quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Simplesmente assim: Sublimar

Quando a ausência ainda machuca,

Quando a perda fere o peito,

Quando o olhar mareja sem razão,

É preciso compensar as dores que sufocam.

Sem esquecer, aceitar que a vida continua. 

Sublimar é a anestesia dos sentidos…

E o doce devaneio dos sentimentos!



terça-feira, 29 de outubro de 2024

Um dia a gente vai se reencontrar...

Éramos três sonhadores quando iniciamos o curso de Filosofia, no distante ano de 1976. Três calouros, seminaristas, estranhando o ambiente com alunas na Universidade Católica de Pelotas. Eu, mais o Pedro Bettin e o Gomercindo Ghiggi. Nas primeiras aulas, sempre se tinha receio dos trotes de calouros. Dos três, a única vítima acabou sendo o Gomercindo, que foi pintado, mas, que bem me lembre, não teve a cabeça raspada.

Lembrei deste bom tempo ao saber da morte do Gomercindo, aos 69 anos. Estava fora de Pelotas e comecei a receber mensagens cedo da manhã. Transbordaram as lembranças desde o nosso ingresso no seminário, nos tenros 12 anos, onde estudamos o equivalente ao primeiro e segundo grau. As aulas, quase que particulares, com tempo para estudar, cumprir tarefas na horta e arrumação da casa, assim como atividades esportivas, culturais e religiosas. 

Findava a década e, já acabando os cursos nas faculdades, tomamos rumos diferentes. O Pedro ainda fez mais quatro anos de Teologia e faleceu no ano em que iria ser ordenado padre. E o Ghiggi, agora. Acompanhei à distância seu trabalho de educador que, ainda no seminário, por inspiração do presbítero Cláudio Neutzling, sempre teve uma forte conotação social. Inicialmente, com atuação na comunidade católica do Pestano, em Pelotas, época em que se formavam as primeiras comunidades eclesiais de base.

O reencontrei algumas vezes em atividades da Igreja Católica. Participava da vida em comunidade e também gostava do canto coral. Em outros tempos também apreciava jogar futebol, ao estilo dos melhores zagueiros de então, que definiam ser, "abaixo do pescoço, tudo é canela". O Seminário tinha um bom campo de futebol e não importava se era uma pelada de um jogo como atividade física ou uma disputa com os freis, juvenis do Brasil ou do Pelotas, o assunto era debatido em detalhes e com paixão por muito tempo...

O Gomercindo constituiu família e tomou seu rumo. Infelizmente, a ausência é sempre o sentimento de que algo (ou alguém) vai fazer falta. Vivemos um tempo especial por mais de dez anos que marcaram as nossas vidas. Porém, é necessário continuar, com a impressão de que se poderia ter feito diferente, mas não se fez... quem sabe, conviver mais. Não existe compensação pelo tempo que vai passando e quando nos damos conta a vida também passou. Creio que meus dois colegas agora convivem com os padres Guerino, Olavo e Cláudio Neutzling. A esperança é que um dia a gente consiga se reencontrar…


domingo, 27 de outubro de 2024

Sonhos que cabem num par de tamancos

Quantos anos tinha quando trocaram

Meus tamanquinhos pelos chinelos de dedo?

Eram tenros anos

Em que o sapatinho de ir à escola,

No final da manhã, 

Ao retornar à casa,

Era trocado pelo calçado caseiro,

Que esperava na porta da cozinha. 


Um ritual de saudades,

Impregnado de memórias 

Onde imperava a simplicidade.

Nunca me pareceram desajeitados

Para o que fosse necessário,

Nas atividades de estudar ou ajudar na casa

Ou brincando pelo que era o início da minha rua,

Ainda rodeada de matos,

Pequenos sítios e campinhos,

Predominando maricás e gravatás.


Talvez, por desconhecimento de outros calçados,

Sempre pareceram cômodos, 

Marcando os passos no piso de madeira. 

A plataforma recoberta por uma tira de couro

Fazia o tic-tac que, se para uns irritava,

Para nós soava como música. 

Os pés sem meias no verão 

Eram protegidos e aconchegados no inverno. 


Andando na poeira das ruas

Ou no barro das estradas,

Não importava. 

Eram os rumos dos sonhos.

Tudo era possibilidade,

No aconchego e segurança de uma família.

Andávamos nas nuvens, 

Na pobreza de quem pensava que tinha

Uma fortuna nos pés. 


A impressão é de que se 

Perdeu alguma coisa pelo caminho.

Um mundo de possibilidades 

Não significa um mundo de felicidades.

A simplicidade das roupas repetidas

E dos calçados que precisavam durar

Guardavam a doçura de uma vida plena:

Sem precisar saber, se vivia em

Um universo de afetos em que 

A razão do amor era o próprio amor,

E os sonhos cabiam perfeitamente

Num par de tamancos…


sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Percorrendo as brumas da madrugada

Quando o sono me esquece ou demora,

Faço vigília, peregrinando pela noite, 

Perdendo-me no silêncio da madrugada.

As ruas vazias,

Os becos com seus recantos escondidos,

O horizonte toldado pelo breu.

Não sei aonde os passos me levam.  

Também, não importa, 

Vago por memórias e saudades. 


Vultos perdidos perambulam

Por sob as luminárias que jogam luz

Sobre pequenos espaços. 

Um bêbado trança as pernas,

Na segurança próxima de uma parede;

O casal surge do nada trocando 

sorrisos misteriosos e cumplicidade;

Há quem apresse o passo,

Querendo chegar ao aconchego do lar.


A madrugada é a catedral 

Que salpica o chão de estrelas. 

Cintilando, recobre o átrio 

Em que as preces são mais lentas.

Serenas, na certeza de que

O homem já não têm pressa

E Deus sorri abrindo caminhos:

As portas para todas as incertezas.


A noite adensa quando avança.

As horas em que se esquecem os limites,

Apenas no aqui e agora, 

Na justeza do tempo que 

Carece de significados profundos.

O momento presente em que

A felicidade precisa de uma oportunidade

Para ser compreendida.  


A madrugada é a possibilidade dos

Amantes, dos desesperançados,  

Daqueles que agonizam na solidão. 

Resume a duração da existência,

Possibilitando momentos de silêncio,

No limite da sanidade.

A perspectiva que abala convicções,

Acenando com a bruma do que vara

A realidade para estar próximo do sonho…


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Simplesmente assim: Catedral

A nave da igreja imersa na penumbra.

As imagens repousam nos seus nichos e

Desaceleram a pressa do dia a dia.

Apenas a lamparina do Sacrário acesa,

À distância, na imersão do Mistério.

A sublime sensação de que viver é mais

Do que apenas e tão somente o existir.



terça-feira, 22 de outubro de 2024

“Amar como Jesus amou”

O sínodo dos bispos da Igreja Católica, que se realiza no Vaticano, confirma que a instituição não anda no relógio da sociedade. Isto é: necessita de mais tempo para assimilar e vivenciar as mudanças, em todos os sentidos. Precisa de homens como o papa Francisco que tenha coragem, como dizia dom Jayme Chemello, de "segurar os que avançam demais e apressar os mais lerdos".

Infelizmente, na polarização que nos assola, o que se vê é que nem os mais apressadinhos têm paciência de esperar, assim como os mais lentos querem sair do seu empacamento. Ainda mais: há um grupo significativo que gostaria de vê-la estacionária no tempo ou até retrocedendo. O encontro de prelados do mundo inteiro é um alento em tempos sombrios para a Igreja Católica. Um instrumento que deve ajudar o pontífice a alargar a capacidade da sua congregação de reencontrar o caminho que a reaproxime da sociedade.

Enquanto se discutem - e se atrapalham - com temas realmente importantes, como o diaconato para mulheres e a questão homossexual, comete-se um triste jogo de palavras que desidrata sentimentos e ações como o amor, a caridade e a missionariedade. O disfarce vem pelas construções intelectuais e dos dicionários que escanteou seu real significado: gestos capazes de encarná-los na realidade, o básico do relacionamento humano que é cuidar, especialmente, de quem mais precisa.

Os homens que comandam a igreja Católica, consciente ou inconscientemente, têm uma cultura machista, muitas vezes disfarçada de tolerância e suposta humildade. A sublimação da realidade é feita com discursos, muitas palavras encantadoras, que escondem a ausência de uma real presença na vida da população, que acontece pelas ruas e becos da cidade. Sobrepõe-se ao convívio social um ritualismo que deveria ser consequência de uma vivência comunitária.

"Amar como Jesus amou", cantava o padre Zezinho. Já perguntei para muitos religiosos como "amavam, exerciam a caridade e a missionariedade". Raras vezes recebi resposta que não fosse genérica e fruto de "estudos profundos" daqueles que desidratam a própria vida. Em qualquer idade, sempre é tempo de conversão a “amar como Jesus amou”. Para nós, os mais velhos, tempo de superar o encantamento com a própria voz e aquilo que se escreveu. Aprender a ouvir mais, sorrir mais e, quem sabe, perguntar se, neste momento, o que minha igreja precisa não é de alguém que ajude a descascar batatas, ralar cenoura ou apenas varrer o lugar comum a todos nós...


domingo, 20 de outubro de 2024

Antes que o sol se ponha

Se puderes, 

Volta antes que o sol se ponha. 

Vou estar sentado na areia,

Como nas muitas vezes

Em que acalentei tuas lembranças.

Se notares que estou

Perdido em pensamentos,

Aconchega-te ao meu lado,

Me envolve no teu abraço 

E debruça tua cabeça em meu ombro.


A espera do que sempre 

Foi sedução no entardecer. 

No instante em que 

O sol faz a derradeira curva nos céus.

Mesmo que não digas nada,

Ainda ouço o murmúrio da tua voz.

Misturando-se com 

A delicadeza das ondas, 

Que rastejam aos nossos pés, 

Sussurrando juras e beijando a areia.


Somos testemunhas

Dos derradeiros raios que agonizam,

Esmaecendo o horizonte,

Num misto de melancolia e admiração.

No silêncio aspergido pelo derradeiro

Grasnar das gaivotas 

Que mergulham em busca da vida. 


Ao longo da praia, 

Fiéis seguidores reverenciam

O ritual que se repete todos os dias.

E, mesmo assim, faz-se novo,

Na dança das luzes, das cores

E no contraste com o breu da noite,

Que emoldura o cenário.

Sentirás, como em prece,

O murmúrio do vento,

Harmonizando as mentes e 

Energizando o Universo.


Quando a noite definha 

A última linha entre o céu e o mar,

Vence o tempo da espera:

Um novo entardecer é possível. 

A vida, cumprindo ciclos:

Amena, na claridade do dia,

Sentida e dolorida, 

Ao ser saudade e melancolia,

Na calada da noite…