domingo, 17 de outubro de 2021

Mulheres que dão sentido às palavras

O boteco do meu pai - que orgulhosamente chamava de bar e armazém Raulin - foi a única atividade que teve quando chegamos de Canguçu. A transição de agricultor e prestador de serviços em granjas para o atendimento de público não deve ter sido fácil. Mas se confirmou o dito de que “ao lado de um grande homem, tem sempre uma grande mulher”. Nunca vi o pai e a mãe discutir, se revezavam atendendo. Durante o dia, as necessidades básicas para as refeições e, ao final da tarde, os vizinhos que voltavam do trabalho e queriam tomar um aperitivo antes de chegar em casa.

Um dos pontos fortes era a venda de querosene (naquele tempo não havia energia elétrica na Vila Silveira e se usavam lampiões), que reforçaram com uma cancha de bocha, além de carnear pequenos animais (lembro de porcos), vendendo as carnes e miúdos e, coroando tudo, assando a cabeça do bendito bicho para um sorteio que sempre tinha uma grande procura. Entregue com o reforço de uma garrafa de vinho. Esta já era a parte da mãe. Que ainda capitaneava parentes que vinham ajudar para transformar uma parte em embutidos, especialmente morcilhas e linguiças.

A dona França ainda era responsável por cuidar da venda, depois do almoço, quando o pai tirava uma sesta. A hora era calma e ouvia suas novelas preferidas pelo rádio, acompanhada de uma das vizinhas, ainda lembro da Cenaide e da Izalbina… Mas os tempos eram bicudos e tinham quatro filhos para criar. Novamente, a contribuição vinha da mãe, que costurava, tricotava e produzia as “sobre-meias” (ainda lembram, Mano/Dario e Ângela?), com lã grossa que se colocava sobre as outras mais finas, em dias muito frios, e que se podia andar com elas por dentro de casa.

Também haviam os “quitutes”… Um bom jeito de minimizar o efeito do álcool do martelinho eram os ovos, devidamente cozidos e postos em conserva. Ou petiscar um torresmo feito com parte da gordura e das carnes de porco. Para quem preferia os doces, havia as tradicionais rapadurinhas, tanto as de amendoim moído (paçoquinhas), quanto as “quebra-queixo” caseiras, à base de calda de açúcar e amendoim. Sem contar a produção de mocotó, que, naquele tempo, era uma iguaria de fim de semana, com a preparação iniciando sábado de madrugada e entrega no domingo ao meio-dia.

Conto tudo isto para prestar homenagem às mulheres que trilharam, par e passo, os difíceis caminhos de migrarem do interior para reiniciar a vida em busca de melhores condições para suas famílias. Já escrevi sobre a dona Braulina, a mãe da Neida, que praticava a solidariedade sem ter noção do significado desta palavra. Mas que fazia dos seus gestos e atitudes uma demonstração viva da sua generosidade. Pois a mãe, pra mim, é sinônimo de mulher empreendedora, que não se curvou à pobreza, mas se “reinventou” e se fez companheira de uma longa e penosa jornada.

Mulheres que dão pleno significado às palavras. Sensíveis quando levantam os olhos em direção ao outro, sabendo de suas fragilidades e que fazem a diferença. A prática de conceituações positivas – como solidariedade e empreendedorismo – é um sonho. O sonho da humanidade de compreender, no dia a dia, o valor e a extensão de cada conceito. Somos bem mais do que nossas palavras, que se manifestam em atitudes, gestos, carinho, compreensão, a responsabilidade de uns pelos outros! Um desafio para, em qualquer situação, não ficar sós e não permitir que alguém agonize na solidão!

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