mãos, nelas cabem o universo”. E o Universo é vida que se renova em momentos simbólicos como o Natal. O princípio da morte não é a doença ou a velhice. O fim começa ao perdermos a reação ao que acarinha nossos sentimentos, a vontade de reagir à indiferença e reencontrar sentido no que já alimentou nossas esperanças... a inocência de brincar com uma caixa que já teve um brinquedo ou embarcar nos sonhos de quem provou, com a própria existência, que o insólito e o mistério são lugares privilegiados para se viver a própria fé!

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Educação: ainda há um sopro de esperança

A Escola Estadual 1º de Maio fica um pouco afastada do centro de Nova Petrópolis, no bairro Vila Germânia. Ao chegar, percebe-se que o portão está fechado e, em poucos instantes, um guarda residente (aposentado da Brigada Militar e morador nas proximidades) chega para atender. Somente abre o portão quando tem certeza de que o assunto é pertinente, sem deixar de continuar observando o movimento das pessoas nas proximidades, assim como de veículos. Fui prevenido para não estacionar em frente ao prédio, numa área reservada, pois a multa e a incomodação seriam certas.

Meus sobrinhos residem em Caxias do Sul e estão migrando para o interior. Atuam na área da saúde e encontram, numa comunidade menor, oportunidades de emprego, assim como, pensam, melhor qualidade de vida, em especial para o filho, meu sobrinho-neto, o Miguel. Entrar nas dependências foi como se já se sentisse em casa. “Minha escola nova” era um espaço a ser explorado e, enquanto cuidavam da papelada, fiquei encarregado de policiar que não mexesse em nada ou invadisse algum espaço. Fui a reboque, durante um bom tempo, percorrendo corredores e espiando salas de aula.

Carinhosamente, professoras que orientavam alunos para o intervalo da merenda foram passando, conversando e se apresentando. Duas turmas de primeira série são candidatas a recebê-lo. Claro, teve que visitar e ser prontamente recebido pelos alunos deste ano. Se não o retirasse daquele lugar, ficaria em definitivo. Mas não foi somente entre as crianças que se sentiu bem. Curioso, escapou de minhas mãos e entrou numa sala de alunos maiores. Foi recebido da mesma forma, com a garotada perguntando quem era, ficando feliz por saber que no próximo ano estaria em sua companhia.

Quando voltávamos à secretaria, encontramos a própria diretora. Prestativa, fez questão de mostrar as demais dependências, inclusive o local onde as crianças já estavam fazendo seu lanche. A algazarra contagiante de crianças e adolescentes que passavam brincando, se provocando, sem excessos, numa relação saudável e pedagógica. Contou da interação com a comunidade, também no que se refere à reciclagem de lixo, em especial, com material aproveitado (como caixas de leite) para revestimento das casas de moradores em situação precária, melhorando a qualidade térmica.

Durante o tempo em que lecionei na Escola de Comunicação da UCPel, seguidamente era convidado por escolas públicas para conversar com professores sobre Comunicação Motivacional. O interessante é que mais do que repassar algo aos grupos, tinha a oportunidade de conhecer diferentes realidades em centros urbanos, periferias e meio rural. Havia, sempre, grande preocupação, especialmente com a deterioração das estruturas, assim como de salários e benefícios dos professores. Mas nunca, e repito: nunca, senti que os educadores quisessem desistir…

A educação ainda é um sopro de esperança na vida de crianças que encontram na escola um porto seguro para fugir de situações de fragilidade social. Não é o caso da 1º de Maio, que está num outro patamar, ao preparar pequenos cidadãos, como o Miguel, que “se achou”, acolhido pela comunidade escolar. Ali, educar significa provocar mentes e corações a abrir janelas ao Mundo. Encantamentos da infância, tempo em que se tem o direito de ser feliz, acreditar nos próprios sonhos, onde, de cada sala de aula, corredor, professora, diretora, coleguinhas, ficam as doces e ternas marcas da saudade!

domingo, 28 de novembro de 2021

Padre Aldo: a partilha de uma vida

Padre Aldo Sérgio Lorenzoni chegou aos seus 89 anos no início de novembro. Um dos intelectuais mais respeitados nos meios religiosos e acadêmicos, era objeto de “namoro” do Lupi Scheer dos Santos, que criou e me dá a honra de ser parceiro na live Partilhando, da Arquidiocese de Pelotas. Acreditava, com razão, que seria um dos programas especiais, pelo conhecimento do convidado nas áreas de humanas e religiosas, mas, também, pelo carinho que granjeou pelas diversas atividades que exerceu, seja nos bancos escolares ou junto às comunidades da igreja Católica.

Foi melhor do que a encomenda… Duas semanas atrás, refez o convite que foi prontamente aceito, já pedindo orientações de como fazer para entrar no ar. O Lupi chegou a pensar em convidar um seminarista para acompanhá-lo e dar assistência técnica durante a entrevista. Não foi necessário, ele mesmo acionou o notebook e o que aconteceu a partir do momento em que se iniciou a transmissão foi uma avalanche de carinho, com lembranças de pessoas que haviam convivido com ele, felizes por revê-lo, ainda mais por sentir que, ali, continuava o bom e velho padre Aldo!

“Querido padre Aldo”, “amado padre Aldo” foram algumas das expressões que as dezenas de mensagens trouxeram pelas redes sociais para tornar pública a admiração por uma figura que respeitou o que sempre se pede: “não se dá aula, não se faz palestra, não se dá catequese”. Queríamos ter a alegria de tomá-lo pela mão e levar até a sala da casa de cada uma das pessoas que interagiam conosco. E foram muitas, nas casas mais simples, nos apartamentos de todas as áreas da cidade, assim como nos lugares onde se encontravam lideranças religiosas de todos os tipos.

Como diria o Clésio: “faltou tempo”. Queria ter lembrado do meu ingresso no Seminário, quando o conheci e ficava afastado, já que era um jovem padre vindo de formação no exterior, com presença nos meios universitários. Mas… o padre Aldo foi o primeiro que teve uma televisão no Seminário e, depois da janta, um grupinho escapava do recreio e ia assistir ao noticiário, que iniciava antes das 20 horas, horário consagrado para novelas. Infelizmente, às 21 horas, tocava o sino e precisávamos nos recolher. Alguns chegavam a sair de marcha ré, para, ainda, assistir uma última cena…

Mas foi do professor Cilon Rodriguez, ao registrar que sentia “saudade do meu reitor e diretor espiritual!”, que vieram memórias de histórias contadas na sala dos professores do Campus II da UCPel. Hilárias, como só o Cilon sabe contar. Numa ocasião em que era coroinha, ainda pequeno (o que ainda o é), precisava segurar um livro pesado e, numa pausa, pensou que havia terminado, fechando o livro. A sorte é que o padre Aldo viu e foi, rapidamente, abrir no lugar marcado. Dom Antônio teria sussurrado: “menino pateta!” Ao que o Cilon, prontamente, respondeu: “Amém!”

Não faço justiça ao citar nomes, mas o padre Aldo está no patamar de um Cláudio Neutzling, Régis Brasil, Martinho Lenz… e tantos outros que não utilizam dos seus estudos como um lugar para se fazerem de diferentes. Ao contrário, facilitam a vida das pessoas, ao usar o conhecimento apenas como um instrumento – o outro é o próprio testemunho – para viverem a sua entrega a Deus. Como muitas mensagens registraram, a gente ficaria por muitas horas aproveitando o seu bom humor, os detalhes brincalhões, o seu jeito bonachão e acolhedor de fazer uma santa e abençoada partilha!

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Um todo para se chamar de Rio Grande

Passei dois anos sem, praticamente, sair de Pelotas. A pandemia tirou meu gosto por incursões a Porto Alegre, a fim de “um banho de cultura”, com uma agenda incluindo livrarias, shoppings, cinemas, teatros, visitas… e à serra, especialmente Caxias do Sul, onde tenho sobrinhos morando e trabalhando. O hiato foi suficiente para perceber as mudanças ocorridas, tanto no que se refere à Br 116, quanto ao fosso que existe entre o fato de que Pelotas e Rio Grande constituem o centro de um polo econômico que corre atrás do processo de industrialização que, por lá, já se distanciou.

Próximo de completar 10 anos, as obras da rodovia que liga à capital melhorou sensivelmente o trânsito. Ao menos, agora, se sabe que, em algum momento, desdobra-se em mais pistas e desafoga a procissão dos desesperançados que se aglomera atrás de um caminhão, por exemplo. Sem demérito a quem trabalha, mas sabendo que é um recurso que já deveria estar à disposição em sua integralidade e demanda, no mínimo, dois anos de trabalho para a conclusão. Incluindo a nova ponte junto a Porto Alegre que facilita quem passa por lá em direção à serra ou ao litoral norte.

Os problemas que a economia enfrenta no Brasil vitimaram amplos setores industriais, assim como de serviços. Mas há regiões, como a do vale do rio dos Sinos, que se renova, o que é demonstrado, nesta época do ano, pelo incremento das atividades que envolvem Natal e Ano Novo. Numa manhã de quinta-feira, percorri um shopping do centro de Canoas, com todos os seus espaços ocupados, assim como muitos quiosques pelos seus corredores, e serviços (como pista de patinação em seu interior), com muita gente circulando, especialmente no horário do meio-dia.

Há um outro clima na produção industrial. Saudosistas dizem que já foi melhor e os empresários mais novos apontam que, para quem perdeu os anéis ficaram os dedos, e é necessário pôr a mão na massa, investir e cicatrizar as feridas que causaram o afastamento sensível de uma parcela de consumidores da classe média baixa. Não existe a perspectiva do pleno emprego, mas se considera como vitória se um bom percentual da massa trabalhadora que hoje busca a fila das políticas sociais do governo possa, por si só, gerar a própria renda e administrar a economia de suas casas.

No entanto, os bons índices alcançados pela vacinação causam a impressão de que se superou a pandemia. Na Serra, narram história semelhante à que é contada a respeito de alemães, no caso, com relação a italianos… “O italiano não é teimoso, teimoso é quem teima com um italiano!” Acho que vale para outras etnias, inclusive para nós, com alguns resquícios dos portugueses. Percebe-se, em muitos lugares, descuidos com o uso da máscara, do álcool gel e distanciamento. Sem acender a luz vermelha de que esta fadiga dos cuidados pode ser a porta aberta para novos problemas.

As obras de infraestrutura não pararam. Mas não são o suficiente. As estradas estaduais e federais estão em melhores condições, o que é básico para atender às necessidades para as quais as diversas regiões, com suas características, inclusive étnicas, foram construindo seu suporte econômico, financeiro e cultural. Sem querer plagiar o governo do Estado, é preciso avançar. Circular por aí dá a nítida impressão de que ainda se trabalha com polos isolados, alguns até com conexões com o Mundo, mas que não encontraram seu lugar para fazer o todo que se chama Rio Grande do Sul.

domingo, 21 de novembro de 2021

Entre o perfume do jasmim e o gosto do figo

Semana passada publiquei foto nas redes sociais em que aparecia um pé de jasmim plantado no meu pátio. Sempre que são postadas fotos assim é comum que as pessoas se manifestem e, desta, em especial, por ser planta com perfume marcante, trazendo lembranças de algum familiar que plantou ou gostava do seu cheiro. E comentários como o da Maria da Graça, surpresa por ver as flores, dizendo que o seu estava em botão, o que tive que consolar: “não te preocupa, o meu é que é apressadinho...” O pai gostava da planta, assim como outra de perfume intenso, a dama da noite.

Outra lembrança agradável me veio quando ouvia algo sobre “discernir os sinais dos tempos”, a partir da expressão “quando caem as folhas da figueira”. Confesso que não sei quando caem as folhas da figueira. Mas é das frutas pela qual tenho muito apreço. Casal de amigos, dona Filipina e seu Henrique, tinham açougue, na saída da Vila Silveira. Nos fundos, uma antiga figueira. Sendo eu um “protegido” da dona Filipina, reservava para mim, quando estava em férias do Seminário, o direito de usufruir da abundância de frutos que, maduros, chegam a se desmanchar na boca…

Os mesmos figos que, no fim do ano, faziam as safras dos fabricantes de compotas. Não sei bem a ordem, mas recordo que, depois da colheita, até o fim da década de 1970, muitas mulheres de todas as idades dos bairros e vilas conseguiam seu pé-de-meia trabalhando na industrialização das frutas. Havia a safra do abacaxi, morando, pêssego e figo, que eu lembre. A mais forte era do pêssego, de dezembro a janeiro, quando senhoras com tapa pós brancos saiam de casa na madrugada para voltar tarde da noite. O dinheiro reforçava o orçamento familiar e valia o direito à carteira assinada.

As mesmas vizinhas que, antes de irem para as fábricas, organizavam os pátios, com pequenos jardins, onde se multiplicavam as dálias, copos de leite, brincos de princesa e tantas outras que faziam companhia para o jasmim e a dama da noite. As frentes eram protegidas pelas cercas de arame, com pequenos portões que impediam a passagem de animais. Lugares onde se esmeravam para melhorar a aparência das casas, sempre humildes e discretas. Como cantaria o Chico Buarque: “são casas simples, com cadeiras na calçada e na fachada escrito em cima que é um lar...”

No nosso pátio já se teve muitas árvores, inclusive uma figueira. Porém, as mudanças se fizeram para acomodar uma piscina e espaços para meus pais poderem, na sua velhice, ter lugares seguros para caminhar. O pai gostava de plantar árvores, sempre duas próximas, que suprimi, substituindo por arbustos floridos. Ainda se tem uma laranjeira, limoeiro, caqui e um pé de romã. Mas não sou muito de árvores frutíferas. Conservo pelas sombras que dão aos fundos do terreno, especialmente em dias de verão, quando convidam para colocar uma cadeira de praia e os pés na grama…

Os tempos são outros: o jasmim e o figo têm gosto de belas memórias. Hoje, pela manhã, quando saio para o pátio, o perfume faz parar e vem acompanhado de boas lembranças e os eco das vozes que chegam da Eternidade. Da fruta, o carinho da dona Filipina e da dona Rita, que preparava o figo em calda. Ou das últimas frutas que existiram em meio ao arvoredo e que meus pais recolhiam e guardavam para os netos… Colocar um destes frutos na boca guarda toda uma história que se mistura com os cheiros de primavera, inebria os sentidos e torna menos dolorosa a própria saudade!

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Um “salário secreto” para os brasileiros

A discussão sobre o “orçamento secreto” - que ainda vai dar muito que falar - não é apenas questão de “direito” dos congressistas em ter recursos que destinem para as suas bases eleitorais. Escancara a desfaçatez com que políticos lidam com recursos públicos em benefício próprio. Mostra que o sistema dos três poderes independentes se atrapalhou, ao menos no Brasil, pois quem deveria ser responsável pela legislação e fiscalização outorga-se a prerrogativa de agir como executivo. Mistura que se “naturalizou”, no amargo gosto de que, se alguém ganhou, não foi a população...

Um ruído nas relações foi exatamente quando Legislativo e Judiciário resolveram se reunir a fim de “aparar arestas” e, quem sabe, retroceder na medida tomada pela ministra Rosa Weber. Não “colou” e o governo, por enquanto, tem que pensar outras formas de pressão ou negociação para “a boiada passar”. As emendas de relator mostram exatamente o contrário do que se precisa num sistema democrático: transparência. Recursos de governo devem ser aplicados publicamente, com o direito do cidadão, meios de comunicação e entidades representativas de se manifestar livremente.

O que deveriam ser medidas técnicas, tomadas por quem foi eleito para administrar bens públicos, acaba tendo prioridades estabelecidas por aqueles que embolsam os minguados recursos e direcionam para seus bretes eleitorais. Em tese, os papéis dos poderes executivo, legislativo e judiciário estão bem definidos. Porém, na prática, a teoria acaba sendo outra. Esta promiscuidade é que faz com que o ralo financeiro do que deveria chegar em serviços à população acabe em desvio, obras fantasmas ou esqueletos abandonados que denunciam a incapacidade administrativa.

São os mesmos a dizer que igrejas não devem se meter em política. Quem quer calar profetas, como o papa Francisco, sabe que ele tem clara a definição de política, como agir público, a necessidade de cuidar do que é comum e das pessoas. O que fazem nossos representantes (infelizmente) eleitos é dar privilégios que são crimes disfarçados de atuação benemerente. E quem diz que não se deve falar em política, argumentando que não tem cargo público, portanto é isento, não o é. É cúmplice ao fazer uma significativa parcela da população ter que mendigar direitos elementares.

Para isto, são necessárias as vozes sociais, como a Cáritas Arquidiocesana, que se preocupa com atendimento básico e lança o olhar para o que falava dom Hélder Câmara: “quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”. A necessidade da consciência dos direitos, por exemplo, de indígenas e quilombolas, passa por processos, como garantir título de eleitor e participação no processo democrático. A forma como tentam anulá-las é perseguição, desconhecimento e tentativa de brecar seu papel social.

Se parlamentares podem ter orçamento secreto, solicito que brasileiros desempregados e ganhando até dois salários também tenham direito a um “salário secreto”. As vozes solenes que defendem políticos dirão que é necessário, primeiro, atender a economia… Desculpem, não entendo que, onde existem tantas “cabeças privilegiadas” (ganhando tão bem) não se encontre formas de que as duas coisas sejam realizadas. O Brasil precisa ser, mais do que nunca, a nação dos brasileiros. Lugar de viver em paz e ter as realizações que tanto sonha e se mostram cada vez mais distantes…

domingo, 14 de novembro de 2021

As bolinhas de gude, as figurinhas e os gibis...

Três irmãos vão passar as férias escolares no sítio da avó. Não é apenas uma área de lazer, mas lugar em que, junto com um auxiliar, a idosa faz um pouco de tudo para manter a sua sobrevivência. Durante o dia, as crianças passam bem, envolvidas em aventuras com as novidades de quem sai do meio urbano. À noite é que é o problema. O silêncio apenas quebrado pelo ruído de animais é estranho, bem diferente do agito da cidade, que percorre a madrugada. Andando e brincando pela casa, descobrem a sala onde a avó trabalha. Na mesa, um punhado de contas espalhadas…

Pensam, ser o motivo deles trabalharem tanto e andarem preocupados. Resolvem juntar tudo o que têm para colaborar, de alguma forma, e salvar o lugar. Quando a senhora e o ajudante descobrem as “contribuições”, as crianças já estão dormindo. Ficam emocionados, pois as contas são antigas e já foram saldadas. Lembrando da reclamação das crianças, resolvem subir numa árvore que fica em frente ao seu quarto e tentar reproduzir os ruídos a que estavam acostumados na cidade. Até os animais do sítio dão a sua contribuição para tornar o meio rural um pouco mais urbano…

Para quem ainda não ouviu, a história faz parte de um gibi do pato Donald. Os personagens são a vó Donald, Huguinho, Zezinho, Luizinho e o Gansolino. Criação de Walt Disney que frequentam a imaginação de todos nós há mais de 85 anos. Eram de todos os tipos, com histórias infanto/juvenis, de farwest, de terror e de viagens pelo espaço, sem contar as “eróticas”. Com apenas uma história ou mais, eram periódicas e se perseguia o seu Ananias, o jornaleiro, para saber se haviam chegado. A festa maior era, no final do ano, com os almanaques, uma coletânea especial dos personagens.

A lembrança veio com a notícia de que a Biblioteca Pública do Estado inaugurou uma gibiteca. Lugar para crianças e adolescentes de todas as idades reencontrarem com figuras que auxiliaram a criar o hábito da leitura, fizeram parte do estímulo necessário para, depois, avançar em direção aos livros. Num tempo em que estes estavam fora de nosso alcance - os pilas eram curtos - ganhar um gibi significava ter condições, depois de lido, de trocar entre os companheiros de brincadeiras na rua ou na entrada do cinema (também bolinhas de gude e figurinhas...), nas matinés de domingo.

Na minha infância, ainda haviam figuras como o tio Patinhas, Mickey, Pateta, Margarida, madame Mim, Maga Patológica e tantos outros que, recentemente, descobri em animações de páginas no YouTube. Fiquei um longo tempo vendo os velhos personagens, com as mesmas características dos desenhos, mantendo as antigas histórias: uma aventura, atores atrapalhados, mas um final feliz (às vezes com uma pequena perseguiçãozinha…), com o sentimento de que havia uma lição a ser aprendida, especialmente no respeito ao outro, com valores vividos em família ou em sociedade.

A Biblioteca Pública Pelotense tem uma sala de leitura infantil, onde também tem uma ala de gibis. O hábito da leitura é um entretenimento que estimula a concentração. O pequeno mundo de cada um de nós se expande e faz percorrer outros universos. A aquisição de novas ideias enriquece a capacidade de raciocínio, assim como o vocabulário das crianças. Mas que não está fora do alcance de jovens e adultos… É bom, mesmo depois de tanto tempo, percorrer suas páginas e voltar aos lugares onde a fantasia e a imaginação eram a riqueza de que necessitávamos para tocar a vida!

terça-feira, 9 de novembro de 2021

“É preciso falar sobre autismo!”

O Tales Godinho repercutiu postagem da Eliane Sá Britto Bitencout. Um depoimento precioso para entender situação vivida por milhares de pessoas que têm, na família ou entre amigos, alguém “especial”, como um autista. Se consultar o Google, verá que o autismo é uma síndrome que “causa alterações na capacidade de comunicação, interação social e comportamento, o que provoca sinais e sintomas como dificuldades na fala, bloqueios na forma de expressar ideias e sentimentos, assim como comportamentos incomuns, como não gostar de interagir, ficar agitado ou se repetir...”

O título não é nenhuma novidade, mas necessita ser repetido: “é preciso falar sobre autismo!”. E conta a história vivenciada com o Márcio, seu filho, que levava para sessão de terapia. O primeiro susto veio quando uma moto acelerou alto ao ultrapassar. O Márcio fechou os olhos, começou a se balançar e “não mais me ouvia”. Houve um novo encontro e o fato se repetiu, quando foi necessário parar o carro e tentar contornar a situação. Rezando para que não tornasse a acontecer, continuaram o caminho… Repito o ditado: Quem disse que o raio não cai duas vezes no mesmo lugar?

Num entroncamento, o fato aconteceu novamente e estava feito o estrago. Márcio fechou os olhos e começou a balançar. Eliana desejava uma oportunidade para falar com o dono da moto. Acabou acontecendo. Parou, cumprimentou, identificou-se e perguntou se já ouvira falar de autismo. Contou os lances vividos em cada vez que acelerava e o que causou. Educado, o rapaz disse que não sabia. Eliana completou: “as pessoas não são obrigadas a saber o que afeta nossos filhos. Nós também não sabíamos, até que o autismo bateu à nossa porta. É preciso conscientizar… é preciso falar sobre...”

É preciso falar sobre o autismo…” assim como sobre todas as síndromes, que tornam pessoas especiais, por questões psicológicas, deficiência física, envelhecimento (porque não?), doenças que lhes retiram a capacidade plena de interação. O que o texto cobra – conscientização – é o reconhecimento de que o fato de eu estar em plenas posses de todas as minhas faculdades mentais e físicas não me dá o direito de invadir o território do outro, onde se abrigam os seus medos, os seus pânicos, as reações que se pode causar e transtornam longos períodos de tratamento.

Uma das cenas mais tristes que vivenciei foi quando, chegando em casa, ao abrir o portão, ouvi uma música alta vinda da casa de um vizinho. Incomodado, entrei na morada de meus pais onde os dois, já idosos, estavam sentados em silêncio, televisão desligada, rostos abatidos, porque a altura do som não permitia ouvirem os programas ou entabular uma conversa. Uma das regras mais claras que tornam as relações sociais civilizadas é: “a minha liberdade acaba onde começa o nariz do outro”. O que satisfaz meus prazeres, não pode prejudicar a quem não pediu para ser incomodado.

A conscientização pedida no desabafo é uma questão de educação e informação. Processo que demanda afeto, compreensão, aceitação, espaços onde o autista seja acolhido e reconhecido. Foi-se o tempo em que pessoas com síndromes eram chamadas de “coitadinhas”, com o estigma da segregação marcado na testa. A ciência tem tratamentos para realizarem suas potencialidades. Tomara que o Márcio esteja bem e a Eliane continue a sua cruzada por algo tão elementar: que seu filho, como qualquer outro ser humano, mereça respeito e tenha o direito de um lugar ao Sol!

domingo, 7 de novembro de 2021

O caminho depois do luto e da orfandade

Com o avanço do processo de vacinação já se consegue ter uma ideia do que será o pós-pandemia. Mesmo que cientistas e pesquisadores ponderem que, graças ao desiquilíbrio causado pelo abuso com a Natureza, novos problemas semelhantes podem acontecer, em espaço de tempo menor. Recentemente, passamos pelo dia de Finados, 2 de novembro, quando se reverenciaram os mortos. Ocasião para se falar a respeito do luto e de todas as facetas que possui a perda de um ente querido, no que é um sentimento pessoal, que precisa de consciência, resiliência e ressignificar a vida.

Mas não é somente o luto, em si. Têm-se outras consequências, como, por exemplo, a orfandade, que pode ser entendida literalmente: perda dos pais, ou de um deles; também de forma figurada: um amigo, vizinho, companheiro de trabalho, de estudos… Passou a ser “normal” acompanhar as estatísticas mostrando centenas de vítimas e, quando a morte era próxima, deixando a sensação de que se poderia ser a próxima vítima. Muitos grupos foram desfeitos (familiares, de relações afetivas e sociais) pela ausência definitiva, mas também pelo afastamento temporário e o receio do retorno.

A pandemia ainda causa efeitos colaterais, que serão sentidos nos próximos anos, em especial, no que se refere aos pulmões, coração e células cerebrais. Vive-se num tempo em que ainda é preciso procurar pelos corpos com vida em meio ao campo de batalha. Mas virá o momento em que passado (mas não superado) o pior, é preciso tratar as feridas do corpo e da alma. A “cura” do coronavírus ainda é etapa em observação para se fazer um diagnóstico adequado da situação. É comum que as pessoas passem um tempo e apresentem problemas respiratórios ou, até mesmo, de memória.

Há uma sofreguidão em deixar os “abrigos” que protegeram durante este período, ainda que não tenha sido por ação de todos. A persistência de quem usou (e usa) da máscara, do álcool gel, do distanciamento social, mostrou-se fundamental para que se vislumbre uma luz no fim do túnel. Quando alguns raios começaram a passar pelas frestas das janelas e das portas, a tendência foi de se escancarar tudo e sair para a rua, em busca de um ar menos saturado. Este tem sido um caminho perigoso, tomado sob pressão por países mais avançados, que acabaram retrocedendo.

A arrogância de que “tudo se pode” ou de que “não vai acontecer comigo” levou muita gente para os hospitais e as tristes e temidas entubações. Dos que conseguiram retornar com vida, encontrou-se aqueles que tiveram a humildade de voltar atrás e reconhecer o furor do vírus e o desespero de quem recebeu uma quase sentença de morte. Mas ainda restaram pequenos grupos negacionistas que preferiram politizar a luta contra o coronavírus para defender seus políticos de estimação ou pretensos direitos individuais, que tentavam se sobrepor aos interesses da coletividade.

Cem anos depois da Gripe Espanhola, aprendem-se velhas e surradas lições: é fundamental cada um cuidar de si, sem esquecer de quem está à volta. Sendo assim, para religiões, psicologia, assistência social, não é suficiente tratar o luto se, depois, não se alcançar a perspectiva de que a vida continua. E de que, mais do que viver e resolver o momento da dor, é preciso alimentar a esperança. Abrir todas as frestas por onde a luz possa entrar e tratar da perspectiva do caminho… afinal, como diz o poeta espanhol Antônio Machado, “caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar!”

terça-feira, 2 de novembro de 2021

O dia de Finados, a morte e o luto…

O costume de fazer memória daqueles que já morreram é antigo. Possivelmente, para os cristãos, venha do século II, quando as pessoas visitavam e rezavam por quem havia sido vítima de martírio. Foi somente no século V que se convencionou ter um dia dedicado à oração pelos que eram próximos e, também, por quem já estivesse esquecido. No século XIII, a data foi oficializada em 2 de novembro, dia seguinte ao de Todos os Santos. Não se pode esquecer que, ao longo da história, os corpos eram sepultadas dentro das igrejas ou em cemitérios no mesmo terreno.

Era o desejo de manter próximas as pessoas que fizeram parte da história de cada um. O sentimento que se tem, hoje, quando multidões afluem aos “campos santos” para rezar, fazer a conservação dos túmulos, colocar flores, acender velas e participar de cerimônias religiosas. A crença de que se é uma comunidade peregrina (os vivos), sofredora (as almas em purificação no purgatório) e triunfante (aquela que já alcançou o Paraíso). Faz conjunto com o dia anterior, onde também se recordam os santos já esquecidos, se fazem orações e prestam sacrifícios pelos demais.

Mesmo entre os cristãos, há costumes diferentes, quando a morte não é vista de forma tão negativa. Caso do México, onde a religiosidade popular acredita que familiares voltam e mantêm altares nas casas para recepcioná-los. Bom dar uma olhada no filme “a vida é uma festa”. Ou, ainda, saindo do cristianismo, povos orientais que, em vez de flores, levam alimentos em oferenda para colocar sobre os túmulos. A convicção maior é de que, em ambos os casos, qualquer das ofertas, é mais uma necessidade do vivo de compensar a ausência do que do morto de ter alguma necessidade atendida.

Numa situação normal, o luto, que caracteriza as perdas humanas, é um processo emocional de se vivenciar o afastamento. Não se tem como medir a sua intensidade. É um processo totalmente individual, dependendo do tipo de relação que se teve, assim como da preparação para a perda. Da mesma forma que sua duração. O certo é que ficam as marcas, que se carregam por toda uma vida, no lado esquerdo do peito. E vão influenciar as relações futuras, havendo a necessidade de não perder o vínculo, sem deixar de ter bem presente que a vida continua.

Envolve tristeza, estresse, choque, ansiedade, culpa, raiva e medo. Não há receitas prontas, mas a necessidade de que se retome tempo para cuidar de si; não ignorar a dor, mas aceitá-la como um processo; conversar com quem se confia; passar mais tempo com amigos e familiares; não se isolar; ocupar a mente; exercitar-se (porque não?) e ressignificar a vida… Como já dizia o poetinha Mário Quintana: “Todos esses que aí estão, atravancando meu caminho, eles passarão… eu passarinho!” E que venham novos voos e que se permita transformar a saudade em doces lembranças!

Não tenho medo da morte. Como o papa Francisco manifestou, tenho medo de sofrer… ou espichar a vida que perdeu sentido e se arrasta até que, por fim, seja uma chama que se apaga. Ao nascer, recebe-se um selo: em algum momento, quase sempre nos próximos 100 anos, a vida acaba. A questão não é de quando se nasce ou se morre, mas do que se faz neste espaço de tempo. A religião não pode ser anestésico que faz perder a noção da finitude, mas uma preparação. O espírito que prepara a morte prova que, num ínfimo da história, habita a centelha que vislumbra a Eternidade!

domingo, 31 de outubro de 2021

Recomeçar na busca por respostas

O título do projeto é provocativo: “Respostas para o amanhã”, feito pela Samsung, numa iniciativa global que estimula estudantes do ensino médio de escolas públicas a identificar problemas reais e desenvolver soluções baseadas em ciência e tecnologia. A gigante da informática tem, no seu lado social, um desafio que provoca e desacomoda alunos que estão chegando ao final de seus cursos e necessitam apresentar um trabalho de conclusão. Os grupos precisam “ralar” para encontrar um problema e, na sequência, uma solução simples com potencial de melhorar a vida das pessoas.

Depois de assistir matéria com a Maria Eduarda, a Clara e a Thielly, alunas da Escola Técnica Liberato Salzano da Cunha, em Novo Hamburgo, fiquei curioso com o projeto científico que reutiliza a fibra do caroço da manga, transforma em bioplástico e faz a diferença para as inúmeras embalagens que, jogadas no lixo, levarão muito tempo para se decompor. O experimento provou ser útil para serviços como lanches e, depois de usados, em três semanas, absorvidos pela natureza. O que era observação caseira, tornou-se solução para um dos grandes problemas da atualidade.

Não é sem motivo que as estudantes chegaram à final do prêmio nacional de ciências. As meninas tiveram que se esforçar muito para estar no meio de tantas iniciativas inovadoras como o sistema de irrigação alternativo de baixo custo; combate aos carunchos; extratos vegetais e biofilme orgânico; descastanhador môsa (não tenho nem ideia do que seja); pulseira alarme; reabilitação pulmonar alternativa; sistema solar de purificação de água; reaproveitamento de resíduos orgânicos para a produção de biogás e tubete agrícola de bioplástico a partir de blendas de nanocelulose.

Se você não entendeu alguns destes nomes, não importa. Também não entendi. Importa que existem jovens motivados por autênticos educadores, fazendo a diferença no que se refere ao seu futuro e pensar novos caminhos para a humanidade e o planeta. Investem as inteligências e os recursos que conseguem colocar à disposição em olhar para o outro de forma solidária, em áreas que passam por alimentação, segurança, saúde - cuidados com as pessoas e com a “casa comum”, a Terra. Em meio a perspectivas difíceis, um sopro de esperança para a melhora de vida de suas comunidades.

A experiência que as alunas passam vai marcar as suas vidas. Premiadas ou não, mostraram para seus colegas e para a sua vizinhança que o laboratório (não somente no sentido físico, mas de vida) que passaram na escola é, exatamente, onde podem acertar ou errar, mas não podem desistir. Fazer com que sintam que vale a pena (motivação) é papel do professor/educador, que não tem somente a preocupação de passar o conhecimento científico, de forma decorada, para atender a uma prova, mas alcança o horizonte por onde se vislumbra e se chega ao atendimento das demandas sociais.

“Respostas para o amanhã” não é apenas um projeto escolar desafiando estudantes a colocarem a massa cinzenta para funcionar, além da fronteira curricular. Pode ser uma perspectiva de saída da pandemia. Serão muitas as dificuldades, em especial para grupos sociais mais pobres. O “amanhã” nunca é tão longe que se possa postergar a decisão de dar novo sentido à vida. Abraçar uma causa é sempre o jeito de não olhar apenas para as próprias fragilidades, mas a compreensão de que meu pequeno mundo - físico, mental, espiritual - é, sim, o começo de uma significativa resposta!

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Refugiados e o sínodo: um missionário da esperança

Lesbos é uma ilha grega no nordeste do mar Egeu. Localizada em ponto estratégico entre países do Oriente Médio e a Europa, acabou sendo ocupada por refugiados que fogem das perseguições políticas, étnicas, religiosas ou, até, da fome, nos seus países. Cinco anos depois que o papa Francisco, junto com o patriarca ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu I, esteve na área, num dos momentos mais delicados desta crise humanitária, o pontífice volta a programar viagem à Grécia, na qual quer visitar os campos de refugiados de onde levou para o Vaticano três famílias.

A viagem acontece pouco tempo depois que Francisco abriu o maior processo de consulta democrática da história da Igreja Católica, por meio de um sínodo, que lançará bases para o futuro da instituição. Serão dois anos de consultas, espaços de reflexão e debates abertos a fiéis do mundo inteiro, começando em 10 deste mês e seguindo até outubro de 2023. O tema proposto é “por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. A sinodalidade, ou como é dito na consulta para “caminhar juntos” é uma expressão relativamente fácil de ser dita… mas difícil de ser praticada.

E o papa sabe disto. Desde que lançou sua proposta de uma “Igreja em saída”, na exortação apostólica “A alegria do Evangelho”, sofre muito com a ala conservadora da instituição que, silenciosa e persistente, vem conseguindo colocar de lado o espírito do concílio Vaticano II. Passados 60 anos, Francisco sente que é tempo de recuperar uma caminhada baseada em princípios evangélicos, com uma doutrina social capaz de lhe dar respaldo para as cobranças que faz no âmbito religioso, mas também no mundo da política, da economia e das relações internacionais.

O sínodo é um jeito de arrumar a casa. Mal comparando, é como uma família que vai viajar, mas precisa, antes, deixar tudo organizado. Se apenas uma pessoa fizer isto, demora muito tempo, mas se o grupo trabalhar unido fica mais fácil e melhor, podendo, depois, usufruir o prazer do convívio. Mesmo que toda a comparação seja manca (e é sempre preferível caminhar mancando do que não caminhar…), é a forma de dizer que, depois da crise do coronavírus, a Igreja, sob o comando de Francisco, tem uma oportunidade de mostrar a sua face de irmã responsável e solidária.

Lesbos e o sínodo são partes de um grande esforço de Francisco para renovar o rosto da Igreja. Mantendo as marcas da sua idade e a capacidade de expressar o que lhe vai no coração, que se transforma em solidariedade e esforço em caminhar junto com a humanidade, que vive suas alegrias e tristezas. Nas rotas por onde passam os migrantes ou por onde se dão as grandes discussões da sociedade, há uma figura que dá norte à embarcação, mesmo em meio às tormentas. Alguns até já colocaram salva-vidas, acreditando que, se não for feito como querem, o desastre é iminente…

Outubro, para cristãos católicos, é mês missionário: apresenta Jesus em missão e desafia seguidores a se desacomodar, sem proselitismo, nem deixar de falar o que viram e ouviram. Num Mundo cansado de falsos profetas, espetáculos midiáticos e contratestemunho, Francisco não cansa. Com 85 anos, possivelmente tenha mais dois ou três anos de atuação, quem sabe cinco, mas deixa sua marca: anda pelas periferias físicas e existenciais, toma nos braços - e por isto mesmo é condenado - suas dores e suas causas. Refugiados e o sínodo, o Mundo já tem o seu missionário da esperança!