domingo, 27 de fevereiro de 2022

O rangido dos freios na noite da saudade

Ainda estou acordado quando o ônibus que faz a linha Py-Crespo passa por minha casa, depois das 11 horas da noite. Ele faz o seu tradicional rangido de freios para deixar vizinhos e moradores dos condomínios que ficam próximos. Sons que evocam outros tempos em que não se tinha muitas alternativas e o deslocamento para trabalho, estudos, passeios e viagens era o transporte coletivo. Já naquele tempo se discutia a falta de horários; a sujeira nos veículos, obrigados a passar por ruas sem calçamento; a lotação nos horários de pico e o atendimento feito por cobradores e motoristas.

Mas também criavam-se rotinas, com hábitos estabelecidos no contato com um grupo de pessoas que fazia o mesmo deslocamento diário e dos quais se conhecia uma parte da história: quem recentemente começou a trabalhar, mostrando o nervosismo dos primeiros dias; aqueles que estavam grávidos e recebiam o primeiro filho, com o cansaço e a faceirice estampados no rosto; as novelas do dia anterior, contadas como se as cenas fizessem parte da rotina da família; os torcedores que não resistiam a uma zoação, mas que também se encaramujavam quando seus times perdiam.

No início dos anos 80, recém-formado em Jornalismo, trabalhava na Assessoria de Comunicação da Diocese Católica de Pelotas e na Rádio Universidade. Meu transporte era o ônibus, com o grupo de conhecidos de sempre esperando a condução das 8 horas, incluindo as conversas sobre mau tempo, ruas interrompidas e o futebol. Às 13h30m, era a vez da turma do fundo. Jovens mais ou menos da mesma idade que subiam na entrada da Vila Silveira e costumavam ficar na parte de trás do ônibus, mais vazia e com maior chance de conversar. Bons papos, saudosas confidências, muita deitação…

Esperar o ônibus, nestes horários, era um ritual, pois tinha a turma que trabalhava por perto mas batia ponto para conversar um pouco. Um grupo de rapazes ficava na calçada em frente ao armazém do seu Guido, com suas motos, esperando as namoradas embarcarem e, depois, saírem em direção aos seus trabalhos. À noite, atento ao ônibus das 11, sabendo que conhecidos se recolhiam às suas casas. E, embora “reclamações” de vizinhos, ouvir a buzina dos motoqueiros conhecidos voltando ou trazendo as namoradas, especialmente das escolas noturnas, como a Escola Técnica.

Sempre tive pena do pessoal que morava no fundo da vila Silveira, região próxima aos banhados e de residências mais pobres, onde hoje está o bairro Quartier. Caminhavam mais de um quilômetro para pegar o ônibus. Isto quando não havia chovido, o que esburacava a avenida 25 de Julho (então conhecida por “Barbuda” – anteriormente parte do corredor das tropas) e, então, era necessário ir até a rua Santa Clara. Os horários não eram bem definidos e se ficava à mercê da boa vontade dos motoristas, rezando para que, ao chegar na esquina, o ônibus já não tivesse passado...

A linha se tornou circular e o seu Manoel, aposentado, embarcava no ônibus em direção ao bairro para uma volta e fazer “excursão”. Quando me aposentei, o pai havia morrido e, numa ocasião, fiz o mesmo percurso. Muita coisa mudou, mas, em certos horários, quem embarca parece que vai a uma festa. Como ele dizia: “vou para Pelotas!” E, nas lembranças, eu ia dar uma volta na praça, comprar no mercado, comer um pastel no paradouro em frente à prefeitura, pagar contas no antigo Banco do Brasil… O rangido dos freios acomoda meus sonhos e são ecos alimentando a saudade de bons tempos, que já se foram…

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Educação: um outro tipo de preconceito

Uma das muitas dívidas sociais que já aparecem e que vão se acirrar quando (e se…) a pandemia passar se refere à educação. Os dois últimos anos não são a causa dos nossos muitos problemas nesta área, mas acirraram as deficiências, especialmente, na atividade pública. A escola, como lugar privilegiado para o ensino e referência social, cultural e das relações humanas, foi dos primeiros ambientes a serem abandonados à própria sorte. O futuro dos pequenos cidadãos – crianças e jovens - entrou na fila onde se privilegiam espetáculos futebolísticos e campanhas eleitorais, por exemplo.

Há muito tempo, educadores reivindicam a transformação destes espaços em lugares onde as aulas convencionais sejam parte de um todo, olhando para as necessidades básicas das crianças, desde a sua alimentação e higiene, primeiros valores, até o acesso a esporte e cultura. Uma forma de preservar a integridade daqueles que, em muitos casos, ficam sob o olhar atento de um diretor, um professor, um funcionário, podendo impedir casos de agressão ou, como se deu recentemente, de que, na ausência das aulas, a permanência em casa levasse alguns ao espancamento e à morte.

Igreja Católica lança a Campanha da Fraternidade, abordando o tema da Educação. Com o lema “Fala com sabedoria, ensina com amor”. Vive, também, o tempo da Quaresma e a mobilização sinodal. Tenho dúvidas se a instituição tem “pernas” para enfrentar três frentes diversificadas e necessitadas de tanta atenção, não apenas em discussões acadêmicas, mas prática pastoral de inserção nos meios mais carentes. Educar para a fraternidade e o bem comum responsabiliza a todos pelo processo de evangelização e é desafio que precisa de quadros que a Igreja não tem.

Num tempo de tantas carências, é difícil fazer com que crianças e jovens vejam sentido no processo educacional se não encontrarem educadores que os ajudem a vislumbrar caminhos. Uma linguagem inadequada, assim como espaços e professores despreparados não é propriamente um elemento motivador para que vejam na escola um lugar onde delinear seu futuro. Infelizmente, a rua se transformou em lugar de maior atrativo, respondendo mais às suas perspectivas de vida. A pandemia apenas aguçou o fosso existente entre as classes sociais e o seu acesso aos bens elementares.

A Igreja Católica também tem problemas nesta área. O processo de catequese está longe de auxiliar no discernimento, por exemplo, do que se celebra em torno da “mesa da Eucaristia” (o ágape), quando as crianças, muitas vezes, nem sabe o que é isto, em suas casas; não está acostumada a compartilhar, porque não tem espaços de interação social (o lúdico); não sabe cuidar da casa comum, porque não tem acesso a um cantinho de jardim ou horta onde se encante com a vida que surge da terra. Vê histórias de solidariedade nos livros que não encontram eco na vida real...

Muito se falou de que a educação é o espaço de oportunidades para todos. Infelizmente, também neste caso, há privilégios e preconceitos. A pandemia pode ser o tempo oportuno para repensar a educação formal e a que deve ser feita na família, igrejas, sindicatos, associações. Triste, mas, em muitos casos, a luta pela sobrevivência minou o direito a uma perspectiva de vida. Valores básicos, como a liberdade, perde-se na vala onde, na volta às atividades presenciais, centenas de alunos estão longe dos bancos escolares, porque necessitam auxiliar os pais a buscar o sustento da própria casa…

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Faustão na Band: para relaxar e “ouvir televisão”

Ainda não tínhamos televisão em casa, mas já havia uma no Seminário, que se assistia às quartas (imaginem, o show da Derci Gonçalves, hoje considerada desbocada!); aos sábados, apresentação de auditório, muito tempo comandada por Moacir Franco; e, no domingo, Sílvio Santos dominava, das 11 da manhã às 10 da noite. Encerrava com os quadros “Porta da esperança” e “Boa-noite, Cinderela”. Por bom tempo, o “homem do baú” esteve ausente da TV Tuiuti (que era a filiada da rede Globo, em Pelotas) e o reencontrei quando morei em Porto Alegre, já dono do Sistema Brasileiro de Televisão – o SBT.

Muitos quadros da televisão vieram do rádio e, como em alguns casos, ainda hoje, “é televisão para se ouvir”. O mesmo aconteceu com noticiários e o futebol, assim como o humorismo. Esquetes (que são pequenas peças, normalmente para o riso) saíram de programas como “A turma da Maré Mansa”, da rádio Globo, diretamente para os humorísticos então apresentados em programas onde surgiam figuras como o Jô Soares e Chico Anísio. Apresentadores, narradores, comentaristas e artistas tiveram que vencer o vício do rádio para se adequar ao novo ritmo, onde a narrativa tem seu ponto forte na imagem.

O sucessor do Sílvio Santos foi, sem dúvidas, o Faustão, que, dia 1º de janeiro, reapareceu na Band TV. Cerca de 45 minutos de um programa especial querendo uma nova proposta de entretenimento, agora em todas as noites da semana, com quadros, alguns já manjados e poucos que podem ser considerados novos, estrutura bem montada, grande quadro de profissionais, mas… sem o glamour da sua antiga casa, a Rede Globo (que tenta imitar), com seu potencial de sedução no que se refere a artistas de primeira linha e experiência na área. A impressão é de que há mais pobreza de recursos, mas muita disposição e liberdade de expressão envolvidas.

O homem do “ô loco, meu!” e “obrigado pela sua audiência e sua paciência” ainda se recupera dos problemas com a saúde. Sem deixar de ser falante e provocador, amarga uma separação litigiosa que o impediu de voltar a trabalhar durante todo o ano passado, enquanto ainda tinha contrato com a “vênus platinada”, que o impedia de pisar em outra televisão, até 31 de dezembro de 2021. A Rede Globo que o afastou repentinamente das tardes de domingo, parece que levou um susto tão grande que, meio tonta, ainda não descobriu o rumo para os improvisos nas tardes de final de semana, menos com o caldeirão e bem mais com o domingão…

A Band TV tem jornalismo de boa qualidade, no geral e no esportivo. No entanto, quem sabe por uma falta de projeto, até hoje não encontrou seu caminho. O noticiário nacional, às 19h30m é dos melhores, na sequência do Band Cidade RS. Nos últimos tempos, forte campanha em nível nacional catalisou o envolvimento de entidades sociais e artísticas para enfrentar o problema da fome no Brasil. Ultimamente, seus esforços têm sido dedicados a angariar recursos para atender às populações desassistidas, que ainda amargam as consequências das enchentes, na Bahia e em Minas. Neste momento, os problemas enfrentados em Petrópolis, no Rio de Janeiro.

Faustão de segunda a sexta é como se tivéssemos um programa com o gosto de domingo todos os dias. Ainda sem explicar a que veio a dupla que lhe dá apoio: o filho João Guilherme e a jornalista Anne Lottermann. Para uma televisão com índices de audiência baixíssimos, bate de frente com o jornalismo e novelas das demais emissoras, em especial, da Globo. Briga boa para muitos, como eu, que cansaram das desgastadas fórmulas e se apela para o streaming em busca de algo diferente. Acompanhar programa de entretenimento, com variedades, não é novidade nas grades das emissoras comerciais, mas se coloca como boa alternativa para relaxar e, apenas, “ouvir televisão”.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

A violência cultural do machismo

Discutir certas questões pode parecer supérfluo e desnecessário. Ou, então, que não merecem prioridade e se posterga, com o típico “empurrar com a barriga”… Este é o problema quando se quer falar de machismo. A discriminação sexual nem sempre é explícita, mas pode ser detectada em certas falas e comportamentos, que se tornaram rotineiras, até mesmo “naturalizadas”, aparentam ser inofensivas, mas que demonstram o fato de que está mais perto do que se quer reconhecer: na própria família, na vizinhança, entre amigos ou no ambiente de trabalho.

O escritor Ticiano Osório sentiu na pele, de onde menos esperava, que “o machismo começa no parquinho”. Em artigo, contou a experiência das filhas. Salientou que seu lugar de fala é como pai de meninas que já sentiram “o gosto amargo do machismo cotidiano”. Não houve violência física, mas a anulação enquanto mulher, no acesso a brinquedos públicos, onde meninos se julgaram no direito de passar à frente. Explica: “e tendo que é de grão em grão que se destrói a autoestima das meninas e se constrói a realidade de abuso, silenciamento e desprezo enfrentada pelas mulheres”.

O tema é amplo e o terreno pantanoso… podendo ser usado contra, especialmente, o sexo feminino, mas também aqueles (as) que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Recentemente, anúncio de rádio e televisão falava a respeito da violência que sofre a mulher, com as desculpas esfarrapadas de sempre: “ela provocou”, “não sabe o seu lugar”, “ela tava a fim, sim, não queria reconhecer!”, “com aquela roupa, ela queria o quê?” E o perigo de que a acomodação, por problemas financeiros, pressão psicológica ou medo de agressão disfarcem mais um crime...

Na mesma ocasião, falavam a respeito das mulheres que são chamadas a fazerem política. O clamor por uma maior participação feminina levou a que se abrissem vagas, mas não que se reconhecesse o direito de manter sua identidade. E são violentadas quando precisam se masculinizar para encontrar espaços nas máquinas partidárias, serem objeto de expressões supostamente carinhosas ou gestos de intimidade que não autorizaram. Ou, ainda, quando os “colegas” de espaços políticos julgam-se em condições de “auxiliar” as colegas, “traduzindo” para os demais aquilo que tentam expressar.

O preconceito somente é vencido pela educação. O próprio Ticiano lembra a obra de Robert Fulghum onde resume o necessário para que se respeite o outro: "compartilhe tudo", "jogue dentro das regras", "não bata em ninguém", "coloque as coisas de volta no lugar", "não pegue as coisas dos outros", "peça desculpas quando machucar alguém", "quando sair, cuidado com os carros", "dê a mão e fique junto" e "o peixinho dourado, o hamster, o camundongo e até a sementinha no copo plástico, tudo morre, e nós também". E, finalmente, acrescenta: “respeita ‘as mina’!”

violência cultural do machismo acontece porque se teve gerações em que a formação tinha a predominância do sexo masculino. Que ainda está entranhado em ambientes onde a mulher não sabe ou não consegue exercitar a sua própria autonomia, muitas vezes policiada por pais, maridos e filhos. Fazer o justo equilíbrio não é apenas a substituição de um jugo pelo outro, mas a parceria e o respeito que criam um ambiente de corresponsabilidade. O lugar de identidade de cada um acontece quando se pratica algo elementar, a gentileza: o encontro do olhar de carinho e de respeito do outro.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Vozes do passado: memórias e sonhos

A franquia “The Voice” faz sucesso ao apresentar talentos adultos, já quase geriátricos e infanto juvenis. Não sou de acompanhar apresentações em horários comerciais da televisão, porém uma seleção sempre é retirada dos melhores momentos, assim como do “Canta Comigo”, versão brasileira do formato britânico negociado pela All Together Now. Chama a atenção que os dois formatos (no primeiro entre três e cinco jurados e, no segundo, cem profissionais podem levantar e aprovar o candidato) têm versão juvenil, onde a emoção é forte e o envolvimento também.

Nas “férias”, com mais tempo para navegar no YouTube, descobri como são feitos os programas em outros países. Há uma massificação do que é a indústria de produção dita cultural, com interpretações que seguem o convencional, mas também resgatam compositores que fugiram aos chavões a que se está acostumado. Caso da Argentina, onde começaram a quebrar tabus pelo título: não é o “The Voice Argentina”, mas “La Voz Argentina”. E muitos dos “cantantes” se inspiram no cancioneiro revolucionário e amoroso que esteve presente, especialmente, no século passado.

Para quem quiser ouvir, está lá, nos arquivos do YouTube. Ano passado, destacou-se Francisco Benitez, 22 anos, ganhador da edição. Trabalhava numa cooperativa de eletrificação e atendia o meio rural. Com grandes dificuldades de fala, não tem o esteriótipo de cantores latinos, de galã, sem demérito, está mais para integrante de grupos “mariachis”. Mas, quando solta a voz… O repertório foi de Mercedes Sosa: “Cambia, todo cambia” e “Como la cigarra”, a Luiz Miguel, “Hasta que me olvides”... A voz afinada, bem postada, com interpretação que não tem nada de exageros teatrais…

Seguidamente falo a respeito da “bênção” que as novas tecnologias trouxeram. Quem quiser olhar pelo outro lado vai encontrar uma caçamba de motivos para declarar seus malefícios… porém… quando se olha para estes tempos bicudos da pandemia, em que se está vivendo há quase dois anos, é preciso dar-se conta de que foram exatamente elas que diminuíram o impacto do isolamento social. Aprendemos a conviver pelas redes da internet, com a falta que faz o contato físico, mas com a possibilidade da proximidade visual e auditiva, que, de alguma forma, diminui as perdas.

Nos últimos anos, confirmou-se a “aldeia global” cantada por McLuhan, nas décadas de 60 e 70, e que conectaram continentes e países, tornando possível o acesso ao lixo do consumismo universal, mas, também, permitindo chegar aos mais remotos vilarejos e conhecer o que resta de suas culturas. Mais ainda, se disponibilizam arquivos de áudio e de vídeos de parte do século passado, com riqueza de imagens, vozes que fizeram história e canções que embalaram muitos dos nossos sonhos da adolescência e juventude. Um tempo de ouro, em que éramos felizes e só agora viemos a saber…

Assistir ao “La Voz” adentra a palcos argentinos, chilenos, mexicanos... ressoando tangos, boleros, contestação e amores perdidos. Não é regra, pode ser exceção, mas também no Brasil jovens e crianças interpretam melodias que fogem à sofrência ou ao “bate-estaca”. Quem for atrás pode ter uma certeza: não se contenta em assistir ao que se faz hoje e tem a oportunidade de reviver memórias, que levam a um túnel de lembranças e acalentam muitos sonhos. O que foi se perdendo no caminho é sempre a perspectiva da vida que dá um jeito de se renovar…

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O estigma que se chama pobreza

Era um cruzamento de rua e o menino viu o pai xingar o mendigo que se abrigava embaixo do viaduto; o outro estava com a mãe no carro quando um senhor de idade, negro e mal vestido se aproximou, o suficiente para que a janela fosse fechada; a menina desviou o olhar do joguinho com o qual brincava no banco detrás quando o irmão mais velho buzinou acintosamente para a senhora e a filhinha que puxavam a carroça de lixo reciclável. Todas estas reações são preconceituosas e já têm nome: aporofobia, o medo e aversão a pobres e marginalizados, que aumentam nas ruas.

Estudos recentes mostram que a aporofobia não acontece apenas com quem está em situação de rua, como pedinte ou morador de áreas com
uns
. Muitos funcionários que exercem tarefas de limpeza e conservação de espaços públicos já sentiram na pele a aversão por parte de quem, por ter uma situação financeira melhor, acha-se “superior”. É o caso do pessoal que varre as ruas, parques e jardins, que, em muitos casos, se sente silenciado socialmente, não merecendo atenção sequer para as saudações banais, como um “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, um reles “e aí?” ou “olá!”

O padre Júlio Lanccelotti coordena a Pastoral do Povo de Rua de São Paulo. Entrou na mira de quem, como dizia Caco Antibes, no humorístico “Sai de baixo”, “detesta pobres!” As manifestações incluem a negativa de dar esmolas e a colocação de empecilhos para que as pessoas se abriguem embaixo de pontes. O ódio ao religioso se acirrou quando este tomou uma marreta e começou a destruir paralelepípedos instalados sob um viaduto. Agora, está na Câmara dos Deputados um projeto que impede técnicas de construção hostil e que restrinjam o uso do bens público.

Por outro lado, o uso de máscaras durante a pandemia fez aumentar o número de suspeitas de pessoas que tenham feito pequenos furtos, especialmente em lojas de shoppings. O perfil: homem jovem, negro e desempregado. A simples aparência já é motivo para um olhar de reprovaçãoO triste é que, muitas vezes, quem aponta supostos culpados são atendentes que estão em situação “melhorzinha” porque, neste momento, conseguiram um emprego. Mas que, no limiar de uma situação financeira que demarca a pobreza, estariam muito próximas dos supostos meliantes.

O preconceito é o negacionismo de uma cultura. Não se nasce com aversão a uma raça, religião, sexo, idade ou nível social. Se bebe no seio da família e do grupo em que se vive. É como certas doenças ou vícios: é fato. Precisa ser tratado. Existe e está mais presente na realidade social do que se deseja reconhecer. Maquiar a realidade é um jeito perverso de encobrir as omissões de cada um com aqueles que sofrem com o preconceito. O sonho da raça dos melhores deu no que deu e ainda hoje se discute que tipo de sociedade gerou um Hitler. Será que a História não ensinou uma lição?

Pessoas não desaparecem apenas porque se quer. Medidas paliativas fazem com que migrem. As “limpezas” - para esconder a incompetência em resolver problemas sociais - são propostas para que cidades não apresentem esta chaga e o quanto parcela da população deseja viver em devaneios... Os problemas sociais e econômicos que se vivem não têm solução imediata. Ser pobre não é opção… mas também não precisa ser um estigma. Do que se vê nas ruas, oportunidade, educação e saúde pública são eixos que não podem faltar quando se almeja uma sociedade que, de fato, seja cidadã.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Natal: uma boa razão para se morrer...

Histórias vividas podem ser tão incríveis que, em muitos casos, a realidade supera a fantasia e deixa no limiar entre a concretude e a imaginação. Foi o que se deu com Eric Schmitt-Matzen, então com 60 anos. Para trabalhar nas festas de Natal, vinha ajustando seu perfil físico e, hoje, é reconhecido como o retrato vivo do Papai Noel. Vivendo no Tennessee, Estados Unidos, o forte da sua atuação acontece no final do ano. Entretanto, é comum pessoas ligarem pedindo a sua presença em eventos ou em situações especiais, antes mesmo desta data. E foi o que teria acontecido…

Eric contou ao jornal Knoxville News Sentinel que recebeu chamada urgente de uma enfermeira, já sua conhecida que trabalhava em um hospital. Isto foi pelo mês de outubro e a profissional da saúde contava que era uma criança de 5 anos, com poucas esperanças de vida. Manifestou que seu maior desejo era conhecer o Papai Noel. Lembraram do Eric, que também prestava serviços comunitários. Prometeu vestir a roupa adequada e, em seguida, estaria lá. Recebeu como resposta que não havia tempo e bastava colocar o que estivesse à mão, pois o menino não duraria muito

O dublê de Bom Velhinho conta que encontrou a criança muito fraca, parecendo dormir. Ao vê-lo, esboçou um sorriso. Teve tempo de sentar na beira da cama e perguntar: “ouvi dizer que você vai perder o Natal? Quer saber? Você é meu elfo número um, meu favorito!”. Um sorriso iluminou o rosto do menino que teve forças apenas para murmurar: “sério?”. Emocionado, Eric deu o presente que os pais haviam lhe alcançado. Ele abriu com muito esforço, depois, ergueu-se na cama e lhe deu um abraço. Ao ouvido, ainda murmurou: “dizem que vou morrer, como vou saber para onde vou?”

Tempo suficiente para responder: “quando chegar, diga que é o duende número um do Papai Noel e você vai entrar”. No abraço e troca de palavras, a criança, com câncer, faleceu. Os pais assistiam do lado de fora e, quando o soltou na cama, a mãe entrou correndo e gritando: “não, não, meu Deus, agora não!” E completou: “entreguei a eles o seu filho e fui embora imediatamente. Isso me afetou tanto que me perguntei se deveria voltar a me fantasiar de Papai Noel”. Depois que o Sentinel contou a história, em 2016, ela foi repercutida pela Global News e diversos meios de comunicação.

Os americanos gostam de checar informações. Muitos dados não conseguiram ser confirmados e alguns meios deixaram de publicar a história. É lema do bom jornalismo: dificilmente, apenas uma fonte é suficiente para amparar uma boa matéria. Especialmente, nos detalhes. Neste caso, poderiam ser os profissionais que estavam de plantão, ou até mesmo os familiares. Mas os profissionais da notícia também sabem que existe, na sua profissão, a proteção à fonte. Em muitos casos, não apenas por questão de segurança, mas para resguardar o direito à privacidade.

Foi do que se valeu o substituto do Papai Noel. Nas entrevistas, Eric contou que foi experiência única, que desejava e acreditava que deveria compartilhar, no do espírito da festa, resguardando a identidade da criança, pais e enfermeira. Passaram-se seis anos e o acontecido é recontado por esta época. Envolve criança, “mistério” e imaginação. Se não aconteceu com o Eric, não pode ter acontecido com outro? Natal é tempo de alegria. Na essência, a capacidade de fazer alguém feliz e dar sentido à vida… se não for este o caso, não pode ser, apenas, uma boa razão para se morrer?