terça-feira, 28 de junho de 2022

Por uma cultura da solidariedade


Ryan tinha 6 anos quando a história começa. É possível que você já a ouviu, mas vamos lá: na sala de aula, a professora falou sobre a situação em que viviam crianças na África. Ficou comovido ao saber que muitas morriam de sede. Quis saber quanto custaria levar água para a região. Soube que Organizações Não Governamentais (ONGs) conseguiam por 70 dólares. Pediu aos pais, que disseram não terem condições de ajudá-lo, a não ser reduzindo gastos. Com as economias foi à sede da WaterCan para “comprar um poço”.

Teve uma notícia que faria qualquer um desistir: eram necessários 2 mil dólares para concretizar o objetivo. O menino não desistiu e passou a trabalhar para vizinhos, sempre fazendo “propaganda”. Em 1999, uma vila ao norte de Uganda recebeu o primeiro poço. Iniciou trabalho que não parou mais. Convenceu os pais a visitar o povoado. Recebido com festa, percebeu que as pessoas o chamavam pelo nome. Perguntou o porquê e descobriu que num raio de 100 quilômetros o conheciam por seu ato humanitário.

Com 31 anos e centenas de poços abertos em muitas regiões da África, o canadense Ryan Hreljac estendeu seu trabalho, através de uma fundação, aos serviços sanitários, que chegam a mais de 700 mil pessoas. Contando assim, pode parecer uma “aventura” de menino que tomou gosto pela coisa e transformou num objetivo de vida. Mas não é. Para que uma criança faça certas opções, é necessário um referencial familiar e social que lhe dê sustentação. É o binômio mais importantes da formação: “valor e referência”.

No Brasil, se discute assistencialismo com o intuito de solidariedade. Verdade. Chegou-se ao ponto em que a pobreza e a miséria, de braços com a fome, não permitem ensinar a pescar para que o cidadão consiga o sustento. Bolsões de marginalizados clamam pelo atendimento do sopão, quentinhas, cestas básicas, o direito de dormir alimentado e não acordar de barriga vazia. São muitos os “ryans” que fazem o pouco possível sem esperar – como ele não esperava – repercussão do seu trabalho de formiguinha, na mídia.

Com a pobreza tornada endêmica, se vive num país de contradições. As maiores fortunas brasileiras aumentaram, assim como políticos fazem campanhas acenando com a possibilidade de a classe média manter a cabeça fora da... água. Depois de um período de controle, hoje, mesmo com a pandemia mostrando as garras, quem tem possibilidade de consumo não resiste e quer usufruir do seu quinhão. Um negacionismo disfarçado que aponta o dedo para as classes sociais mais desfavorecidas como responsáveis.

Mudanças sociais se deram quando “as classes médias” sentiram apertar o cerco. O cerco está formado com o desvio de função, por exemplo, no processo educacional, quando pais já não esperam conhecimento, mas alimentação na escola. Uma mãe dizia: “meu filho volta com fome da aula”. Uma família que está apenas sobrevivendo... A cultura da solidariedade é valor que tem sobrenome: consciência social, o cuidado pelo outro por não haver nenhuma justificativa para a perda da dignidade humana.

domingo, 26 de junho de 2022

A saudade da cerca do vizinho

Na segunda-feira, quando já se anunciava chuva para toda a semana, recolhia a roupa e a vizinha, a Nice, fazia o mesmo. Já conversando sobre a perspectiva do tempo e os ditos do pai, o seu Manoel, de que era “hora de recolher os mijados”. A vizinha levantou os olhos, como quem diz: “tem bastante”, com uma filhinha de quase um ano e mais a roupa do marido e do menino, agasalhos para cuidar e serviço não faltava. Por sobre os muros que cercam a minha casa, é possível ver, nos dias de sol ou de vento, “as bandeiras desfraldadas” pelos varais, até o último sol da tarde.

Em tempos passados, as cercas que delimitavam os terrenos eram, normalmente, baixas e frágeis. Mais a possibilidade de impedir que pequenos animais estragassem canteiros no pátio do que a segurança do patrimônio. Os portões de saída para a rua não eram trancados e, muitas vezes, nas idas e vindas dos moleques, eram apenas encostados, se não ficavam escancarados, com uma mãe gritando da cozinha: “fecha o portão!”, quando o garoto já ia bem distante, mais atento ao jogo de bolinha de gude, taco ou futebol que já ia começar no meio da rua, junto das valetas.

Seu Dário foi vizinho por longos anos. Havia sido proprietário do bar Internacional, na praça do Colono. Muitas vezes passei por ali, indo e vindo do Seminário. Pensava contente que era torcedor do Colorado, com o qual também me identificava. Fui descobrir, depois, que os motivos não eram futebolísticos, mas políticos que levaram a homenagear a “Internacional Socialista”, de cunho Comunista. Quando chegaram na Vila Silveira, gostava de espiar pela cerca e ver se o pai estava atendendo o bar e armazém, para uma boa conversa. Se a mãe estava atendendo, voltava para casa.

Me dei conta de que as mudanças diminuíram os lugares de conversas quando entendi as suas reclamações ao levantarmos os muros no entorno da casa. Durante um tempo, ouvi de familiares que sentia dificuldades de entender porque se construiu paredes que impediam de nos acompanhar no pátio, assim como o movimento do comércio. Era o fim de uma era quando até o padeiro entrava pelo corredor lateral da casa, no terreno do vizinho, e deixava o saco de pão pendurado na cerca, acordando meia vizinhança, sem que se incomodassem com o clássico: “olha o padeiro!”

Os pátios tinham uma divisão “administrativa”. A área da frente era controlada pela dona da casa, que fazia um jardim e pequenos canteiros de temperos. Muitos imóveis ficavam no meio do terreno. Então, a entrada já tinha também um bom número de árvores, especialmente frutíferas, e arbustos. A parte detrás era reservada para uma pequena horta, onde “se tinha de tudo um pouco”. Sem contar que era o lugar onde havia um cercado para a criação de galinhas e, às vezes, até de porcos. Em grande parte dos casos, uma tentativa de reproduzir o ambiente rural de onde vieram.

A “cerca do vizinho” não era apenas limite entre dois terrenos, mas lugar para interagir. Depois dos muros, vieram as grades, cercamento eletrônico e as casas ficaram pequenas fortalezas em busca da segurança e privacidade. Evoluímos? Será? Os antigos conhecidos não existem mais – seu Dário, dona Alda, dona Rita, entre outros... – e não se volta atrás para viver supostos “tempos bons”. Porém quando vejo moradores se preocupando com os outros, fazendo pequenos agrados, sei que derrubar os muros e as cercas não está em eliminar os elementos físicos, mas nos gestos de carinho que sempre aproximaram as pessoas e deixaram recordações que duram por toda uma vida.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Coloque sentido na estrada

Não tem como. Com o tempo, vai-se diminuindo o ritmo.


Senão fizer isto, você apenas passa pela vida.

É um aprendizado de que não há

Mágica para aumentar os nossos dias.

É preciso ir mais devagar

E saborear o que o tempo sussurra ao ouvido.

 

É simples assim:

Ao perceber que a vida se consome,

Precisa aprender a respeitar as diferenças

e encontrar o que tem em comum

Com quem faz parte deste momento.

As relações também se afinam por música,

Algumas vezes o tom é certo...

Mas não se importe se desafinar,

Vá cantarolando o que lhe trouxe a lembrança

Dos momentos de carinho ou sofrimento.

Naqueles em que você sorriu de uma recordação feliz.

Quando a nostalgia toldou a sua voz.

De quem marcou por uma saudade e, hoje, é uma ausência.

 

Não perca a música que embala o seu coração.

Há uma trilha sonora em cada vida.

É triste passar uma existência inteira sem encontrá-la.

Um dia a gente se dá conta de que em todos os caminhos

Havia uma melodia, uma canção especial

Em que a sonoridade foi mais ou menos intensa

Conforme você aceitou o papel que o destino lhe deu.

Cantar, dançar, assobiar, ou simplesmente murmurar,

É você em sintonia com a própria existência.

 

Sinta-se em paz.

Encontre pequenos prazeres

Que dão significado ao aqui e agora,

Mas também um sentido para o futuro.

O entardecer da existência é um tempo precioso

Para fazer as pazes com o passado,

Sorver o presente como se fosse único

E acertar o passo com o tempo que ainda resta.

Respire fundo, abra seus olhos em direção ao Infinito,

Não tenha medo. O rumo é seu,

São os seus passos que importam.

São eles que fazem o caminho.

É o seu coração que coloca sentido na estrada!

terça-feira, 21 de junho de 2022

Jesus de Nazaré não compraria uma arma

Seguidamente, figuras políticos utilizam do imaginário religioso para reafirmar suas supostas convicções. Num encontro recente com evangélicos, o presidente da República voltou a defender que a população se arme, dizendo, lá pelas tantas, que Jesus “não comprou uma arma porque não tinha”. Não é um discurso de cunho religioso, como bem demonstram suas declarações anteriores, mas, estrategicamente, uma fala oportunista, diante de um público em que um grande percentual ainda defende a sua candidatura - já com bastante restrições - em plena campanha eleitoral.

Analistas dizem que ele e seu grupo especializaram-se em polêmicas que retirem o foco do que efetivamente importa na eleição de outubro: as questões econômicas, desmandos administrativos, paralisação da máquina pública, escândalos com recurso públicos… Desviada a atenção, atende ao percentual que lhe é fiel e fica de olho na possibilidade de que possa jogar dúvidas sobre os mais incautos que não conseguem ver com clareza o que está acontecendo. Num país de pobreza e miséria, são jogadas de “marqueteiros” que podem não dar em nada, mas podem, até, “pegar”.

Recentemente, postei nas redes sociais que me considero um “influenciador cristão/católico”. Não sou conhecedor profundo da área religiosa, mas tento entender o que sustenta a minha fé e a minha religião. Com certeza, o pilar básico se chama Jesus. Depois, há quem veja na figura de Jesus, o Cristo (redentor, messias), o Deus encarnado que oportuniza a salvação do próprio homem. É este Jesus que se vê ao longo dos quatro Evangelhos e do Novo Testamento. Uma profissão de fé na figura que, discutida e contestada, marcou a História, da forma como a conhecemos hoje.

Também o Homem de Nazaré, figura histórica estudada, mas que não encontra documentação que auxilie a mostrar claramente como viveu, se desenvolveu, suas convicções políticas (sim, Ele tinha tais convicções, exatamente porque demonstrava sua preocupação de cuidar da sua gente), o intuito da sua pregação e os reais motivos da sua morte. Os espaços em que faltam registros que auxiliem a razão a delinear o perfil são preenchidos pela fé, quando se discerne aquilo que os seus primeiros seguidores intuíram, no final da sua pregação, e que deram a vida para testemunhar.

O mais importante era o fato de que Jesus de Nazaré, o homem, era alguém de atitude. A mesma atitude que apoiadores escolhidos inicialmente aprenderam da forma mais difícil, mas, embasados nas suas convicções, os transformaram em pessoas destemidas, certos de que sua fé se baseou no que foi dito e num testemunho de vida. Ainda hoje, infelizmente, se veem supostos “religiosos” que não ajustam o testemunho ao que pregam. Têm passagens bíblicas na ponta da língua, denunciando o grão de poeira que está no olho alheio, sem perceber o poste diante de seus próprios olhos.

Jesus de Nazaré (e muito menos Jesus, o Cristo) não compraria uma arma. Ficaria triste ao ver que esta indústria se vale de religiões para ganhar fortunas. A venda de armas não é problema de defesa pessoal, mas de incompetência político/administrativa e enriquece quem fatura no mercado internacional, como na Ucrânia. Com tantos problemas sociais, é um deboche discutir a segurança pública de um jeito atravessado. É simples: se o estado garantisse o que legalmente é sua obrigação – a seguridade do cidadão – não se precisaria de uma nuvem de fumaça para distrair a população.

domingo, 19 de junho de 2022

No rastro da lua e das utopias...

O Céu sempre foi um lugar de mistério. Embora hoje já se detenha mais conhecimento do que no tempo em que vivi a minha infância, o que se sabe é um grão de areia diante do infinito. As pesquisas alargam fronteiras, no entanto, precisam reconhecer que há muito mais a ser descoberto. Esta semana se presenciou o fenômeno da lua de morango (que alguns gaúchos resolveram batizar de lua de vergamota). Sua posição e maior proximidade favorecem a “superlua” (ou lua de sangue, pela sua cor, mas também porque no hemisfério norte é o tempo de colheita desta fruta).

Quando criança, já na periferia de Pelotas, não havia o que fazer nas noites de verão, a não ser fugir dos mosquitos. Porém, quando a mãe não estava cansada, agrupávamos no pátio para perguntas. A lua tinha diversas interpretações. Uma delas era a da imagem de Nossa Senhora embalando o menino Jesus. Na outra, era apenas uma mulher, que a dona França dizia ser a tia Ester, que chamávamos de “Tetéia”. Quando a lua era plena e a gente vivia a inocência de um sentimento que não sabia nomear (saudade) aprendemos a olhar para ela, balançar os lábios e dizer: “lá, Tetéia!”

Não havia – e acho que nunca tive – a necessidade de buscar explicação para o desfile de astros e estrelas que marcam as noites. Assim como sempre me encantaram o vento ou a formação das nuvens. Uma sofisticada engrenagem que faz o ritmo do Universo, à distância, parecendo ser a moldura para que se entenda o ritmo da vida, especialmente de um idoso. Ao se saber que elas também nascem e morrem, o olhar que alcança a distância possível tem que se contentar que estamos longe de qualquer fronteira, “beiradas”, limites que enquadrem a própria imaginação.

Todas as noites, o Cosmo espia preguiçosamente das alturas. O primeiro luzeiro que aparece no horizonte; a Lua, astros e estrelas que varrem a noite e os sonhos; a derradeira estrela que espera a chegada de um novo dia. Não importa o nosso tamanho e se teremos condições de percorrer as vias interplanetárias. De algum lugar, outros olham para a Terra e também se encantam. A humanidade ainda é uma criança diante da história do que, pra nós, é o firmamento. E tem muito o que aprender para mirar os céus sem esquecer da beleza que é cuidar do próprio homem e da casa comum.

O manto que existe por sobre as nossas cabeças induz a pensar que a fé leve a um Ser que tenha imaginado tudo o que o homem já descobriu e ainda possibilita que amplie seus horizontes. Precisando ter humildade para delimitar o razoável, permitindo que a humanidade desfrute de cada partícula que a energiza e, um dia, cobra o retorno. Há uma essência que faz a sintonia com aquilo que se traz, para além da vida e da morte: a alma, o espírito, que não adquire rugas na sua passagem pelo corpo presente, mas que testemunha a luta por um sentido que supere o próprio fim.

Então, se tiver oportunidade, à noite, tome o rumo do lugar onde encontres uma nesga de céu. Se estiver nublado, pode te surpreender com um rasgo onde apareça a lua. Quem sabe, contemples as estrelas e, ao segui-las, ela apareça em sua majestade. Se fores jovem, te encantaras com o desfio da imensidão. Se a idade já marcar teus passos, descobrirás que o silêncio do Universo mostra o teu destino: a própria finitude, o desafio da Vida por um sentido do que é maior… Somos poeira das estrelas, onde os risos têm gosto de possibilidades que teimam em existir em nossas utopias…

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Amigos não realizam sonhos…

Tem pessoas que são especiais por

Longos períodos em nossas vidas.

Elas acompanham na infância.

Foram parceria na juventude.

E presença quando disseram que éramos adultos...


Na intimidade, dificilmente se usa a palavra,

Mas são chamados de “amigos”.

Não se escolhe. Transformam-se em bênção.

Passam a fazer parte das nossas rotinas.

Marcam pela forma de ser, sorrir,

Falar, seus jeitos e trejeitos.

Estão sempre prontos para um conselho,

Andar ao lado ou, apenas, acalentam com um olhar.


Amigos não precisam falar.

Amigos têm sempre um ombro onde se pode desabafar.

Amigos te envolvem num abraço

Que coloca todas as dores em seu lugar.

Amigos são anjos, seres etéreos revestidos de corpos,

Em quem Deus dispensou as asas,

Mas não dispensou a ternura e a capacidade de proteger

Com o próprio coração.

Amigos são seres raros e frágeis.

Não te ilude. Se não alimentares o que te afeiçoa,

Definham como a planta que esqueceste de regar.

É uma relação especial em que se conhecem

Os defeitos, mas, o mais importante, as virtudes.

No momento de silêncio, também silencia;

Nas tuas conquistas sente que foi a parte da energia

Que precisavas para não desanimar.


Enquanto puderes, priva da sua companhia.

É o tempo de encontro de almas que se compreendem.

Depois, fica o doce perfume da saudade.

As marcas que nem o tempo é capaz de apagar.

A sensação de que havia um motivo para o encontro…

E também para a partida!


Nas lembranças, restam as vezes

Em que completou as palavras enquanto ainda pensavas…

Te puxou contra o peito para consolar…

Se orgulhou de ti nas pequenas vitórias...

E, na sua ausência, sentiste um vazio

No lado esquerdo do peito…

Foi quando descobriste que amigos não realizam sonhos,

Eles sempre dão um jeito de estar presente e de sonhar contigo!

terça-feira, 14 de junho de 2022

A dignidade de um prato de comida

“Insegurança alimentar” é uma bela expressão para falar de uma das maiores tragédias que o homem (e a mulher) podem testemunhar: um seu semelhante que passa fome. O fato de alguém não conseguir se alimentar (de forma alguma, ou precariamente) está na base de todos os problemas: uma criança que sai de casa sem as refeições básicas não consegue ter rendimento; quem não coloca alimento na mesa vai ter a saúde precária, tanto na falta do que comer, quanto na ausência de uma educação alimentar; quem trabalha sem energia não pode render o que é necessário no seu ofício.

Já disse aqui que parcela da sociedade faz o possível e o impossível para suprir carências/ausências das instituições públicas. Além de mobilizarem para doações, ainda vão à luta e, por entidades ou igrejas, fazem autênticos mutirões para minimizar este sofrimento com cestas básicas, marmitas, sopões, cafés da manhã e da noite... Sabendo que esta deveria ser a tarefa de prefeituras, governo estadual e federal que deveriam movimentar a máquina pública exatamente para que as populações mais carentes fossem assistidas e resgatadas de situações precárias, a tal de “segurança alimentar”.

Expressões acadêmicas/sociológicas distanciam a realidade das teorias, tratam um problema real como se fosse apenas análise de conjuntura. Nas periferias e ruas o que se testemunha é diferente do que se fala em gabinetes. A necessidade de ação imediata pois, enquanto um brasileiro se encolher com frio embaixo de uma marquise; a dor da fome der o tom de miséria de quem já cansou de lutar; alguém mendigar pelo direito à saúde, moradia, emprego e segurança; ninguém, repito, NINGUÉM tem o direito de auferir salários que coloque em risco o atendimento às demandas sociais.

O Brasil da fome foi mapeado pelo Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 e mostrou que 33,1 milhões de pessoas não conseguem o pão nosso de cada dia. Soma-se à queda na renda do brasileiro, o aumento do número de quem está nas ruas, ao fato de que 72% da população foi impactada pela inflação que alguns teimam em negar (mas que está presente no dia a dia das compras dos comuns dos mortais) e às sacanagens como a chamada “reduflação”, uma maquiagem pela redução do tamanho dos produtos, mantendo os mesmos preços.

Os dados são incontestáveis. Conhecido questionou por redes sociais se eu era um “vermelho” que ataca o governo. Sim, sou “vermelho”. Continuo sendo colorado (torcedor do Internacional), preocupado com governantes de plantão e seus desmandos. Incapazes de dar aos brasileiros o que merecem num país onde, há décadas, ouço ter as potencialidades de ser um celeiro da humanidade, sem que seja capaz de atender minimamente seus cidadãos. Como formador de opinião, uma das minhas responsabilidades é auxiliar as pessoas a criarem consciência da realidade em que vivem.

Em matéria que tratou a respeito, a mãe que lutava em meio às sobras deixadas pelos comerciantes no centro de distribuição de alimentos para o comércio disse que, mesmo ali, em muitos dias, não havia o que aproveitar. Quando as crianças pediam algo à noite para comer, com a mais nova no colo e um resto que lhe sobrara de um pão, apenas murmurava: “dorme que a fome passa...” Na esperança de que o amanhã sensibilize os corações de quem pode – e deve – participar de uma cruzada que não dê apenas uma esmola, mas recupere a dignidade de um prato de comida!

domingo, 12 de junho de 2022

A ternura do idoso e o rosto de Deus

Era criança e sempre me impressionaram os desenhos dos rostos de minhas avós – Jovita, por parte de mãe, e Saturna, por parte de pai. Não entendia (como não entendo hoje) de arte, mas admirava os sulcos que marcavam seus rostos. Eram, com certeza, etapas da história de mulheres pobres, num interior perdido, onde a rotina era, no dia a dia, de sol a sol, quebrada apenas pelos muitos sacrifícios que faziam ao atender a família, especialmente, marido e filhos. Não eram idosas (talvez na casa dos 60), mas já tinham o tempo do cansaço e de muitas tristezas entalhando recordações…

A mesma configuração do rosto é que tornava cada uma delas especiais por serem, literalmente, a “mãe da mãe” (ou do pai), com o carinho tão ao jeito de quem sente a ausência e quer compensar com sorrisos que acentuavam suas expressões. Provindo da imersão dos olhos, sinal de bondade, de acolhida, da mulher roceira que enxugava as mãos no avental e ajeitava os cabelos já presos num coque para nos receber num abraço. Pequenas em altura, mostravam-se gigantes em querer saber de tudo e de todos, já com o olhar atento ao fogão de lenha, pensando no que fariam para agradar.

Foi do que lembrei ao ouvir o papa falar na catequese da semana passada, ao citar a atriz Anna Magnani, que, comentando processos que retardam o envelhecimento, não “queria que suas rugas fossem tocadas, já que havia levado uma vida inteira para tê-las”. Francisco, um idoso de 85 anos, mostrou na reflexão que nossa cultura tem a tendência preocupante “para considerar o nascimento de um filho como uma simples questão de produção e reprodução biológica do ser humano e cultivam então o mito da juventude eterna com a obsessão desesperada da carne incorruptível”.

Uma frase marcante foi “a vida em nossa carne mortal é uma belíssima obra inacabada, como algumas obras de arte que, apesar de incompletas, possuem um fascínio único”. E argumenta que “a nossa vida aqui na terra é iniciação, e não consumação. A fé, que acolhe o anúncio evangélico do reino de Deus ao qual estamos destinados, nos torna capazes de ver os sinais de esperança nesta nova vida. A velhice é a condição na qual o milagre do nascimento do alto pode ser assimilado intimamente e tornar-se sinal de credibilidade para a humanidade”.

Para o homem e a mulher de fé, a velhice, agora prolongada, mas não qualificada, tem uma beleza única. O papa diz: “caminhamos rumo ao Eterno. Ninguém pode voltar a entrar no ventre da mãe, nem no seu substituto tecnológico e consumista. Isso seria triste, mesmo que fosse possível. O velho caminha para a frente, em direção ao destino, rumo ao céu de Deus. A velhice, por conseguinte, é um tempo especial para dissolver o futuro da ilusão tecnocrática de uma sobrevivência biológica e robótica, sobretudo porque se abre à ternura do útero criador e gerador de Deus.”

Chamou a atenção para “a ternura dos idosos”, especialmente quando se relacionam com os netos. Ajudam a compreender a própria ternura de Deus: “Deus é assim, sabe acariciar”. Convocou idosos a serem “mensageiros da ternura, da sabedoria de uma vida vivida… vamos em frente, olhemos para os idosos!” Assim como os próprios idosos, olhem para si. Peçam e se deem o respeito que merecem os cabelos brancos (ou embranquecendo) e as rugas que testemunham uma existência. As rugas das minhas avós, as minhas rugas, as rugas do papa, as suas rugas precisam de um sentido. Envelhecer com dignidade é se tornar o rosto de Deus diante de uma sociedade carente de ternura!

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Um tempo que se chama Eternidade

O início do percurso é sempre uma escolha.

Podes selecionar a estrada larga

Com muita gente andando e se atrapalhando,

Num tumulto que te impede de aproveitar o próprio caminho.

Ou apenas a trilha que serpenteia

Por entre as árvores onde a Natureza

– e quem a respeita – te inspiram ao silêncio e à contemplação.


São escolhas que se fazem com o passar do tempo.

Muitas amadurecem ao longo de toda uma vida e

Carregas a bagagem de quem esteve contigo.

Mas fazes o teu próprio destino, por opções e descobertas.

E podes dizer que, mesmo ao exalar o último suspiro,

Ainda consegues aprender.


Tuas escolhas definirão o jeito como estarás no Mundo

Durante o espaço em que ele for a tua casa.

Em algum lugar do teu coração, sentes as preferências

Que fizeste e os rumos que tomaste.

Vão definir o teu jeito de ser e as tuas relações.

Mais do que uma identidade,

Teu Espirito exala a marca que trouxeste do Infinito.


No final das contas, de passagem ou voltando para casa,

Na iminência do reencontro, risos e vozes amigas

Chegarão aos teus ouvidos.

Impossível não se emocionar pensando nos rostos

Que ficaram marcados em tua memória e

Foram se diluindo nos longos anos de ausência.

Tua felicidade é uma antevisão do Paraíso.

Que já está presente em teus sonhos,

A melhor parte do que a Vida te ofereceu.


Foste perdendo forças,

Cansando do tempo que parecia se repetir

E das ausências que tornavam doloroso

Cada esgar de sorriso que ainda te animavas a dar.

O abraço de todas as forças e energias,

Sonhadas e acalentadas,

Que, agora, se transformam apenas

No perfume que compartilhaste e dão sentido

Ao teu retorno aos braços e abraços

De um tempo que se chama Eternidade!

terça-feira, 7 de junho de 2022

Educação: um sonho sem limites

Não, não é nenhuma novidade. No dia 31 de maio, foi lançado em Porto Alegre um novo pacto pela Educação, por um grupo de pessoas de diversas áreas que acredita ser este um alicerce de transformação da sociedade. A pretensão é tornar o estado uma referência, especialmente quando se vive um cenário de urgência educacional. Em especial na rede pública, onde a Secretaria de Educação do Estado constatou que apenas 1% dos alunos do último ano do Ensino Médio tem um desempenho adequado em Matemática. A pergunta que não quer calar: já não se ouviu esta história?

Se tiver paciência para percorrer páginas de jornais mais antigos, ou mesmo pesquisar na Internet, encontra ao longo dos governos pactos salvacionistas que juravam de pés juntos que eram a salvação da lavoura. Por diversos motivos: desde o fato de não serem exequíveis, passando pela falta de continuidade das políticas públicas, até a pouca (ou nenhuma) vontade política, levou a serem engavetados, ficando como peças compondo dissertações e teses para currículos acadêmicos. Quase sempre aqueles que deveriam fazer a “boa política” pensam nas próximas eleições.

Não duvido da boa intenção de quem articula o projeto. Uma das declarações chamou a atenção: “a educação é um problema da sociedade e não somente dos segmentos diretamente envolvidos”, no caso pais, alunos e professores, especialmente. 80% dos alunos estão em escolas públicas, portanto, é preciso iniciar por aí uma atitude que envolva famílias, comunidade escolar e a sociedade. Um lugar para encontrar referências que possibilitem as mudanças sociais, incluindo a discussão de temas como cidadania, inclusão, igualdade de gênero, tolerância, hábitos de consumo…

Não há dúvidas de que as mudanças que não se consegue ver como viáveis passam pela educação. Com os números apresentados e a máquina pública desgastada e exaurida, a perspectiva de que algo se concretize é distante, mas não é impossível. A grande novidade é o envolvimento da sociedade através do voluntariado e financiamento empresarial. Uma sociedade corresponsável, numa rede de colaboração que propicie o conjunto tão sonhado: professores preparados e bem pagos, alunos em situação social de aprendizado, ambientes educacionais adequados e processos continuados.

Uma das ações mais inspiradoras se deu com o “Crie o Impossível 2022”. Um projeto com cara de poesia, bem ao estilo do que deve ser a educação. Na semana passada, um super “aulão” reuniu centenas de jovens no Beira Rio para ouvir depoimentos de 11 palestrantes que contaram a história das suas vidas: dificuldades, conquistas e superação. Tendo em comum o fato de serem oriundos do ensino público e, hoje, atuando como influencer, cientista, jogador de futebol e investidores. Gravei a frase chave de uma das organizadoras: “sonhar é a única ação que não pode ter limites.”

Infelizmente, em boa parte dos casos, o sonho está virando pesadelo. É fato que muitos professores desanimaram, pais não vislumbram perspectivas de mudança social e jovens não encontram na escola lugar de convívio e realização. O que anula o sentido de buscar aquele que é caminho natural de entrada no “mundo dos adultos” e das realizações. Falta uma “cultura da educação” já que se esquece de que por toda a vida se é aprendiz. Lembrando Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”. Amém. Que assim seja!

domingo, 5 de junho de 2022

O tempo, as almas antigas e o rumo do Universo

Você já ouviu falar em “almas antigas” (ou “almas velhas”)? Há várias definições para a expressão, em vários credos. Creio que o mais importante é que seriam pessoas diferenciadas, com um nível de maturidade superior, inteligentes, com sensibilidade especial, intuitivas e, aí começo a prestar atenção: “parecem não se encaixar no seu tempo”. A origem seria no Taoismo, sistema filosófico e religioso chinês com mais de 5.000 anos. A alma deixa o Tao, unidade global e natural, para adquirir experiências. E precisa retornar à sua raiz, enriquecida por suas passagens pela Terra.

Dos seus cinco estágios, as “almas antigas” estariam no último, já mais espiritualizadas e preocupadas em encontrar o seu lugar no Mundo. Com a consciência de que fazem parte de algo maior, de um todo que supera as etapas anteriores. Seu principal objetivo seria a satisfação interna, na busca pela paz. Demonstram um alto grau de maturidade, são capazes de desfrutar de solidão e introspecção, alcançam um sentido mais espiritual da existência, conseguem um instinto muito desenvolvido e, por fim, são capazes de demonstrar um alto nível de empatia e sensibilidade.

Mas o amadurecimento não é fácil. Nem tudo é um mar de rosas… O seu desenvolvimento encontra alguns efeitos que podem ser considerados indesejados. Como o fato de não se encaixarem nos interesses daqueles que são da sua idade e se interessarem pela amizade de pessoas mais velhas; uma desconexão com o Mundo, já que não são muitas as pessoas neste estágio com capacidade de convívio; problemas com a autoestima (e muitas vezes até depressão), pois geralmente se medem com um padrão moral estrito e, às vezes, se sentem atormentadas por suas deficiências e erros.

Comecei a me interessar quando uma amiga (a quem respeito muito) disse como se sentia nos tempos atuais: “fora da casinha”. Foi a expressão que usou para explicar que percorreu um túnel do tempo por onde reencontrou e se informou sobre muitas das coisas acontecidas em décadas passadas e se sentiu fora do contexto atual. Para os da minha idade ou próxima (hoje, chego aos 67 anos), não é difícil que se sintam assim. Até porque somos de um tempo, pela metade do século passado, em que sequer se pensava em chegar aos anos 2.000. Quanto mais, ultrapassar em 22 anos!

Não sei se é uma questão metafísica ou psicológica. Creio que vou encontrar explicações para estes fenômenos nas duas áreas. Em qualquer dos contextos das relações sociais, encontram-se pessoas que parecem deslocadas destes tempos. Não é somente por aquela história dos filmes, quando demonstram um comportamento diferente e até no que vestem se diferenciam. Mas por terem uma “luz” que ultrapassa o senso comum, irradiando confiança, em todos os sentidos, com a capacidade de dizer o que for necessário sem criar atritos e atraírem pela forma como são acolhedoras.

Nesta etapa da vida, não creio que me encaixe nas definições que resumi da Internet, ao iniciar este texto. Mas um pouco de maturidade, com uma dose de sensibilidade e a vontade de ficar por mais tempo em silêncio tornam mais fácil envelhecer o corpo e, porque não, “envelhecer” a alma… Não é uma questão de decrepitude, com a sensação de que já se está mais perto do fim do que do começo. Existe um tempo de voltar, com a sensação de que não apenas se deixou a vida passar, mas a consciência de que se andou pelo Mundo como quem encontra um sentido no rumo do Universo…

sexta-feira, 3 de junho de 2022

O horizonte que se consegue alcançar


Vem. Senta aqui, ao meu lado.

Para um pouco e deixa voar a tua imaginação.

Veja o vale que se estende

Por detrás das ruazinhas da vila,

Aconchegada ao pé da colina.


Ali está a criança que brinca na rua.

Este, hoje, é todo o seu mundo.

Nada que vá além da calçada onde sentam os mais velhos,

Ou dos lugares onde desenha seus jogos.

O momento presente tem tudo de que necessita.


Ali vai o casal de enamorados.

Esqueceram do tempo,

Não percebem quem passa por eles,

E apenas importa que um possa olhar para o outro,

Ouvir a sua voz, sentir o seu perfume.


Ali, pela janela, o idoso vê o Mundo.

Debruçado no parapeito acompanha os jovens

Que não lhe prestam atenção.

E a criança que tem outras preocupações.

Já brincou naqueles mesmos lugares

E já teve seu coração transbordando

Pelos lábios de quem deu sentido à sua existência…


As diversas etapas da vida, num mesmo instante.

São paisagens de encantamentos.

Os sonhos não são o que

Nos afasta da realidade.

Os sonhos são necessários

Para dar sentido aos momentos

Difíceis em que se pensa em desistir.


Em qualquer idade, o importante é

Não perder o jeito de lidar com a magia.

Não é preciso fechar os olhos,

Mas deixar que o coração seja seduzido,

Na sensação de que o encantamento

Não se importa com o caminho andado, mas com

O horizonte que ainda se pode alcançar…