terça-feira, 14 de maio de 2019

Deixamos rastros...

O rapaz que desceu do carro não tinha pressa. O cuidador segurou a porta e a conversa fluiu como se fossem velhos amigos. Quando saiu, tinha nas mãos uma mochila e o casaco, pronto para uma reunião ou atender a um cliente. Nos poucos minutos que ficaram juntos falaram de futebol, como ficaria o tempo e ainda perguntou pelo filho mais novo do flanelinha que estivera doente. Mas foi o olhar com que seguiu o jovem "executivo" que chamou a atenção: encontrara alguém que o respeitava, se importava com ele e não o tratava como apenas pertencendo a uma estatística social.
O jovem faz parte daquele grupo de pessoas que não faz "discursos" (possivelmente também não escreva textos a respeito) sobre as desigualdades sociais, mas tem, na sua própria carga genética, a compreensão de que as diferenças de classe tornam-se mais difíceis de serem superadas se não houver, de ambas as partes, preocupação com o elemento chave de qualquer relação: o respeito pela pessoa!
Lya Luft fala do acumulo do lixo moral: "o cinismo, a ganância, a fome de poder, as negociações disfarçadas com palavras rebuscadas e até solenes..." de pessoas que prostituem o sentido  das palavras até que elas se tornem insossas e sem graça. Mensagens ouvidas nos cansados e surrados discursos políticos e também parte da argumentação de lideranças de todos os níveis - inclusive religiosas.
Gosto de perfumes marcantes. Não aqueles que poluem o ambiente, mas os que deixam flagrância no ar. Um deles - do desodorante masculino que uso - brinco, é o perfume de "talco de velhinhas" - memória de pessoas idosas, avós... Sensação de que está no ar um pouco da identidade de alguém, faz procurarmos no entorno pessoa diferenciada, por ter deixado uma marca afetiva em nossas lembranças ou chamado a nossa atenção. J.J. Camargo fala da "generosidade do silêncio", onde o rastro que deixamos é proporcional ao interesse que demonstramos pelas pessoas.
Na forma como cuidamos e nos preocupamos com as pessoas estabelecemos marcas que somente a vivência de um amor recíproco e generoso é capaz de deixar. No olhar do cuidador de carros - assim como das pessoas com as quais se convive e são, de alguma forma, especiais - aprende-se que é impossível conjugar o amor no passado: as pessoas que partiram não podem "ter sido amadas", pois perde o sentido de terem frequentado nossas vidas se não fizerem parte, no presente, da realidade afetiva: é o rastro de generosidade de quem reparte um pouco de si nas próprias lembranças, mas também quando fala de futebol, do tempo, da saúde do filho de um amigo...

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