quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

A violência que se repete

A virada do ano, com a mudança dos governos em nível de País ou de Estado criaram muitas expectativas, mas não chegaram a empolgar os brasileiros. Os ânimos acirrados dos tempos de campanha se reduziram àqueles que se aninharam numa ou noutra candidatura e, depois de empossadas as novas autoridades, há um tempo para que possa, na prática, dizer a que veio.
O primeiro reconhecimento é de que a máquina pública tornou-se obsoleta e não atende às principais demandas da população. Enquanto se paga impostos de primeiro mundo se têm serviços em áreas como a educação, saúde e segurança de terceiro, quarto, quinto... O que chama mais a atenção, no momento, é o da segurança.
A mudança do comando político alvoroçou as lideranças criminosas, especialmente de dentro dos presídios. O Ceará - e seus mais de dez dias de atentados - é a ponta de um estopim aceso num confronto que promete se generalizar. Autoridades despreparadas e afoitas em dizer a que vieram apregoaram aos quatro ventos suas estratégias. A pressa em mostrar serviço, anunciando medidas ainda em gestação tem o efeito contrário: prevenir e açodar o adversário. Cutucaram a onça com vara curta...
As políticas empregadas até então se mostraram ineficazes. Apresentar números de melhoria é deboche. A população vê e ouve os números mas, na prática, na rua, percebe que continua sendo quem paga por uma máquina ineficaz, assim como sofre por ser aquela que, não tendo um serviço público, precisa se valer de uma atividade privada se quiser manter a própria segurança ou a de seu patrimônio.
As jogadas de marketing encontram uma população indiferente e, quando são efetivadas, enfrentam uma estrutura subterrânea perigosa, diante de forças policiais despreparadas. Os rompantes dos discursos provocam reações violentas que poderiam ser previstas por serviços de inteligência e abortadas. Infelizmente, os números são insuficientes se as autoridades não conseguem criar uma sensação de que há normalidade nas ruas e até mesmo idosos possam circular com seus pertences.
A violência se repete. Recentemente, uma pessoa mais velha disse: "durante muito tempo vi isto se passando com os outros e pensei que nunca aconteceria comigo. Agora, sei que mais cedo ou mais tarde isto vai se dar com meus filhos, meus netos, ou, pior ainda, vai se repetir..." O ano recém está iniciando mas, do pouco que se espera dos governos é que faça o básico. Não há desenvolvimento de um país que não passe por segurança pública... Mas também por educação, saúde, transporte...

sábado, 12 de janeiro de 2019

Cantadores de Reis

Retornávamos ao interior de Canguçu, nas férias, e fomos contemplados com "Ternos de Reis". Na véspera, homens saiam em grupo, de casa em casa, levando sanfona e viola, fazendo a "cantoria" e conseguindo o compromisso de algum animal para consumo no dia seguinte. Éramos crianças e, com as mulheres, ficávamos em casa. Ao longo da noite, ouvíamos a tia dizendo: "estão na casa do fulano..." Ou: "já chegaram a tal casa..." No dia seguinte, uma grande festa foi armada para receber aqueles que traziam a carne prometida e o suficiente para comemorar muitas festa dos Santos Reis.
Moradores de cidade do interior apresentaram esta festa de forma diferente: percorrem ruas e praças fazendo apresentações em público, mas também em casas agendadas. O que recolhem abastece o estoque de alimentos do hospital, com o compromisso dos visitados de fazer doações ao longo do ano. A ideia do diretor da entidade manteve a cozinha com o necessário para atravessar a crise que a saúde enfrenta no Estado.
A história dos Santos Reis - Melchior, Baltasar e Gaspar - aparece de passagem nos Evangelhos. Sequer seus nomes são citados na Bíblia usada pelos católicos. Traziam lembranças do Oriente. Como disse o papa Bento XVI: "davam testemunho da divindade que consideravam haver no menino, com o ouro se referindo à Sua realeza; o incenso, à Sua divindade; e a mirra, à Sua humanidade".
O que ficou de sua busca foi exatamente isto: a sua busca. Trilharam longo caminho, regiões difíceis, por um desafio: ficar frente à frente com Aquele que mudaria os rumos da História. Caminhando deixavam sua zona de conforto, desacomodando-se e aceitando que podiam superar suas próprias expectativas.
Semana passada repórter apresentou matéria de canoagem. Precisava aprender a lidar com a canoa, mas também com a Natureza... Passada uma semana, julgava-se pronta para encarar o percurso. Cheia de moral partiu... E, próxima do final, virou, numa cena entre o trágico e o hilário... Reconheceu: a soberba levou a que pensasse ter tudo dominado. Não era verdade, há sempre o que se aprender com a Natureza!
Motivar a própria fé ao longo de um novo ano é percurso onde a soberba não pode ter lugar. Já não se ouve na distância cantadores de "Reis", mas há pessoas próximas - idosos e doentes - precisando ouvir "música" que dê sentido às suas vidas. Uma delas se chama "presença", em cuidados ou acompanhamento. Ato tão significativo quanto a estrela que aparece no caminho dos viajantes e aponta para a manjedoura, confirmando que toda a estrada tem sentido quando, no final, se depara com a Esperança do Mundo!

A novela do gato

Voltei a ser noveleiro. Nem lembro a última novela que havia assistido. Quando começaram as chamadas para o Sétimo Guardião a minha curiosidade foi despertada. Ouvindo seu autor, Aguinaldo Silva, dava para perceber que era bem mais do que um folhetim das 9 horas. Seu enredo teria ação, intriga, humor e uma pitada de mistério...
Tive que reaprender o ritmo dos capítulos, porque, no início, ficava irritado pois parecia que as coisas não se desenrolavam. Mas, tomou jeito de uma história que tem lances pitorescos, divertida e para o entretenimento, que traz consigo, como uma boa parábola, a intenção de discutir uma das nossas maiores riquezas: a água.
Serro Azul tem o núcleo tupiniquim que recebe os almofadinhas de São Paulo. Os da terrinha querem o progresso com a internet e retransmissora de televisão... os aventureiros querem uma fonte de água poderosa, que pode revolucionar o mercado dos cosméticos, tornando milionários quem nela colocar as mãos.
Há diferença na apresentação do enredo. "Bons" e "maus" tem vantagens, mas não é um folhetim em que os bons apanham durante tanto tempo que perde a graça torcer por eles. O bem somente triunfaria nos últimos capítulos. Neste caso, os bons são bons sem serem ingênuos e os maus tem reveses ao longo dos capítulos.
Os guardiães protegem a fonte. O gato - Leon - é um ser mistura de animal com homem, já foi guardião e, por ter tido uma filha, foi amaldiçoado. Em raros momentos, volta à sua forma original. Pode ser em definitivo se Gabriel - o sétimo guardião - aceitar esta condição. Mas, que depende da mocinha - Luz da Lua - pois para aceitar precisa encontrar razão na seita secreta e abrir mão do seu amor...
Complicado... Para um antigo noveleiro é uma sensação agradável reencontrar com uma das poucas produções nacionais que podem ser chamadas de populares pois, diferente de outras - como a música que se chama popular - chega a todas as classes sociais. Ouvem-se comentários dos primeiros capítulos pelas redes sociais, nos bancos de ônibus, nas filas de supermercados...
Numa época em que nem todo o guardião é santo miniaturiza um pouco do Brasil em solo de Serro Azul. As boas intenções dificilmente são claras e a potencialidade daqueles que se envolvem nem sempre é suficiente para evitar que a ganância fale mais alto e se dê para poucos aquilo que a Natureza alcançou para todos. Em tempos de novas administrações públicas é ver se todo o discurso de bom moço não tem segundas intenções... na calada da noite, quando todos os gatos acabam sendo pardos!

2019: dê uma razão para alguém ser feliz

Uma peça publicitária: idoso solitário anda pelos corredores desertos de um condomínio. Em cada porta deixa pendurada na maçaneta uma lembrança, sem que se dê conta de que está sendo observado pelo síndico, que resolve retribuir. Organiza um evento com os moradores que vão saindo "sorrateiramente" de seus apartamentos, enquanto o presenteador observa pelo olho mágico...
Abre a porta e vê, a seus pés, um enfeite para árvore de Natal. Segue a procissão dos que, ao sair, tinham algo em suas mãos... Chega a um espaço de convivência onde os moradores o aguardam e saúdam como o responsável por terem se unido, dando sentido à motivação da publicidade: "juntos para transformar vizinhos em família." Na árvore falta apenas um detalhe: a sua bolinha "mágica", a bolinha da solidariedade!
Muitas são as peças que emocionam apelando para sentimentos de paternidade, filiação, amizade, disponibilidade para o outro... Mas, as mesmas produções que enchem os olhos de alegria também despertam em muitos idosos, doentes, pessoas deprimidas, angustiadas a sensação de que não fazem parte da mesma realidade.
Chega-se à virada do ano coberto de boas intenções. Como sempre, pensa-se em perder peso, voltar a estudar, reencontrar um amigo do qual se afastou... Mas o tique-taque das horas e a virada das folhinhas do calendário levam junto as boas intenções... Resta o dia a dia com o seu peso, sua rotina e a volta à vidinha de sempre!
Conversando com uma amiga reforcei a ideia de que a vida não propicia uma experiência em que todos os momentos são felizes, mas sim de que o sopro, o respiro diante da mesmice são exatamente os momentos que não permitem que se desanime, especialmente quando se tem uma chance de dar uma razão para alguém ser feliz.
Hoje ainda se bate muito na questão de "manter a família", um grupo grande, com gente que se reúne alegre e feliz. A "evolução" dos tempos levou a que muitos se afastem; que "amigos" não sejam tantos quanto se gostaria; ou que nossos grupos e comunidades já não respondam ao estilo mais próximo de convívio.
Nas ruas, vejo muitos "maiores abandonados" andando pelas calçadas "fresteando" a ferragem, o mercadinho, a fruteira... buscando motivos para bater um papo. Pessoas carentes? sim, como todos nós. Mas, como o vizinho do apartamento, tomam a iniciativa de deixar uma lembrança de porta em porta, transformam vizinhos em amigos. Dão uma razão para se fazer alguém, nem que seja por um instante, experimentar o direito de ser feliz!

"Jesus, amado, feliz aniversário!"

As terras eram estranhas. A casa era estranha. Maria acompanhou o grande amigo de Jesus, João. Ainda na cruz, havia dito para o discípulo: "eis aí tua mãe!". E para a mãe: "eis aí teu filho". Registra a Bíblia que desde aquela hora haviam ficado juntos. Ajudaram a propagar a palavra que havia anunciado. Passaram por muitos lugares até chegar, enfim, a uma encruzilhada do Mundo. Ali era o lugar para onde convergiam os propagadores da Boa Nova,  que estavam em todos os lugares conhecidos.
Apesar da idade, fazia todas as lides da casa. Pouco falava, escutava muito daqueles homens e mulheres que vinham sôfregos por saber como era "o mais lindo, o mais brilhante, o mais inteligente homem que já passara pela terra: seu filho, Jesus de Nazaré!" E era para Nazaré que voltavam suas lembranças quando percebia que dos seus não restara mais ninguém.
Durante um tempo recebeu o jovem Lucas que, a pedido de Paulo, queria escrever a vida de seu filho. Passaram muitas tardes sentados à sombra de uma árvore até que precisasse se recolher, cuidar da casa e fazer a refeição para quem estivesse de passagem. Cada lembrança era uma marca em seu corpo. Fechar os olhos era rever as imagens de uma criança que foi crescendo de forma absolutamente normal.
O coração da casa era a cozinha. Lugar onde  iniciava a rotina do dia, ainda antes do raiar do sol. Era preciso reavivar o fogo, remexendo as cinzas e colocando gravetos e algumas aparas que José trazia da carpintaria. Era o momento em que podiam conversar sossegados. O menino estava dormindo e preferiam não fazer barulho para que descansasse mais um pouco.
Algumas lembranças eram tão vivas que até doiam... Era somente uma questão de tempo. Jesus intuía que estava chegando a hora do almoço. José, em seguida, viria da carpintaria, abriria a porta e liberaria o caminho. Precisava ter cuidado, porque entre a cozinha e a área de trabalho do marido haviam dois degraus no chão batido, perigosos para as mãozinhas e as perninhas que não tinham noção de espaço e se jogavam na certeza de que alguém haveria de recebê-lo.
Ao chegar, José colocava-o com a barriga sobre seu braço e o agitava em torno de sua cintura, enquanto um sorriso de puro êxtase emoldurava aqueles olhinhos amendoados em meio aos cabelos que teimavam em ficar despenteados. Depois, erguê-lo e jogá-lo para o ar. Uma, duas, três, quantas vezes os braços do pai aguentassem, ou o pedido fosse repetido, em meios a balbucios que já antevinham as palavras que, em breve, fariam a felicidade de quem esperava que fosse o primeiro a ser chamado de “mamãe”, “papai”, ao invés de um “tá”, “aham!”, ou outros tipos de gemidos.
Depois o tempo passou muito rápido. E lembrava dos momentos em que ouviu atenta as palavras do filho. Foram lindas. "Bem-aventurados..." e fez com que toda a história do seu povo fizesse sentido. Listou tudo aquilo que haviam conversado desde que um rabino estivera em sua casa e se encantara com o menino que fazia perguntas e, quando necessário, corrigia a falta de lógica entre o que era dito pelos entendidos e o que estava nas Sagradas Escrituras.
Lucas queria detalhes. Se encantou ao ver que as lembranças eram vívidas. Afinal, quando o evangelista encontrou Maria, ela estava com mais de 70 anos e se passaram cerca de 30 da morte de Jesus. Maria cruzava suas mãos sobre seu colo, perdia o olhar no horizonte e recitava de memória momento a momento, palavra por palavra, sentimento por sentimento dos quais havia sido testemunha fiel.
Levou um bom tempo para entender que presenciara um momento ímpar na História, e que ajudara a tornar mais “humana” a presença de um Deus que não se contentou em ser atemporal, mas encarnou num tempo em que a mulher, a criança, o doente, o estrangeiro eram os excluídos. Paradoxalmente, ele foi educado por uma mulher, privilegiou o olhar de uma criança, acolheu pessoas que se deterioravam com a Lepra e mostrou que aqueles que muitas vezes não seguem a cartilha dos religiosos têm um dedinho carinhoso na acolhida de Deus.
Foi da irmã Ivanete que ouvi pela primeira vez a expressão "Jesus, amado". Mas não posso deixar de pensar que Maria também a usou. Muitas vezes encantada, outras em tom de correção e, já no silêncio da ausência, sentindo muita saudade. Celebrar o nascimento do Filho viria a ser uma das grandes festas da Humanidade. Mas, naquele momento, era apenas uma mãe que desejava reencontrar na memória o carinho que recebeu. Exatamente como hoje: "Jesus, amado, feliz aniversário!"