terça-feira, 21 de maio de 2019

Passageiros prestes a partir...

Pedro viaja pelo Mundo. Faz suas andanças pelos cinco continentes. Nos programas que grava para a televisão a cabo há cenas por ruas, estradas, monumentos, encontrando gente, conhecendo a arquitetura, costumes, hábitos alimentares, a alma de um povo que, em qualquer lugar, é apenas gente, buscando o direito de existir, usufruir da vida em grupo e enfrentar desafios do dia a dia.
Tenho santa inveja de quem se aventura, nem que seja em excursões. Ao voltarmos das férias, na Universidade, professores contavam de andanças por praias do Brasil, Europa, Estados Unidos... Ao perguntarem por onde andara, um deles respondia: em Morro Redondo! Onde tinha um sítio - recanto do coração - para onde se recolhia fazendo do seu pequeno mundo um lugar privilegiado para suas "andanças".
Mas é quando se abre nem que seja um pouco da possibilidade de que se conheça mais da cultura de um outro povo que nos enriquecemos e damos valor à nossa própria identidade. Recentemente, na Geórgia - que se tornou independente da União Soviética, exprimida entre a Europa e a Ásia - foi convidado por sua intérprete para jantar em casa de amigos. Um violão e as músicas típicas levaram-no a se emocionar.
O que tornou inesquecível foi o relato de que constituem um país por onde muitos povos passaram, de um lado para o outro, mas a marca que o conquistado deixou nos conquistadores foi de que era uma gente que transformava suas emoções, sua história, suas esperanças em melodias: cantavam as tristezas da dominação, as batalhas, as perdas, também a certeza de que, um dia, seriam um povo independente... e feliz!
Numa outra ocasião, no Nepal, brincou com a palavra que ouvia na rua: "namastê". Soava bem e via o sorriso no rosto das pessoas que por ele passavam. Quando a utilizou para o escritor de uma obra sobre a religiosidade naquele país ficou preocupado. A expressão, literalmente, se traduz por: "saúdo (o) Deus que habita (existe) em você!" Não era sua intenção brincar com o sagrado, mas a adrenalina de conhecer novas gentes e novos costumes o levaram a cometer um pequeno deslise...
Vou continuar assistindo à série "Pedro pelo Mundo". Recomendo seguidamente que as pessoas que não têm oportunidade de viajar - idosos, doentes, com falta de recursos... - ao menos abram uma janela para outras realidades. Conhecer faz ver que não somos melhores... nem piores! Em qualquer país, em qualquer continente, apenas pessoas buscando dar sentido à própria vida. Como diz Ana Vilela, "a vida é trem-bala, parceiro. E a gente é só passageiro prestes a partir!"

terça-feira, 14 de maio de 2019

Deixamos rastros...

O rapaz que desceu do carro não tinha pressa. O cuidador segurou a porta e a conversa fluiu como se fossem velhos amigos. Quando saiu, tinha nas mãos uma mochila e o casaco, pronto para uma reunião ou atender a um cliente. Nos poucos minutos que ficaram juntos falaram de futebol, como ficaria o tempo e ainda perguntou pelo filho mais novo do flanelinha que estivera doente. Mas foi o olhar com que seguiu o jovem "executivo" que chamou a atenção: encontrara alguém que o respeitava, se importava com ele e não o tratava como apenas pertencendo a uma estatística social.
O jovem faz parte daquele grupo de pessoas que não faz "discursos" (possivelmente também não escreva textos a respeito) sobre as desigualdades sociais, mas tem, na sua própria carga genética, a compreensão de que as diferenças de classe tornam-se mais difíceis de serem superadas se não houver, de ambas as partes, preocupação com o elemento chave de qualquer relação: o respeito pela pessoa!
Lya Luft fala do acumulo do lixo moral: "o cinismo, a ganância, a fome de poder, as negociações disfarçadas com palavras rebuscadas e até solenes..." de pessoas que prostituem o sentido  das palavras até que elas se tornem insossas e sem graça. Mensagens ouvidas nos cansados e surrados discursos políticos e também parte da argumentação de lideranças de todos os níveis - inclusive religiosas.
Gosto de perfumes marcantes. Não aqueles que poluem o ambiente, mas os que deixam flagrância no ar. Um deles - do desodorante masculino que uso - brinco, é o perfume de "talco de velhinhas" - memória de pessoas idosas, avós... Sensação de que está no ar um pouco da identidade de alguém, faz procurarmos no entorno pessoa diferenciada, por ter deixado uma marca afetiva em nossas lembranças ou chamado a nossa atenção. J.J. Camargo fala da "generosidade do silêncio", onde o rastro que deixamos é proporcional ao interesse que demonstramos pelas pessoas.
Na forma como cuidamos e nos preocupamos com as pessoas estabelecemos marcas que somente a vivência de um amor recíproco e generoso é capaz de deixar. No olhar do cuidador de carros - assim como das pessoas com as quais se convive e são, de alguma forma, especiais - aprende-se que é impossível conjugar o amor no passado: as pessoas que partiram não podem "ter sido amadas", pois perde o sentido de terem frequentado nossas vidas se não fizerem parte, no presente, da realidade afetiva: é o rastro de generosidade de quem reparte um pouco de si nas próprias lembranças, mas também quando fala de futebol, do tempo, da saúde do filho de um amigo...

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Cansados de viver...

Visitávamos um idoso numa tarde de domingo quando a conversa enveredou para o lado da segurança de quem precisa de cuidados. Uma possibilidade muito comum, especialmente para quem está fragilizado, dorme em cama de solteiro e tem a possibilidade de cair durante a noite. Sugeri o que utilizamos com a mãe: uma grade protetora que é colocada entre o estrado da cama e o colchão. A parte lateral é removível, facilitando tanto a colocação quanto a retirada da pessoa que está no leito.
Pensei no quanto ainda temos problemas com a informação a respeito de recursos que facilitem a vida de quem depende de outros para os cuidados elementares do dia a dia. Coisas simples: grades de proteção, escora de espuma para levantar o paciente no leito comum, colocação de um travesseiro embaixo do colchão para evitar o refluxo, exercícios com bolinhas ou pequenos pesos, uso de andador, bengalas, apoio metálico no banheiro etc...
Não sou geriatra e nem médico, mas a experiência em cuidar dos meus pais alertou para coisas práticas que fazem a diferença na qualidade de quem é cuidado - assim como do cuidador. Acompanho seguidamente notícias de trabalhos realizados por Universidades preparando pessoas que acompanhem idosos e doentes. Hoje, é indispensável que estes profissionais sejam municiados de informações a respeito da necessidade de serem a extensão dos serviços básicos de cuidados com a saúde.
E por "cuidados com a saúde", aqui, estou entendendo ser veículo de informação para pessoas que muitas vezes gastam o que têm e o que não têm pagando por camas especiais e demais equipamentos caros, necessários para casos mais difíceis em que não há a colaboração da pessoa cuidada. Mas que, com um pouco de criatividade, podem tranquilamente ser substituídos por elementos próximos, à disposição nas próprias residências ou em instituições - Feira da Fraternidade, paróquias, sindicatos - que recebem doações e disponibilizam este material.
Cuidar não precisa ser um tormento. Alguém me disse que os idosos morrem, muitas vezes, porque cansaram de viver. Verdade. A ausência de familiares e de recursos que facilitem a interação e o convívio restringe e isola quem, muitas vezes, foi razão e sentido da proximidade de amigos e familiares. Não é "o que eu poderia ter feito e não fiz?" que dá razão ao cuidar, mas o fato de que - idoso ou doente - são os mesmos que, um dia, nos envolveram com a ternura de quem desejou viver intensamente toda uma vida com cada um de nós, que consideravam "seres amados"...

Missa, crianças e o "louquinho"...

Estava sentado esperando iniciar a Missa quando chegou o Miguel com seus avós. Como toda a criança de três anos, curioso por caminhar e ver o que havia naquele amplo espaço, sem perder a referência do banco onde nos encontrávamos. Mas foi no momento em que começaram os cânticos que se deu o inusitado: toda a vez que um deles acabava, batia palmas. A explicação era simples: na creche, os orientadores ensinavam que aplaudissem sempre que terminavam uma das canções.
Sexta-Feira Santa. Na celebração das 15 horas não há Missa, faz-se memória da paixão e morte de Jesus. No dia anterior é consagrada a eucaristia para que as pessoas possam ter aquele alimento também num dia de dor. Voltava para meu lugar quando ouvi um choro forte... A mãe tentava explicar para a criança - que foi no seu colo para a comunhão - porque não podia comer o "pãozinho" que o adulto havia recebido. Não havia explicação que a consolasse...
Na mesma cerimônia, há o beijo na cruz. O diácono, em frente do altar, oferece às pessoas o madeiro que recebeu o corpo do Senhor. O "louquinho" se aproxima murmurando uma mistura de trechos de canções religiosas antigas com músicas não tão cristãs assim... Oferecem-lhe a cruz para beijar e ele vira de lado... A fila anda. Quando se volta para ele, novamente, aproxima-se, beija a imagem e silencia... Afaga a representação do corpo de Jesus e dá duas batidinhas nas costas do diácono...
Gosto das igrejas como espaço em que se pode parar para rezar - ou apenas silenciar... Mas, especialmente, onde há o encontro com pessoas... Homens, mulheres, crianças e "louquinhos" num lugar sagrado vivenciando uma forma especial de proximidade com Deus. Muito tempo atrás, ouvi de um padre que a maior parte dos que participam de uma Missa não tem a compreensão total do que seja. Sabem que estão diante do Sagrado para pedir ou agradecer, consagrar ou apenas existir...
As crianças e os "louquinhos" desafiam nos momentos em que desejamos apenas o "nosso" silêncio. O jeito como Deus nos retira de nossas redomas, mostrando a procissão dos que andam, dos que correm, dos que gritam, dos que se arrastam, dos que fazem a vida ser o permanente desafio de comprender o que nos leva a murmurar uma prece, apenas uma prece... na certeza de que em todas as formas de celebrar sente-se a presença de algo que supera o conhecimento e as fragilidades. O dedo de Deus que brinca nas palmas e no choro das crianças, nas palavras altas e sem nexo do "louquinho" que silencia diante do Mistério...

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Dom Jayme: 50 anos de bispo

Tinha 11 anos quando fiz estágio para ingresso no Seminário. O diretor de então era o padre Jayme Chemello. Creio que eram algumas dezenas de meninos. Todos foram convidados, em algum momento, a conversar pessoalmente com o senhor reitor. Na caminhada no entorno do casarão da avenida Dom Joaquim tínhamos a primeira chance de conhecer o homem que assumiria os destinos da Igreja Católica em Pelotas.
Em 1969, já iniciara meus estudos naquele instituição, dom Jayme se tornou bispo auxiliar. No entanto, durante muito tempo as pessoas o chamavam pelo tratamento de “padre”, especialmente jovens e casais que buscavam orientação espiritual. Passou o tempo e acompanhei o pastor que se preocupava em fazer funcionar as pastorais, dinamizando a capilaridade que as paróquias e comunidades dão à Igreja Católica. 
Como toda a figura pública, pode se contar aqueles que o amaram e aqueles que o odiaram. Mas, em nenhum momento, acusar de incoerência com seus princípios. Em tempos difíceis, como o final da ditadura, precisava ter a voz do equilíbrio e da sensatez - sem perder o profetismo - a capacidade de evangelizar e testemunhar, com a prudência de fazer com que andassem os vagarosos e refrear os mais dispostos a investir em mudanças sociais.
O religioso que percorreu diversas instâncias de representação, também dentro da Igreja Católica, sempre foi ouvido em nível estadual e nacional, e passou a ser referência quando esteve à frente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Sem perder a simplicidade, conhecendo a maior parte do seu rebanho e, muitas vezes, provocando quem chegasse a uma Missa com uma simples expressão: “o que tu tá fazendo aqui?”
Voltei a conviver com ele em 2017, quando o levava para celebrar a Missa no Santuário de Guadalupe. Como tínhamos um histórico de “provocações” fui cobrado de porque resolvera reencontrar alguém de quem estivera afastado. A resposta era simples: eu não precisava de nada dele, nem ele de mim. Apenas o retorno ao convívio com alguém pelo qual sempre tive respeito e admiração.
O afastamento de funções de direção seleciona “amizades”. Resignar (como a Igreja chama a aposentadoria) é tempo de silêncio, amadurecer para o estágio onde se acumulam conhecimentos e lembranças... Completar 50 anos como bispo é graça! O que distingue alguém como o sempre "padre Jayme" são as marcas do seu testemunho e espiritualidade nos corações. Que o tempo não apaga, gravadas a partir de seus sonhos, concretizados na crença de que nunca abriu mão dos alicerces da sua fé!

domingo, 14 de abril de 2019

Páscoa: um pacto pela esperança

O tempo estava fechando. Nuvens feias encobriam o Gólgota. Um vento frio fazia as pessoas se encolherem e se encostar umas nas outras. Maria fechou os olhos acreditando que a dor se tornaria suportável. As memórias afetivas voltaram. Sentiu as pernas estremecerem ao visualizar a pacata casa de Nazareth de onde contemplava as coxilhas que se espraiavam por sua janela e a pequena aldeia que ficava tão perto.
Ali foram felizes. Tinham uma família. Jesus assumira José como "pai do coração" e  se sentia orgulhoso de ser chamado "filho do carpinteiro". Rezavam juntos, trabalhavam unidos e passeavam, satisfazendo a curiosidade do menino que parecia não ter fim... E ele crescia em sabedoria "diante de Deus e dos homens".
Depois, encontrou o evangelista Lucas que pediu detalhes do que viu, ouviu e sentiu na prisão de seu Filho e o que passara até sua morte. Estivera com os apóstolos durante o jantar e não quis ficar no lugar da ceia quando Jesus saiu. Permaneceu de longe para não perturbar as orações e foi o motivo para terem acompanhado a prisão.
Viu João e Pedro, mas especialmente as mulheres que a acompanhavam e entravam nos diversos lugares para onde conduziram Jesus. Não entendia porque faziam aquilo. Seria o seu tempo? Era muito cedo, não podia perdê-lo. O filho tinha
apenas 33 anos! Seu coração, no entanto, estava apertado e dolorosamente lhe dizia que era o fim.
Fez a sua própria via sacra percorrendo os palácios e o caminho até um dos lugares mais feios de Jerusalém: o Gólgota, onde os romanos mantinham cruzes erguidas para advertir seu povo de que qualquer contrariedade podia custar a vida. Uma morte lenta, muitas vezes abreviada com o transpassar de uma lança. Aquelas marcas da infâmia eram vistas de praticamente todas as estradas que entravam ou saiam de Jerusalém.
No caminho, um último encontro, quando pensou dizer palavras de conforto e elas ficaram presas na garganta; quando devia consolar, acabou por ser consolada... Em meio ao sangue, machucados e às escoriações, o olhar de Jesus dizia que este era o seu destino e que, depois, ainda havia muita estrada a percorrer. Já não tinha mais forças. Amparada andou o caminho que lhe pareceu tão longo...
Mesmo que seu corpo inteiro doesse com a saudade, sabia que não era o fim. O filho falara em ressurreição: difícil de entender, mas necessário de acreditar. Do anúncio do nascimento ao momento da agonia dera um novo sentido à fé do seu povo. Razão para acreditar que a Páscoa (passagem) a partir de agora, se daria em cada mente, em cada coração. Bem ali onde seu Jesus plantara a certeza de que o homem alcançara um novo pacto com Deus!

Em 2019, feliz Páscoa! E uma abençoada Ressurreição!

domingo, 7 de abril de 2019

A Páscoa da inclusão

Não conheço o Gabriel. Ele foi pauta de uma matéria da RBS TV no último sábado porque teve um gesto inusitado: sendo cobrador do transporte coletivo de Pelotas resolveu aprender a linguagem de sinais para se comunicar com uma passageira, o que lhe valeu o reconhecimento daqueles que precisam desta forma de expressão, assim como dos demais usuários e até mesmo da direção da empresa onde trabalha.
Esta semana antecede as comemorações cristãs da Páscoa. Para os judeus, a saída de um povo do jugo dos egípcios e a tão sonhada busca pela terra prometida. Para os cristãos, lembrança do sofrimento, morte e ressurreição de Jesus. Em ambos os casos, período de passagem, adequado para que se faça preparação - individual ou em grupo - em busca da compreensão dos mistérios sagrados.
O que as duas coisas tem em comum? O Gabriel diz ter sido um desafio aprender a linguagem de sinais. "Treinou" com sua conhecida e tornou mais fácil a vida com outras pessoas com igual deficiência. A matéria queria ressaltar isto: a capacidade de gastar seu tempo aprendendo algo que, mais do que pessoal, tornou-se uma "passagem" do apenas servir como transporte coletivo para uma vivência comunitária.
A Páscoa é - mais do que festa e guloseimas - uma provocação para refletir. Fazer silêncio e, em meio a tantos motivos para se estar "ocupado", gastar um tempo para a introspecção. Não sei se foi fruto disto a atitude do Gabriel, mas é disto que precisamos: achar espaços de sanidade mental onde possamos dar um "alô" para nós mesmos, redescobrindo fórmulas simples de reencontrar as pessoas, não apenas deixando que passem por nossas vidas, mas que deem sentido a ela.
A linguagem de sinais é um jeito de tirar boa parte da população do silêncio. Mergulhar neste mundo é fazer a diferença. Um motivo de aproximação ou a exclusão e a marginalidade. Lutar para que mais "gabrieis" saiam de suas rotinas e sintam-se desafiados a estender a mão é um belo jeito de viver a Páscoa: a passagem do silêncio que deprime para o "barulho" das mãos que gesticulam e aproximam.
Embora os avanços da psicologia, o maior mistério para o homem continua sendo o próprio homem. Ele é capaz de causar dor ao seu semelhante, mas também de alimentar resquícios de esperança. Viver bem este tempo é fazer de pequenos gestos formas inclusão. A generosidade de quem agradece a Deus por todos os benefícios e também estende a mão para um idoso, um deficiente mental, um deficiente físico... o diferente que anda pelas ruas da cidade reclamando o direito de ser reconhecido como gente, apenas um cidadão pedindo ajuda para viver a sua própria Páscoa!