domingo, 30 de agosto de 2020

Pós pandemia: vivendo a própria vida


Sábado à tardinha, estava com o texto pronto para a crônica do final de semana. Tinha uma foto na cabeça do Grupo de Jovens que existiu na paróquia Santa Teresinha no início da década de 80. Era aquela na praia, com cerca de 20 jovens, mas não conseguia encontrar. Meu socorro acabou sendo a Lucinha que, em seguida, enviou duas, uma delas de um grupo de "pelados", num daqueles passeios pelo meio rural, no verão, que tinha o pai da Pininha, seu Osvaldo, ou o Geraldo encarregados da condução - o caminhão de trabalho. A outra, de uma participação da turma numa Missa com o saudosos padre Palmor que, creio, foi realizada na cancha de bocha do seu Aldo, o pai da Regina Martins, na Vila Silveira.

Já estava encerrando o papo com a Lucinha quando me falou da vontade de fazer um grupo de watsapp para chamar a galera. Prontamente, disse que era parceiro e que estava caindo de maduro para a gente reencontrar pessoas que nos marcaram tanto e de tantas formas. Dito e feito, naquela mesma noite recebi o primeiro convite e já foram chegando as mensagens de diversos pontos da cidade, do estado e do Brasil. Senhor! Era gente que não acabava mais. Falei de um grupo básico que se reunia, mas também foram se agregando outros e renovando o grupo que fez história.

A interação levou a que se recordassem passeios - como os que fazíamos ao final do ano, especialmente para a serra, onde as irmãs nos acolhiam, assim como algumas famílias, com o perigo de uma despensa, na parte debaixo da casa, aberta e onde havia a fartura de grustule - ou cueca virada - salaminho, queijos - e aí começa a se tornar perigoso - porque também tinha vinho e a tal de graspa, que a maior parte não conhecia, de um buque suave, mas capaz de derrubar alguns dos nossos melhores levantadores de copos, não é verdade, família Andreazza?

Da gurizada colocando banca - nos dois sentidos - nas festividades da Independência, na avenida Bento Gonçalves, onde se vendia cachorro quente e tinha aqueles que abasteciam, os que atendiam, assim como, os mais corajosos, que faziam plantão noturno para garantir a segurança da barraca. O dinheiro ajudava no caixa para o passeio, facilitando a vida de todos nós que, quando muito, tínhamos uma pequena ajuda dos pais ou algum bico de serviço. Mas que não impedia que se andasse por encontros de jovens, apresentações, passeios de bicicleta - uma atividade à parte, já que muitos, eu incluído, não tínhamos preparo físico e, na volta, sempre havia uma corda salvadora que auxiliava, puxada por aqueles que já trabalhavam na construção civil ou em serviços que exigiam maior esforço.

Não tenho como citar todos, mas fui lembrando da musicalidade da Lucinha, da Hilda e do Antônio (e daqueles que só faziam barulho na volta, afinados, ou não); dos comentários brincalhões do próprio Antônio e da Dilce; dos puxadores de atividades como o Geraldo, o Aldir, o Reinaldo, o Sérgio, o João Paulo... os mais organizados e sensatos, como o Ricardo, a Daisa, a Cecília, Percília, a Ivone.. Como disse, a idade já não permite que lembre de todos, mas não impede que tenha, por todos, um grande e saudoso carinho.

Foram desfilando fotos do passado, mas também dos filhos, dos netos, com as expressões que se criaram - os do grupo eram: gebuns, mas podiam ser gebundianos, as crianças, quando começaram a aparecer, eram os gebundinhas... Quem diria, em tempos de pandemia, encontramos as condições apropriadas para um reencontro depois de 40 anos... Além de rever os registros e até ter medo de comparar com as carinhas da atualidade, ainda se pensa em fazer uma reunião virtual, quem sabe uma live, pois a partir do momento em que comecei a comentar com vizinhos e amigos o que a Lucinha deflagrara, muitas foram as manifestações de saudade e vontade de rever cada um deles e delas.

Umas das frases que se transformou em chavão é de que, em tempos de crise, aflora a criatividade (ou, pode ser, dizem outros, a nulidade). Com mais tempo em isolamento social, as redes sociais são uma válvula de escape para a comunicação. Mais do que isto, um espaço privilegiado de reencontros. Não são necessários grandes motivos para rever amigos e conhecidos, apenas a vontade de voltar a conversar com as pessoas. Vai passar, e quem sabe possamos fazer o que todos acabam dizendo: um reencontro presencial. Quem sabe? o melhor, neste momento, é aproveitar, exatamente, deste momento. Afinal, a vida é feita assim: de oportunidades, mesmo que seja de lembranças e afetos, dois elementos fundamentais para que se continue tocando e vivendo a própria vida!

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Envelhecer na pandemia: "eu sou você, amanhã"

Meu caminho, ao meio-dia, quando busco almoço, é curto e certo para encontrar, ao menos, três figuras: o seu Manoel, na cadeira de rodas, em frente à casa, próximo da grade, cumprimentando os passantes; o seu Paulo, com seus 95 anos, numa poltrona mais retirada, mas com bons olhos, enxerga a gente de longe e acena. Também o seu Ceará, que está em frente ao buteco onde atende e concentra conhecidos e bebuns... Ainda a dona Braulina e diversos outros idosos, conhecidos e amigos de longa data.

Foi neles que pensei quando se fala no que acontece e pode acontecer com aqueles desta idade em tempos de pandemia. A maior parte mostra-se consciente e recolhe-se ao isolamento, atendidos por familiares e amigos. Infelizmente, nas vilas, tem casos em que o idoso mora com filhos, muitas vezes netos, e o cuidado tem que ser redobrado, pois convivem idades em que o vírus pode ser pego, mas ficar assintomático; ter uma gripe leve e ainda os da terceira idade, onde os estragos podem ser maiores.

Os noticiários dão conta de que há muitos aposentados vítimas do coronavírus, deixando famílias desassistidas. Embora os auxílios prestados pontualmente a famílias carentes, o problema do desemprego não é de hoje e, em muitos casos, a renda que mantinha e mantém o sustento básico é do salário de um ou dois aposentados. Assim como os benefícios dados aos idosos do meio rural, que tiraram da miséria um significativo número de moradores do interior, tanto em nível familiar, quanto reforçando o caixa de pequenos municípios.

Mas, nos últimos meses, também se mostrou um outro lado perigoso: o da violência contra idosos, em especial nas famílias de baixa renda, onde as dificuldades financeiras e a aglomeração de pessoas num pequeno espaço de moradia causa problemas. Também há o fato de que as pessoas já não sabem o que fazer para ocupar o seu tempo, resolver seus problemas e encontram consolo na bebida alcoólica. Alguns tendem a ficar violentos, com todas as consequências em relação a mulheres, crianças e idosos...

A pandemia tem mostrado a preocupação de filhos e responsáveis, mas também o quanto existem pessoas loucas para se livrar dos seus velhinhos. A conversa de valorização da experiência é, em muitos casos, somente conversa. Mesmo instituições religiosas e sociais não sabem bem o que fazer e, na prática, buscam crianças e jovens adultos, esquecendo que o público que deveria merecer especial atenção é exatamente o da terceira idade e doentes, mais próximos do seu encontro com a Eternidade...

Políticas do imediato atendem ao que acontece aqui e agora, mas não permitem que as gerações se sucedam com os cuidados necessários para quem, hoje, pode - não somente de forma financeira - estar presente, sendo útil no dia a dia. Uma boa perspectiva é a máxima em que um idoso pode dizer a um jovem: "eu sou você, amanhã!" Ou, se quiser, lembrando o chamado efeito do retorno: "cuida de mim, hoje, amanhã vais querer que alguém te cuide..."

domingo, 23 de agosto de 2020

Juventude: uma promessa de eternidade

Final da década de 70, início da década de 80. Vindos de diversas vilas, jovens se reuniam na Igreja Católica de Santa Teresinha, formando o grupo Em Busca de Um Novo Sol. Aos domingos, antes da Missa - a reunião era na sequência - ficávamos no entroncamento da avenida São Jorge e a Vinte e Cinco de Julho (popular Barbuda de outros tempos) aguardando amigos que, em muitos casos, levávamos uma semana para encontrar, mas já para combinar programas para a tarde e a noite, além de comentar os bailinhos do sábado...

O mais interessante é que, de longe, reconhecíamos cada um dos meninos (as meninas sempre foram mais discretas), pela roupa, aqueles que começavam a usar cabelos compridos, ou mesmo pelo jeito de andar. Alguns eram mais tímidos, outros mais ousados e já tinham uma bossa diferente (ainda se usa esta expressão?), para nós, lançando moda. Não esqueçam que não existiam as redes sociais e os modismos das revistas, que faziam sucesso, então, levavam mais tempo para serem conhecidos.

Televisão, então, nem se fala. As transmissões em nível nacional engatinhavam e, em muitos casos, recebíamos as novelas uma semana depois. Pouco antes disto, uma das maiores preciosidades daqueles tempos - Jovens Tardes de Domingo, que acabou em 1968 - passava, óbvio, no Rio, aos domingos, mas, por aqui, chegava no sábado seguinte, à tarde, pela então TV Gaúcha! Isto não importava, a gente não tinha muita pressa e quem, de alguma forma recebia informação antes, acabava ditando moda. Ou, como se dizia então, fazendo bossa.

Estava próximo ao portão, quando dois homens vieram em minha direção. Logo reconheci o mais velho como sendo um dos muitos companheiros de grupo jovem. Me apresentou o mais novo, seu filho e o rapaz foi logo dizendo: o velho sempre conta muitas histórias do tempo de vocês. Prontamente, o pai afirmou: velho é a tua mãe. Retrucou o mais novo: vou contar pra ela. Voltou o mais velho: não me ferra. O interessante não era o que foi dito, mas como foi dito. O olhar era de sorriso e cumplicidade. Pai e filho, amigos e companheiros.

Brinquei que eles pareciam da mesma idade. O mais novo continuou provocando que o pai não era muito velho, mas que tava mal conservado. Retrucou que não ia dar uma resposta por respeito a mim. Mas foram contando histórias, sendo que o pai - representante comercial - confessou que, quando pode, tirou o menino de debaixo da saia da mãe e passaram a viajar juntos e fazer pescarias, pelas quais ambos são apaixonados. 

Vê-los assim me deixou mais leve, mesmo em tempo de pandemia. Quando se foram reparei que o mais velho caminhava, agora, normalmente, mas o jovem tinha um gingado que me levou àqueles dias no cruzamento em frente da Igreja: a bossa que identificava o pai, agora estava presente no filho. Não creio que seja genético, mas sei que pode ser afetivo: o afeto que perdura e faz a diferença - ficam as lembranças e a saudade. Todos os tempos até podem ser bons, mas a juventude tem um gosto de eternidade que não se cumpre. O melhor é pensar como o grande Mario Lago: "fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo. Nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Um dia a gente se encontra".

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Um mantra e a "bala de prata"

A discussão da semana - dentro do quadro da pandemia - foi o retorno ou não às aulas presenciais. Com todos os seus desdobramentos, especialmente no que se refere à segurança de crianças e jovens. A preocupação é com a própria saúde e a possibilidade de se transformar em portadores do vírus, contrariando medida que se mostrou sensata, entre as primeiras tomadas pelos administradores: o cessar da circulação deste público evitou uma onda maior de propagação.

Em tempos de escolha dos dirigentes municipais, a discussão vem contaminada pelo viés eleitoral. Não é um assunto digesto para prefeitos que exercem o cargo e pleiteiam a reeleição. O tema é sensível, havendo desde aqueles radicalmente contrários por "n" motivos (como falta de condições de higiene e distanciamento, especialmente nas escolas públicas), até pais que veem a escola como um lugar para onde direcionar seus filhos quando precisam trabalhar ou já não sabem o que fazer com eles em casa...

A educação a distância ainda engatinha e mostra que os professores não foram preparados e vão levar um tempo para dominar a técnica. Assim, se o ensino presencial já beirava o caótico, o que é feito pela internet está longe de atender os requisitos básicos de uma educação que alcance o mínimo necessário ao estudante. Na maior parte dos casos, os professores são esforçados e buscam ser criativos para sensibilizar alunos e pais. Mas até isto tem o seu limite.

Por bom senso, não creio na volta às aulas presenciais este ano, até comprovar a existência de uma vacina. Mesmo as escolas privadas sabem que não podem garantir plenamente a segurança dos alunos. A cultura da prevenção pelo distanciamento e cuidados com a higiene não estava presente em hábitos adquiridos em casa e, sequer, nos ambientes de ensino. Difícil acreditar que, de uma hora para a outra, vão conseguir manter-se afastados, utilizar permanentemente máscaras e lavar seguidamente as mãos.

Autoridade da Organização Mundial da Saúde afirmou que não se tem uma "bala de prata" para acabar com o vírus. Infelizmente, a grande maioria dos jovens não tem nem ideia do que estava falando, ao fazer esta analogia. Isto faz parte da memória afetiva dos mais velhos, que se divertiam entre gibis e filmes das sessões matinés dos cinemas, aos domingos. Personagens do bem que só podiam matar lobisomens, bruxa e outros monstros com uma delas.Ou o Zorro que usava balas de prata no combate à tirania.

Um dos argumentos é de que os estudantes vão perder um ano. Pergunta que não quer calar: já não perderam? Duvido que se possa falar, seriamente, em compensação do aprendizado. Antigamente se dizia que repetir um ano podia ser um "reforço"... A "bala de prata" da vez é repetir o mantra: "vai passar", mas é melhor não expor crianças à infecção e lamentar perdas. Num momento em que o maior desafio é o aprendizado do que vão guardar da experiência que tiveram e o exemplo que receberam!

domingo, 16 de agosto de 2020

Esperando a primavera

Não sei o nome daquele arbusto...

Confesso que aí está uma das minhas grandes dificuldades:

Sempre gostei de flores, mas nunca fui bom de memória com seus nomes.

Não me preocupei em descobrir a sua identidade.

Sempre foi "a muda da comadre Ibraíma",

A tia que morava no interior e que, periodicamente, visitávamos.

E a referência que fazia memória à parente, bastava.

 

Veio de alguma visita ao interior de Canguçu ou São Lourenço,

Por onde se espalharam tios e primos.

A mãe gostava de andar pelos arredores das casas vendo o arvoredo e as flores.

Sempre havia um lugar reservado e fechado que era um jardim,

Distante do acesso aos animais do pátio...

Difícil quando se voltava sem um galho, uma muda, um enxerto...

 

Ficou ali, junto ao pé da Camélia - a rosa de inverno -

e a laranjeira do céu - sem ácido e reservada para a mãe e meu sobrinho.

Nestes tempos em que a natureza já guarda os embriões da primavera,

encorpa seus talos e adiciona pingentes coloridos.

Onde ainda se pode ouvir a voz que recomendava:

Quando as flores caírem, pede pro seu Otílio podar...

 

A poda e a primavera,

a morte e o renascimento,

a entrega e o ressurgir de galhos e brotos...

 

Abençoada e carinhosa lembrança de outros tempos, de outras vozes...

Vozes que vão ficando na memória, diluídas em feições que já esmaecem...

E ainda libertam a natureza que cumpre todas as estações e marca os nossos rostos:

os sulcos que se ressecam no verão, em lugares em que os anos vão sendo amontoados;

desprendem as folhas no outono, trocando a cor rosada e a pele firme;

adormecem no inverno, anunciando que a finitude é possível;

Envelhecer é passar por todas as estações, sabendo que, enfim,

A vida segue seu rumo, alimentada pela esperança de uma sempre renovada primavera!

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Sobreviver: uma questão de persistência

Quando ouvi a notícia de que o Brasil passou das 100 mil pessoas mortas pela infecção do coronavírus, meu primeiro pensamento se voltou para as famílias das vítimas: em cinco meses, sofreram com o momento em que souberam que seu parente positivou, entraram em angústia quando foi hospitalizado e tiveram o pior desfecho. Com as notícias de que um bom número se recupera, mesmo que muitas vezes com sequelas, sempre restava a esperança de que o final não fosse tão trágico e não participassem deste que já é um placar mórbido e macabro.

Notas burocráticas de políticos e administradores de plantão não alcançaram a dimensão de toda uma tragédia anunciada... e concretizada. Disseram o óbvio, sem chegar ao coração de uma sociedade que, por ter sido mal-educada, não responde aos mais elementares apelos por conscientização e postura que confronte a pandemia. Seu desconhecimento é estimulado por aqueles que ainda não entenderam toda a dimensão do problema e geram dúvidas e incertezas, especialmente na cabeça das pessoas mais simples e menos esclarecidas.

Mas não é só: a má educação alcança outros níveis, de melhor poder aquisitivo, que olham o entorno do próprio umbigo e não abrem mão de pequenos e mesquinhos privilégios: passeios de carros por praias e avenidas, compras em centros tumultuados, reuniões de todos os tipos (de jantares entre amigos a jogos de carta). Aqueles que viajam e trouxeram vírus na bagagem, agora deixam que tome o rumo das vilas e bairros onde, com menos recursos e informação, as pessoas balançam entre a necessidade de preservar a vida e a manutenção de uma fonte de sustento.

Meu segundo pensamento foi para meu sobrinho neto que positivou. Dez dias de angústia, maus sonos, maus sonhos, muitas orações, a vontade de falar com ele a toda hora... mas sabendo que somente o preocuparia, assim como à própria mãe. A tristeza e a prece: "Senhor, já enterrei minha mãe, meu pai, meu irmão, minha irmã, um sobrinho neto. Não me apronta mais esta... já não quero enterrar mais ninguém, agora é a hora de que, no momento oportuno, outros me enterrem!" Negativado, faz com que se entenda melhor o que outros estão passando.

Pelos espaços que tenho nos meios de comunicação e redes sociais, pedi que as pessoas respeitem a decisão da Prefeitura de Pelotas: por três dias, cessem todas as atividades e se tente conter o vírus. Não sei se vai dar certo, mas o executivo municipal foi eleito para propor à sociedade o que julga ser o melhor para este momento. Conheço administrações desde o prefeito Ary Alcântara e nenhuma passou por uma situação semelhante. Portanto, é preciso depositar confiança e colaborar para que este número não aumente ainda mais...

Postagens contrárias ou questionadoras é aposta na contra informação: temos uma sociedade polarizada entre aqueles que ainda participam da vida política e uma parcela que não se interessa mais pela organização social e quer, apenas, sobreviver. No olho do furacão, sobreviver é uma questão de persistência... e repetir como Buda: "a mudança é inevitável. A perda é inevitável. A felicidade reside na adaptação em sobreviver a tudo o que é ruim!"

domingo, 9 de agosto de 2020

Um artista cantando para um herói

O teatro está vazio. Sobre o palco, duas cadeiras. Ao centro, as câmeras de vídeo. É possível ouvir os passos de Paula Fernandes que chega e se apronta para cantar. Uma pequena reverência ao que a organização do evento chama de homenagem àqueles que estão à frente, na linha de fogo do atendimento à população que se contamina com o coronavírus. Tudo instalado, é o fã quem chega para um show intimista, em que cada cantor se apresenta para um único espectador: o ídolo com apenas um dos seus seguidores...

Na imensidão dos espaços vazios, uma porta se abre na entrada do teatro e aparece Enderson, enfermeiro, trabalhando em Paraisópolis, arredores de São Paulo, que é recebido com palmas pela cantora. Emocionado, apenas murmura um "brigado", "brigado", antes de sentar para ouvir, com exclusividade, músicas como “Pássaro de Fogo” e “Eu Me Perdi”. Como diz o slogan utilizado pelo promocional que foi ao ar pela televisão e agora está disponível no YouTube e nas redes sociais: "um artista cantando para um herói".

O projeto "Frente à frente" é do Mercado Livre e beneficia a Cruz Vermelha e a ONG Banco de Alimentos de São Paulo. Paula Fernandes afirmou: "fiquei muito feliz com o convite para homenagear heróis como o Enderson, que vêm arriscando as próprias vidas para cuidarem de todos nós. Foi um encontro emocionante e espero que o público também possa sentir a mesma emoção que tivemos ali, juntos". E foi mesmo, o registro foi da apresentação da cantora apenas com voz e violão, para uma conversa amena e descontraída, onde Enderson confessa que estava afastado de casa há 90 dias para atender a uma parcela carente da grande metrópole.

Ele registra: "é um sonho, não esperava mesmo..." E ela retorna: "estou aqui, em nome da minha música, em nome do amor..." e começa a cantar. Faz aquilo que muitas pessoas que sofrem acabam registrando: em muitos momentos em que nos faltam as palavras, às vezes apenas pedaços de uma música ficam gravados em nossas lembranças e servem como bálsamo para a nossa dor. As lágrimas que, muitas vezes, se derramam quando se ouve uma canção que chega lá no fundo é aquela que nos torna mais leves, carrega consigo muitos dos nossos pesos e das nossas tristezas...

As palmas da cantora e do fã ressoam estranhas no espaço vazio... Mas a plástica da imagem é ideal para uma apresentação musical e não para o diálogo que, claro, em alguns momentos, sai truncado e difícil pela situação emocional: ele acossado pelo receio com a própria vida e a da mãe, já idosa, da qual está separado para poder trabalhar. Paula Fernandes diz: "a gente procura palavras neste momento, mas é difícil, né". Mas nem seriam necessárias as palavras. O local, a música, os dois juntos fazem um apelo pela solidariedade, a simpatia e a empatia...

Lá pelas tantas, mexe com o emocional de todos nós ao registrar que é preciso dar "viva aos abraços e aos beijos que a gente não dá. E que muito em breve a gente vai poder dar." Também é verdade. Talvez seja a falta que mais demonstra as nossas carências neste tempo: receber e dar carinho a quem se ama - as nossas referências - a razão para encontrar caminhos que nos levem para um depois da pandemia. Para os braços e abraços de quem se deseja o aconchego e, enfim, respirar e suspirar... fazer a vida ganhar o seu pleno sentido!

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

As vítimas econômicas da pandemia

Semana passada, num dos momentos mais fortes da crise com o coronavírus, notícias da economia chamaram a atenção: na contramão de papeis que se desvalorizaram nas bolsas de valores, laboratórios envolvidos em pesquisa por vacina viram suas ações disparar ao anunciar a possibilidade de que este ano (no máximo em 2021) haja antídoto para controlar a pandemia. Não bastasse, bancos apresentaram seus balanços com rendimentos históricos menores, mas que não podem ser desprezados...
Seguidamente, economistas falam a respeito do Produto Interno Bruto (PIB), responsável por calcular o que um país produz e pode distribuir entre os seus cidadãos. Que, na verdade, não funciona, porque trata do técnico e esquece do humano, em seus cálculos. Esta semana, em sua coluna, Tulio Milman cita o livro Economic Dignity, de Gene Sperling. Mostra as possibilidades para que se tenha perspectiva de um novo normal. Uma das discussões é sobre os pilares da dignidade econômica.
Reivindica Sperling: "a capacidade de cuidar da família sem privações econômicas que impeçam de viver momentos significativos e as maiores alegrias da vida. O direito de realizar seu potencial e de buscar um propósito. O poder de trabalhar e de contribuir, sendo respeitado e sem sofrer humilhação ou dominação". Num tempo em que o número de desempregados aumenta (registro de quem ainda procura), uma vaga é, literalmente, um sonho, que, em muitos casos, vira pesadelo...
A crise é um tempo para a sociedade preparar o novo normal. Infelizmente, em futebol, somos técnicos; religião, mais do que o papa; economia, superiores aos especialistas; e, em políticas, palpitamos e nos ofendemos (com dose de orgulho!), ao dizer: "viu, eu avisei..." A humildade não é uma das nossas características. O que está vencendo a luta contra a pandemia em outros países é a capacidade do povo de ser disciplinado e atender ao que é solicitado por dirigentes, com o apoio da ciência.
A solidariedade que está presente em diversos meios de comunicação é um gesto de boa vontade que, em algum momento, vai se exaurir. No entanto, pode ser, também, um tempo para as instituições que cuidam da caridade se organizar para resistir e persistir no pós crise. Filmagens e fotografias de atos de atendimento à população mais pobre passam, mas os necessitados continuam lá, precisando de quem os atenda sem registro de selfies e postagens em redes sociais...
Para os indiferentes à dor das vítimas econômicas da pandemia, queria escrever como J.J. Camargo: "e, por favor, sem nenhuma crítica, siga em frente com a indiferença que lhe trouxe até aqui. Existem, e merecem todo o respeito, aqueles que optaram por cuidar apenas das suas próprias vidas. Mesmo com a evidência do quanto é monótono e solitário de ver o ocaso de quem escolheu envelhecer com os olhos secos."