segunda-feira, 29 de junho de 2020

O novo normal: um ressurgir pela educação

Um dos motivos para assinar meus textos como "educador" é chamar a atenção de quem está ou esteve na área e tem esperança de que nem tudo está perdido. Sabendo das lutas, muitas vezes inglórias (condições de trabalho, salários, participação efetiva), mas também de que, em momentos difíceis, não se pode apenas desistir. Inspiro-me naqueles e naquelas que, até o último suspiro, acreditaram que tinham algo a aprender... e podiam se tornar "facilitadores" para que outros também aprendessem.
Exatamente esta é a diferença de quem se propõe a ser um educador, ou apenas se contenta com a profissão de professor. O segundo tem uma série de conteúdos e estratégias que pode repassar a um ouvinte, na maior parte das vezes passivo, mas não se julga comprometido. O primeiro lida com a vida do seu aprendiz, ajuda a encontrar e apontar caminhos... Sabe que mais do que aquilo que transmite pelos diversos meios, iniciando pela oralidade, vai se dar pelo exemplo e coerência de vida.
Podem - e devem - ser educadores: figuras públicas, religiosas, políticas, do ensino, da comunicação... Em tempo de crise, tornam-se referências, lideram naturalmente pela capacidade e carisma. Não deixam de ter suas identidades políticas e ideológicas, mas por seu espírito público são capazes de ver que a "política" no seu sentido maior, tem que prevalecer. Os interesses da população - neste momento, as menos favorecidas e marginalizadas - precisam receber orientações confiáveis e corretas.
Não foi o caso do presidente Bolsonaro, no uso da máscara protetora. Se expôs e acabou expondo pessoas que se sentiram seguras porque ele é o "presidente", alguém de quem não se espera uma atitude temerária. O pior para o processo de educação é que seus advogados entraram na Justiça para que fosse liberado. Como assim? Se uma figura pública erra - até o presidente - precisa ter humildade e voltar atrás, mas não partir para o confronto apenas porque se julga "diferente" ou melhor do que os demais.
Infelizmente, exemplos de "deseducação" estão nos telejornais: ministro da educação falseia seu currículo ao dizer que é "doutor", sem de fato o ser; o anterior engana serviços de imigração de um país para escapar do que poderia ser uma prisão no Brasil; e um conhecido advogado resvala em todas as explicações que dá quando parte do desconhecimento de uma testemunha que embaraçaria a família do presidente, até - a mais recente - de que o escondeu para que não fosse assassinado...
Vendo ex-alunos, hoje, na comunicação, fico preocupado: configura-se a máxima de que "na prática, a teoria é outra..." jogando para o ar padrões da ética e da moral. Um novo "normal", o pós-pandemia, com certeza, vai deixar todos nós mais pobres, mas se há um lugar de onde poderemos ressurgir é pela educação, dando às crianças e jovens não apenas a perspectiva do que consumir, mas em que transformar a própria vida.

domingo, 28 de junho de 2020

Minhas "noviças" não podem voar...

Em isolamento social, uma das primeiras atividades do meu dia é a caminhada, acompanhado das irmãs do Convento de San Tanco (de San Juan, Porto Rico). Melhor explicar: simulo o exercício num aparelho elíptico, enquanto assisto à série A Noviça Voadora, onde uma religiosa chega à casa que mantém escola para crianças pobres. O certo é que, como diz a abertura: o peso e o chapéu de freira propiciam a aerodinâmica necessária para que voe. E a vida nunca mais foi a mesma...
Ainda é das histórias clássicas da década de 60, quando sempre há uma lição a ser aprendida e, para os mais velhos, a certeza de que temos todo o direito de sermos nostálgicos com a vida simples que se vivia. No início da segunda temporada, a irmã Bertrille (a noviça) encontra um amigo de tempos escolares, agora líder de uma banda. O convento tem dificuldades financeiras para manter as atividades e acertam para que uma composição da irmã seja cantada e os direitos autorais revertidos para as obras assistenciais. Mas...
O que é uma balada daquelas boas de se ouvir com os olhos fechados é transformada em uma batida de rock, com a letra alterada, mais pesada e mais ousada... beirando ao erótico. Apresentada numa boate, faz sucesso, mas logo depois a madre superiora e a irmã Bertrille se negam a aceitar o dinheiro conseguido com a apresentação e faz, com seu grupo de crianças, um recital em pleno jardim, num ambiente bucólico e acolhedor, quando o empresário trata o cantor como um "herege" e acusa: "você colocou um bigode na Monalisa!".
Sem "sofrência" (não esqueça, ela pode voar) a canção diz: "eu devaneio ao observar as cores das ondas que mudas quebram no preguiçoso litoral da minha mente. É um mundo totalmente novo que vejo" (vinda dos Estados Unidos, se defronta com a pobreza). Cuidando crianças, reconhece que: "meus olhos estão no amanhã (esperança num futuro) e minhas mãos no ontem (resgatar seus pequenos). Todo o panorama é o meu espelho. Eu sou todos e todos os lugares. E é um mundo totalmente novo lá fora".
Minhas "noviças" não podem voar... Nestes tempos de pandemia, querem continuar com um pouco da sua vida anterior, inclusive com a sua ação social. Sabem que já estão mais pra noviças de bengala, do que voadoras, mas não desistem, insistem, querem se manter ativas e participativas. São as "meninas" que integram a Congregação Mariana e as Mães Cristãs. Em função de que preparei vídeos para uma palestra virtual, fui colocado no primeiro grupo e a perspectiva de um trabalho semelhante no próximo mês fez com que me colocassem também na relação de whatsapp do segundo.
As madres superioras devem ser a dona Lea e a dona Eli. Com bastante trabalho, pelo que vejo, pois elas trocam receitas de todos os tipos, partilham reflexões, fazem uma corrente de informações, executam trabalhos... Enfim, estão encontrando alternativas para a nova vida que começa agora e vai se estender para depois do coronavírus. Uma vida de pequenos e possíveis serviços e de oração. O sentido para que os voos não se deem apenas quando o corpo se ergue em direção ao ar... mas quando o espírito encontra sentido em não desistir e partilhar até do pouco de esperança que ainda nos resta...

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Educação: o custo de um ano perdido

Quatro meses depois que medidas mais efetivas foram tomadas para que a população possa se precaver do coronavírus, ainda não se tem um quadro definido do que será o pico da pandemia, o preço que vai se pagar por ele, e a sequência do que pode ser o novo "normal", nas relações pessoais, de trabalho, com a escola... Entre brincadeiras de que este ano não precisa ser contado na comemoração de aniversário - já que é um "ano perdido" - e a realidade de que é um tempo difícil, antevendo momentos mais difíceis ainda.
Tenho falado a respeito do empobrecimento da população como um todo: pela perda de emprego (comércio e indústria), de fontes de ganho (catadores, biscateiros, diaristas...), mas, também, porque estamos vendo os preços serem reajustados acima da inflação, que serve para os indexadores oficiais. Mas, na prática, não diz nada, pois o que se vê, na gondola do supermercado, é o reajuste de praticamente todos os produtos. No caso dos assalariados e aposentados, fazendo com que com os mesmos valores se compre menos.
Mas há uma outra perda que merece atenção: o processo educacional. Embora haja, aqui e ali, focos de bom ensino em todos os níveis, no conjunto da obra, o que se teve, nos últimos anos, foi um declínio de qualidade que se pode perceber tanto no público, quanto no privado. A pandemia chegou de surpresa e os orientadores pedagógicos se viram da sala para a cozinha a fim de articular um ensino a distância sem técnicos preparados, professores com conteúdos adequados e monitores para dar assistência nas residências.
Esta discussão ainda vai longe, mas o que se está fazendo - literalmente de improviso - é um arremedo de educação. Sem saber ao certo quanto tempo tudo isto vai durar, as medidas são paliativas, remendos numa estrutura que já está solapada pelo descaso e omissão de educadores e autoridades do setor. As reportagens feitas, especialmente pela televisão, mostram o quadro de moradias com um mínimo de estrutura para adequar o serviço dos pais em sistema de trabalho na residência, estudos e atividades das crianças.
Casas e apartamentos têm sido construídas como lugares de passagem e não de estadia, portanto, não há espaços ajustados para trabalho e estudo. Não é à-toa que o estresse dos últimos meses causou crise na relação entre casais, que já acumulavam problemas, e no convívio diário em espaços reduzidos explodiu em 150% de aumento nos pedidos de divórcio. A reclamação de pais que não sabem o que fazer com os filhos e, quando os deixam à vontade, não sabem o que fazer com os vizinhos que reclamam do barulho...
Responsáveis e professores sabem que é difícil competir com mídias eletrônicas e redes sociais. Em alguns casos - ainda raros - educadores fazem delas aliadas. O certo é que, pelas desigualdades sociais, alguns tem computadores nos quartos; outros amargam smartphones defasados ou não tem nada... Um desafio para quem sabe que educação não tem preço, mas a falta tem um alto custo em sentido para a vida e a realização pessoal.

domingo, 21 de junho de 2020

O silêncio e o mistério de um "amei"

Quando o Emerson (cabeleireiro) ainda trabalhava próximo de onde moro, era comum meu cunhado Roberto bater aqui e perguntar: "onde é que tá a tua irmã (a Leonice)"? Brincando, respondia: "na tenda dos milagres". Na primeira vez, a expressão dele foi de surpresa, até que expliquei: ali onde as mulheres fazem o possível e o impossível para ficarem mais bonitas... Mal sabia que, em seguida, a "tenda dos milagres" migraria para minha casa, capitaneada pela Roberta e a Renata e tendo o Pedro por mascote...
Em seguida, o Emerson também veio e instalaram-se por aqui alguns dos maiores "feiticeiros" da beleza de Pelotas. Confesso que já vi de tudo entrando e saindo daquele salão... Na certeza de que se há muito da procura pelo elemento estético, há casos em que um tapa no visual significa um novo jeito, uma nova postura diante da vida. Numa tarde de chuva, fiquei encantado com a senhora que, antes de atravessar a rua tomada por água, voltou-se e registrou em alto e bom som: "amei!"
Uma única palavra para exteriorizar tantos sentimentos. Dita das mais diversas formas, com as mais diferentes expressões e com maior ou menor intensidade, abrevia expressões que estão nos fazendo falta como "eu te amo", "te amo", "meu amor"... Neste caso, o simples reconhecimento de que um trabalho bem feito é mais do que uma atividade profissional, transforma-se num gesto de carinho, naquela conversa enquanto se está na cadeira e se faz uma fofoca, se trocam confidências, enquanto se relaxa e aproveita um espaço de sanidade mental.
Um amigo está aprendendo a ser afetuoso com o pai através do abraço. Disse-lhe que ainda faltava beijar e dizer "eu te amo". Contei das minhas pequenas vitórias ao receber o primeiro abraço e, depois, o primeiro beijo de meu pai. Uma construção difícil que se concretizou com ele já bem fragilizado. Mas que o seu período de vida não tinha sido suficiente para lhe dizer o quanto o amava... Somente depois disto passei a expressar para minha mãe. Foi um tempo especial em que poucas palavras e muitos silêncios faziam toda a nossa comunicação...
Prostituímos o sentido de palavras como "democracia", "humildade" e "amor". A primeira, ao invés de ser a defesa dos interesses da maioria organizada passou a ser suporte de atividades escusas de grupos; a segunda, que é a capacidade de reconhecer as próprias virtudes, assim como as dos outros, mas também defeitos próprios e alheios, passou a ser simulacro de simplicidade afetada. E a expressão maior das relações humanas - o amor - reduziu-se ao ato físico sexual (fazer amor) e perdeu a sua real conotação de doação, entrega, confiança.
É comum a gente escutar que um simples "amei" ou "eu te amo" é bobagem, já que as pessoas sabem e não precisam ouvir. Nada mais falso: não é somente aquele a quem me dirijo que preciso atingir. Quem está com medo de não saber usar adequadamente as palavras ou não ser correspondido é quem tem que expressar seus sentimentos. E tem medo do silêncio e do mistério que o outro abriga. Ainda tenho muito o que aprender e fazer: já disse para muitos, mas faltam pessoas que - tenho certeza - merecem ouvir um "eu te amo". E ter coragem de voltar os olhos agradecidos - em qualquer situação - e apenas dizer: "amei"! Pra que mais?

terça-feira, 16 de junho de 2020

É tempo de cuidar de quem tem fome e frio

Quando o papa Francisco fez seu apelo, para o Dia Mundial da Alimentação de 2018, talvez não tivesse noção de que dois anos depois o coronavírus iria piorar a situação que, se já era preocupante, passou a ser calamitosa. Alertou que “os pobres não podem esperar", fazendo eco ao sociólogo Betinho que dissera: "quem tem fome tem pressa" (e virou campanha nacional), preocupado com a má distribuição de alimentos no Brasil, onde 54 milhões de pessoas tem pouca ou nenhuma comida à mesa.
A citação foi usada pelo professor Reinaldo Tillmann, coordenador da Cáritas Arquidiocesana de Pelotas, que conversou comigo e com o professor Lupi Scheer numa live pelo Facebook, quando tratamos das "ações sociais da Igreja (Católica) em época de pandemia". Mostrou um quadro do que acontece em Pelotas e região em que, apenas a organização que dirige, distribuiu mais de duas mil cestas e, tudo indica, campanhas de arrecadação e distribuição ainda vão durar por longo tempo.
A chegada do inverno preocupa porque é preciso arranjar alimentação, e, também - pelos dias de frio - aumenta a necessidade de roupas mais pesadas e cobertores. Faz algum tempo que a celebração de Corpus Christi também era caracterizada pela arrecadação de cobertores, que servia como uma parte dos ornamentos e depois eram distribuídos. Este ano, a impossibilidade das procissões pelas ruas levou a que os pedidos fossem feitos pelos meios de comunicação, redes sociais e paróquias.
A frase que motiva a ação da Igreja é simples, mas carregada de sentido: "é tempo de cuidar". Durante o mês de junho serão arrecadadas doações, na forma de cobertores, alimentos não perecíveis e itens de limpeza. Mas também pode ser em dinheiro: R$ 30,00 (o valor reverte para compra de cobertas), que pode ser depositado no Banrisul | AG: 0475 | Conta: 06.026846.0-7 | Mitra Arquidiocesana de Pelotas-Ação Social | CNPJ: 92.238.138/0036-71. A Cáritas fica ao lado do Instituto de Menores, no Areal.
Para quem deseja desapegar e não tem condições de se deslocar até lá, também pode deixar nas paróquias. Nos noticiários, além de informações envolvendo a pandemia, o que mais se vê são pessoas e grupos mobilizados em auxiliar quem está passando dificuldades. Reinaldo registrou a situação difícil vivida pelas periferias e as populações indígenas para as quais dão especial atenção. Sabem que não serão a solução do problema, mas auxiliam a que, a curto prazo, se escape do frio e a fome seja saciada...
Ouvi opiniões de que "se quiser o peixe, ensine a pescar". Outros preocupados com fotos feitas nas entregas... Vale a máxima: quem não ajuda, que não atrapalhe. Não é ocasião para se discutir detalhes irrelevantes. Em tempos de crise, como concidadãos, é preciso auxiliar na busca por soluções. O certo é que o inverno ainda nem chegou e já mostra as suas garras: é tempo de se cuidar de quem tem fome e, ainda, passa frio...

domingo, 14 de junho de 2020

Pandorga: a marca de uma saudade

Passando o inverno, logo vai ser tempo de primavera. Os primeiros ventos trazem a euforia de ir para as ruas. Reunir papel de seda, pedaços de bambu, barbante - de preferência linha 10 de algodão - cola branca, ou aquela feita à base de farinha de trigo, com a ajuda dos pais...
E depois correr, correr muito até que a pandorga ganhe os céus e se torne a coisa mais linda que a gente já viu. Tem que aprender a manobrar, a lutar contra as condições da rua, especialmente do vento. Ah, o vento! Muitas vezes é mais forte e a joga para o alto, ou a prende sobre uma árvore, ou a transpassa numa rede elétrica...
Tem uma pandorga pendurada nos fios, no meio da minha rua…
Os meninos que corriam para fazê-la levantar voo, agora ganham uma despedida e seguem em bandos para as escolas… Depois, eles - jovens - partem para se encontrar no Mundo, enquanto ela ainda balança ao vento, na certeza de que ali sempre encontrarão o conforto de encontros e da acolhida…
Muitos voltaram, outros ficaram pelas estradas... Na última despedida, já restavam apenas alguns barbantes e pedaços de bambu. Mas o mesmo sentido: a vida passando não permite que se esqueça do lugar da partida. Os bracinhos que empinavam a pandorga com a certeza de levantar voo
foram ficando cansados e com passos trôpegos... Muitas vezes passaram pelo mesmo lugar que ainda tinha sabor de lembrança.
E viram outras pandorgas penduradas nos fios da rua, acalentando ou desfiando sonhos… o combustível que o vento embala e o tempo grava em cada coração… com uma marca certa: a marca da saudade!

terça-feira, 9 de junho de 2020

A hipocrisia da morte irrelevante

Organismos internacionais mostram que o foco da pandemia do coronavírus se desloca da Europa para a América e, infelizmente, tudo indica, o Brasil será o epicentro. Ainda tendo os Estados Unidos com o maior número de mortes, mas não conseguimos dar resposta adequada e vamos pagar o preço pelas disputadas políticas internas. Em muitas regiões, as autoridades de saúde não conseguiram criar e dar uma resposta rápida e eficiente para detê-lo, nem mesmo o suporte adequado a quem fica doente.
No Rio Grande do Sul, medidas de isolamento social conseguiram conter a agressividade do primeiro momento. Mas o gaúcho não consegue se manter muito tempo dentro de casa, achando que, se passou este "longo" período e nada aconteceu, já se julga "vacinado" e pronto para voltar ao "normal". Não presta atenção de que o "normal" nunca mais vai ser o mesmo e virá com a ausência - até agora - de quase três centenas de gaúchos mortos e um vírus que vai fazer estrago por muito tempo...
Pressões de todo o tipo, levaram governantes de municípios e do Estado a flexibilizarem o funcionamento de diversos setores, dentro de uma dicotomia entre saúde e economia, apoiada por vários setores empresariais, nos quais domina o pensamento de que algumas mortes são até irrelevantes diante da parada da economia. Olham para o resultado nos caixas, sem se dar conta de que a pandemia entrou no Brasil pelas classes alta e média e agora penetra as áreas mais vulneráveis.
O problema começa exatamente aí: as desigualdades socioeconômicas formam um quadro aonde parte da população não tem acesso a saneamento básico (ainda temos falta de água e esgoto nas casas), mora em condições de superlotação (barracos com famílias inteiras e mais agregados...), tem pouca ou nenhuma compreensão do que está vivendo (a noção básica de higiene praticamente não existe) e ficará exposta a um vírus que se transmite com muita facilidade, especialmente pela proximidade física.
Governos municipais funcionam com aquilo que mendigam do estado. E este tem a mesma relação com o federal. Falar em falta de investimento na área da saúde - atendimento, prevenção, saneamento básico - é repetir um roteiro que lideranças comunitárias já cansaram de fazer. Mas é necessário. Pressionados pelo susto, políticos e burocratas se movimentaram e encontraram os recursos, que precisam azeitar uma máquina que funcione nas bases, na qual a população não confia, mas precisa dela... 
Conhecida que vive em cidade da serra contou que o ex-marido vinha à sua casa sem proteção e brincava, até aconteceram as primeiras mortes... passou a usar máscara e se esmerar na higiene! Afinal, é "a dor que ensina a gemer". Confirma que apenas lamentar as mortes é hipocrisia se não formos capazes de encontrar formas de respeitar e manter as vidas, em todos os estratos sociais... inclusive a dos idosos!

domingo, 7 de junho de 2020

O pão nosso das lembranças e da necessidade

As memórias afetivas da infância têm muito a ver com pessoas, lugares e odores. Em tempos idos, em que os costumes de higiene não eram os mesmos de atualmente, até o cheiro de fumaça que muitas vezes aderia às roupas era a identidade de pessoas que passavam muito tempo próximas ao fogão à lenha, em todas as estações do ano. Ali coziam alimentos e, no inverno, era o aconchego dos familiares e amigos, muitas vezes com o pão no forno, o pinhão sobre a chapa e correndo na volta um bom chimarrão.
Dia destes, um domingo, esqueci o varal cheio de roupas na rua e, quando fui recolher, lá estava um dos cheiros quase esquecidos impregnando as peças, já que algum vizinho havia feito churrasco e a fumaça veio para a minha área. A lembrança da casa de tios, especialmente do tio Ciano e tia Toninha, com seu jeito acolhedor e carinhoso, para onde seguíamos nas férias e nos sentíamos como em nossa segunda casa, a segunda família. A comida sobre o fogão e a tia insistindo que precisávamos comer mais...
Associei com a postagem feita pelo whatsapp da comunidade Santa Teresinha, que tem a Cláudia por responsável. Contou que a ministra Clarice "visitou alguns idosos e doentes, aqueles que ela leva a Eucaristia em épocas normais, e, mesmo sem entrar, alcançou um pãozinho abençoado. Gesto de carinho e delicadeza, que trouxe alegria e consolo." E acrescentou: " a mãe tá numa felicidade que só chora. Realmente, foi de muita bênção a visita. Quando cheguei a mãe estava muito feliz e revigorada".
Em Porto Alegre, o dono de uma empresa viu diminuir a atividade de seu negócio e resolveu manter os empregados, direcionando a atividade para um trabalho com moradores de rua. Providencia roupas, assistência, sacos de dormir para minimizar os efeitos do frio. Um dos rapazes atendidos conta que conheceu o benfeitor quando andava pela rua com pacotes de massa que tinha ganho e não tinha como cozinhar. O empresário pediu a doação, levou e voltou com um prato feito.
A partir da empresa de Eventos, também consolidaram o "Rango na Embalagem", que arrecada, cozinha e distribui, além do pão, o necessário para um número cada vez maior de pessoas que entram na fila dos necessitados... Ao final de um programa de rádio, citava o papa Francisco: “a vida é boa quando você está feliz, mas é muito melhor quando os outros estão felizes por sua causa.” Pai de família, diz que é esta lição que tenta aprender todos os dias e repassar para seus filhos e colaboradores.
O pão que tem gosto de saudade daqueles que nos cuidaram na nossa infância; o pão que lembra a Eucaristia, presença do Sagrado, levado às casas com um carinho especial; o pão que minimiza o sofrimento dos desassistidos, que, também na rua, precisam sentir-se respeitados. O alimento que mais representa a nossa capacidade de acolhida. Entre as lembranças e a necessidade, a certeza de que, repartido, aumenta a nossa capacidade de viver em sociedade... e praticar a solidariedade.

terça-feira, 2 de junho de 2020

A omissão, a miséria e o coronavírus

Os números apresentados mostram que o estrago da pandemia do coronavírus é grande. Na medida em que se discute a doença, também se coloca em questão os dados da economia, com reflexos que durarão pelos próximos meses. Os governantes têm ido de declarações contundentes (como o próprio presidente) ao silêncio daqueles que estão, de fato, no enfrentamento direto e preferem trabalhar a discursar. Com histórias em que é fundamental que se entendam os aspectos de humanidade...
Em meio a tudo isto, há o quadro das famílias que começam a ter suas vidas transtornadas para sempre por perdas inesperadas, com histórias onde a lógica nem sempre é predominante: mãe e filha contaminadas e precisaram ser internadas. A primeira em grupo de risco, a segunda não. A primeira sobreviveu, a segunda não... O sentimento de impotência de quem diz não ser aquilo que se espera, que os pais enterrem os próprios filhos, havendo uma quebra da sequência natural da vida...
A técnica da Superintendência de Seguros se considera exatamente isto: uma técnica, para afirmar que "a concentração da doença em idosos (diga-se: mortes) poderia ser positiva para melhorar o desempenho econômico do Brasil ao reduzir o rombo da Previdência". Não conversou com os parentes da avó que gostava de almoços com toda a família. Acabou num hospital por conta de um problema menor. Em poucos dias contraiu o vírus. Embora a idade, ninguém acreditava, mas veio a falecer...
A médica recém formada começou a atuar na área de frente do combate ao coronavírus, atendendo pacientes do sistema único de saúde. Ao fim do primeiro plantão, pediu demissão: faltavam estrutura, material adequado e proteção. Ela tinha condições de fazer opções, mas ficaram para trás médicos, enfermeiros, atendentes que não desistiram, em muitos casos, não porque não tivessem medo e vontade, mas porque a situação de emprego não permite e sentiam o quanto se faziam necessários...
Mesmo especialistas da área econômica sabem que há coisas que não são lógicas e pode ser necessário sacrificar os anéis para não perder os dedos... Confirmando que a população vai ficar mais pobre, mas somente o sentimento de humanidade dá sentido a que se exija dos governantes que encontrem soluções reais e a curtíssimo prazo para as populações que já rondam a miséria. O problema é que resvalar para a miséria também embrutece quem sente que foi marginalizado da vida social e precisa sobreviver...
Ninguém sabe quando tudo isto vai passar, mas há um elemento: a pandemia não vai nos redimir. É precipitado definir a pós-pandemia, mas é certo que não vão acontecer milagres. A deterioração da vida social brasileira deixa marcas em gerações, com a omissão da própria sociedade. Para quem resmunga e não faz nada, vale lembrar Tiago Carossi: "não existe neutralidade na omissão; a omissão já é um posicionamento."