terça-feira, 28 de janeiro de 2020

O detalhe que concretiza a solidariedade

A ligação da Nilza Vitória era para fazer um apelo: seu grupo fornece alimentação a pessoas em situação de carência e precisava - para fazer a entrega - de algo bem simples, mas que, nos últimos tempos, estava se tornando difícil de conseguir: caixinhas de leite. Onde o alimento pode ser acondicionado e se mantém, por mais tempo, conservado de forma prática e higiênica. Na conversa, contou do pedido que fazem aos finais de semana na Igreja do Seminário.
Contam com a colaboração de alguns, mas precisam - além da massa que é uma doação constante - de arroz, feijão, azeite... Tinham estudado a encíclica do papa Francisco que fala sobre Ecologia e acreditavam ser o momento de pedir a contribuição da população sabendo que, também, é uma forma de reciclar este material que vai para o lixo comum em tão grande quantidade. Um processo de conscientização por tabela. A ecologia ambiental abrindo espaço para a ecologia humana...
Quando falou das pessoas que atendem lembrei de matéria recente onde menino de cinco, seis anos postou na Internet que pretendia leiloar "pintura" - desenho feito numa folha de papel - da irmã para recuperar a casa - se é possível chamar assim espaço comum com quarto, sala, cozinha... Bem falante e articulado era o retrato do potencial entre crianças que vivem em favelas e vilas precisando - estes sim - de apoio público e social para que não apenas sobrevivam, mas tenham perspectiva de vida.
O Banco de Alimentos Madre Tereza de Calcutá e o Banco de Alimentos de Pelotas - além de diversas iniciativas de grupos religiosos e sociais - têm atuação fundamental para minimizar a miséria silenciosa encontrada na periferia da cidade. O desemprego e a fome, muitas vezes, andam juntos. Mesmo que se fale em melhorias, parcela da população entrou letargia: desconhecem direitos e oportunidades, lhes falta educação básica e uma triste cultura do "deixa assim pra ver como é que fica!"
Alguém disse que "alimentar esta gente faz com que não queira pegar no pesado!" Deveria se dar condições de trabalho (a vara para pescar) para que, depois, pudessem comer. Usando da mesma figura, poderia se dizer que, mesmo para chegar ao rio é preciso ter alguma coisa na barriga que dê energia para buscar o peixe. Grupos cristãos e espíritas sabem o quanto a prática da caridade - especialmente com carentes e necessitados - é fundamental no plano de realização de qualquer pessoa...
É possível se pensar que estas medidas são assistencialistas e não mudam a realidade. Verdade. Mas, ao olhar para filhos, sobrinhos, netos e vê-los sorrir porque fizeram uma boa refeição, lembre que outras crianças não terão a mesma oportunidade. Não está se pedindo que faça nenhum sacrifício, apenas separe e higienize caixinhas de leite. O detalhe que pode tornar mais leve o seu coração... e concretizar a sua solidariedade!

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Uma cultura do envelhecer

Piadinha: o senhor vai ao médico revisar o aparelho de audição. Testado, o especialista pergunta: "sua família ficou feliz?" Resposta: "eu ainda não contei." Incrédulo, a questão: "porquê?" Sorrizinho zombeteiro: "eles acham que eu não ouço nada... na última semana, mudei meu testamento três vezes..." Foi do que lembrei acompanhando recentes discussões a respeito do celibato dos padres da Igreja Católica provocadas pela participação - ou não - de Bento XVI num livro que trata do assunto.
Quando o papa resignou, comprometeu-se a se afastar do comando da Igreja e recolher-se a um silêncio de oração. Continua escrevendo, mas pelas fotos vê-se que o envelhecimento acentuou-se e, ao invés de ser envolvido por celeuma, precisa de cuidados. Embora todas as pregações sobre a valorização do idoso, a distância entre teoria e prática mostra que, mesmo entre religiosos, disputas por interesses ideológicos e poder fazem perder a noção do respeito pelo ser humano.
O que acontece em nível de instituições também se dá em casas geriátricas e famílias. Por um endeusamento da juventude e falta de uma cultura do envelhecer, acredita-se que, se o idoso tiver cama, alimentação, roupa limpa, atendimento médico, deveria dar graças a Deus... Porquê? Cada vez mais pessoas ultrapassam os 60 anos em condições de administrar as próprias vidas. Precisam, sim, dar-se conta dos seus limites e utilizá-los para vencer o medo do tempo que passa e, especialmente, da morte.
No dia a dia, veem-se casos piores: pessoas que não querem se responsabilizar por idosos, mas saber que bens possuem e se já destinaram para alguém... Fazem-se de atenciosos enquanto têm alguma chance de serem beneficiados e se não houver nada disto envolvido, então... "Mutretas" começam quando convencem o idoso a disponibilizar seu cartão para receber o benefício. É triste ver filhos, netos e pseudoresponsáveis utilizarem para empréstimos e pagar as próprias contas!
A cultura do envelhecer inicia aos 40 anos, no alvorecer da Terceira Idade, quando é preciso prestar atenção a exercícios - fundamentais para se livrar de dores costumeiras, especialmente das "juntas"; criar espaços de sanidade mental, tanto individual como em grupo; ajudar a cuidar de filhos e netos, mas, especialmente, transformar moradia em lar, lugar para cultivar plantas, ter seu animalzinho de estimação, ler, assistir filmes, ouvir música e aproveitar as redes sociais como janela aberta para o Mundo.
A lembrança do que aconteceu com o papa é porque também a sociedade precisa se preparar para envelhecer... E sair de cena! Viver mais não significa maior qualidade de vida. Um idoso pode até parecer "um sem noção" porque a memória e a inteligência lhe pregam peças, sem apagar a sua - e nossa - história... Como diz Cecília Sfalsin: "passam-se os anos e o que fica são as marcas de um tempo vivido, sentido e vencido".

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

A fragilidade da esperança pela paz

A possível guerra entre o Irã e os Estados Unidos não é a repetição de um filme onde se percebe claramente quem são os mocinhos e quem são os bandidos. Neste caso, está mais para a brincadeira de criança onde as provocações começam por pequenos gestos até que alguém tenha que apartar o que chegou às vias de fato. Só que, na atualidade, não se vê alguém, em nível internacional, capaz de "separar" os dois brigões...
Os iranianos há muito tempo batem na canela dos americanos, justificando pelo fato de que não concordam em que os EUA se auto-proclamem xerifes da humanidade, com direito (com frágil objeção na ONU) de intervir onde julgar necessário sob o pretexto de proteger seus cidadãos. Novamente, quando o mar e o rochedo se enfrentam, quem  sofre, na maior parte dos casos sem saber os reais motivos, é a população civil.
Disputas e contendas podem ter diversas falsas motivações, como questões religiosas ou de manutenção da democracia. Mas elas acontecem por motivos econômicos, disputa de poder ou vaidade. Religião é desculpa que diversos grupos (inclusive igrejas) utilizam para mascarar seus reais motivos. E democracia, nem se fala, sofre como desculpa nas mãos daqueles que são democratas no quintal dos outros...
O problema é que se o mais fraco tem um canivete o outro tem uma metralhadora. No frigir dos ovos, muitos "líderes" disfarçados de gente boa estão dando um osso para ver uma boa briga e o que sobra, porque esta não é apenas uma disputa entre pivetes, mas de gente grande que dá o primeiro tiro sabendo a quanto vai o preço do petróleo, as bolsas de valores e os países que serão afetados pelo comércio internacional.
A provocação iraniana vinha se dando na "medida certa". Acontece que erraram na dose quando (por erro humano ou não) acertaram um avião civil com cerca de 180 passageiros. Da potencial simpatia que poderiam conquistar, sobraram dúvidas e gente que começou a achar que tinha apostado na mão errada. A certeza de que rapidamente conseguiria outros sócios na empreitada foi por água abaixo.
Quem acha que a disputa no Oriente não afeta nossa calma e pacata vidinha em Pelotas está enganado. Veja o que acontece com o preço do petróleo, que influencia o valor da gasolina e do diesel, repercute no frete da produção do país e chega ao preço do pão na padaria... Esta cadeia que acaba na mesa ou em serviços é tão complexa que, na maior parte das vezes não se conhece por preguiça de entender a macro Economia.
Golda Meir dizia: "não é possível apertar as mãos com punhos fechados".  As vozes mais sensatas já se dão conta de que o medo é que as escaramuças se tornem base para um conflito internacional que acabe de vez com o já fragilizado diálogo na região.  Então, é rezar e torcer para que mãos e corações abertos encontrem caminhos que não deixem morrer e revigorem a esperança pela Paz!

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Dilema entre fé, religião e presença social

Nossos tempos exigem figuras de referência que, com a mesma facilidade com que são alçadas ao sucesso, também caem no esquecimento. Isto se dá em praticamente todos os setores, passando pela política, economia, comunicação e, até, religião. Se olharmos para a área da produção musical, vemos supostos artistas que surgem como numa pancada de chuva de verão para, em seguida, desaparecer sem deixar rastros.
Quando Francisco foi sagrado papa, a mídia que trata das questões com mais superficialidade - por julgar que é exatamente isto o que atende às massas ou por incompetência de contextualizar a informação e protagonistas - acreditou que surgia uma figura que serviria para atender às demandas de uma sociedade que se encontra sedenta por manifestar sua fé... mas olhando com desconfiança para as religiões.
Francisco seguiu sua jornada fazendo aquilo que sempre fez: tinha uma história como homem de Deus e pensara que, chegando aos 75 anos, poderia resignar (aposentadoria para os bispos, arcebispos e cardeais) e recolher-se ao silêncio da oração e do serviço pastoral. Escolhido, enfrentou muitas dificuldades, em todos os sentidos - interna e externamente - dando uma nova perspectiva para se viver a fé, na religião Católica.
Quem procura por um banco de imagens na Internet encontra o papa em situações onde é carinhoso e atencioso com crianças, idosos, excepcionais, deficientes físicos. No entanto, "desiludidos" porque Francisco não fez o que gostariam que fizesse: expor as entranhas da Igreja sem ter uma solução para seus problemas, encontram em factoides a chance para mostrar seu "descontrole" e "agressividade".
O papa é um pastor - da forma como não se via desde João XXIII  - e raramente se vê entre padres e bispos. Tivemos pontífices políticos e intelectuais, mestres em negociação internacional ou especialistas em diversas áreas do conhecimento. Hoje, precisamos de homens que se preocupem e cuidem dos outros, sem tecer longos e cansativos discursos sobre fé, esperança e caridade, que não condizem com a prática...
Não vi o filme "Os Dois Papas"... mas já gostei. Não tenho Netflix e infelizmente, espero que chegue aos cinemas de Pelotas (assim como "O Irlandês" e "Downton Abbey"), mostrando a "humanidade" de dois homens: o papa que resigna e outro que, novamente como João XXIII, não aceita "mandato tampão", certo de que a graça do Espírito sopra sobre os cardeias para iniciar as mudanças tão necessárias à Igreja.
"O amor tem muitas faces. É um erro pensar que podemos viver sem amor". Com sua correspondente, a misericórdia: "o pecado é ferida, não uma mancha. Precisa ser curada, tratada, e o perdão não é suficiente". Bom caminho é resistir a receitas fáceis: alimentando a fé, no encontro pessoal com Deus; vivendo uma religião, expressão da fé de cada um; e o mais difícil: presença social, prática efetiva - e afetiva - da caridade!

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Um intervalo de tempo que se chama vida

Levantamentos apontam mais gente vivendo acima de 60 anos do que a faixa etária inicial, até os 14. Para analistas de plantão, significa um "mercado" que deve ser olhado com atenção e recebeu um nome pomposo: "economia prateada", a dos cabelos que, quando já não caíram, perdem a coloração e se tornam multicor... Um fato: grande número de aposentados o faz não porque deseja se livrar das atividades de um emprego, mas, tristemente, por não haver mercado de trabalho para a sua idade.
O passar dos anos mostra o quanto é difícil se preparar para envelhecer. Especialmente quando a própria sociedade não tem noção do que fazer com os seus idosos. Numa tentativa de compensar, aqui e ali, surgem grupos que procuram qualificar a vida daqueles que não pediram para prolongar a sua existência e que, em muitos casos, sentem que se tornaram mais um peso para familiares do que a graça de uma vida que já deu frutos e mereceria carinho e compreensão.
Na virada do ano recebi um vídeo pelas redes sociais de um grupo que trabalha com idosos lutando com doenças como o Alzheimer e a demência. Percorrem instituições que abrigam velhinhos e dão de presente bebês/bonecas (com roupinha e tudo) e bichinhos de pelúcia. A reação é impressionante: o sorriso farto, as lágrimas que rolam, a surpresa e a vontade de ver, abraçar e acarinhar, na lembrança dos tempos em que tinham no colo filhos, netos, animaizinhos de estimação...
Quando a mãe - dona Francinha - morreu, já tinha uma coleção de bonecas. Uma delas, um anjinho que rezava o Pai Nosso, embarcou junto na sua última viagem... Em certos momentos, alcançávamos para ela, que passava um longo tempo olhando, desenhando com os dedos os contornos do "nenê", assim como a acompanhavam nas vezes em que esteve hospitalizada. No final do dia, era com o anjinho nos braços que rezava a oração universal antes do beijo de boa noite e o apagar das luzes.
Não sei se a mãe viveu mais ou menos do que deveria viver. Mas sei que pequenos detalhes tornam a vida mais suportável, aqueles que se fazem no varejo e não no atacado. Um idoso não precisa de longas conversas, roteiros de viagens ou aquilo que o dinheiro ou o poder podem obter. Apenas carinho e sensibilidade por parte de quem cuida. Sem "idiotizar" ou "infantilizar" a velhice, gastando quanto tempo for preciso para um olhar ou segurando mãos enrugadas que sorvem vida por nossos dedos...
Entre o início e o fim há um intervalo de tempo que se chama vida. Lamenta-se a infância e a juventude "perdidas" sabendo que se colhe aquilo que se plantou. A receita é a mesma para 2020: idosos precisam manter-se ativos - física, mental e espiritualmente. E rezar para que, quando se extingue o último suspiro, haja alguém - ou um objeto de nossa memória afetiva - que faça a ponte entre nós e a Eternidade...

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Crônica de um Natal para os avós...

A menina aproximou-se do presépio. Depois de olhar com admiração para a cena - com as explicações do pai - perguntou: "Jesus não tinha avós?" O rapaz respondeu que sim. A tradição contava que eram são Joaquim e Sant'Ana. E a pergunta seguinte o surpreendeu: "porque eles não estão no Presépio? Será que estavam numa casa de repouso?" O pai ficou para trás observando os detalhes das pequenas figuras e imaginando o que, naqueles tempos longínquos, teria  passado por suas cabeças...
Maria esperando seu primeiro filho. Sozinha, num lugar distante da cidade, longe de casa, apenas com José. As condições eram precárias. Conseguira colocar uma manta sobre a palha estocada. Já pensando no depois, teria que arranjar o cocho onde os animais se alimentavam para acomodar seu filho. Queria ter alguém que a pudesse auxiliar, especialmente a mãe. Ela saberia o que fazer primeiro, como se organizar e ajeitar o menino depois do nascimento. Mas aprendera a ter confiança em Deus...
Sant'Ana caminhava da casa em direção à porteira e voltava. São Joaquim estava nervoso com a mulher. Alertou: "Ana, a Maria tá bem. José tá junto. Vai cuidar bem deles!" Nem recebeu resposta. A mulher pensou: "homens. Não sabem como é difícil viajar esperando um filho. Será que ela levou tudo o que precisava? Meu Deus, não posso fazer nada!" Incapaz de ajudar e aflita por ter visto a filha se por a caminho tão bonita com aquela barriguinha já demonstrando que seu neto nasceria logo.
Dias depois, ao longe, viu a família voltando. Maria montada num burrinho com o menino Jesus no colo. Trôpega, andou em direção aos viajantes. O pequeno fardo era a coisa mais linda de se ver... Reverente, pediu para pegá-lo. Era como se Anjos murmurassem em seu ouvido e dissessem que ali estava o Salvador tão esperado por seu povo. "Ele é lindo! Muito lindo! Que Javé o abençoe!" Não havia mais o que dizer, a não ser contemplar aqueles traços serenos que, agora, a olhavam com atenção.
Ficara atento ao que via no Presépio e levou algum tempo para perceber que a filha e a mulher voltaram e queriam saber porque ficara ali parado. Não sabia explicar. Passou o braço por sobre os ombros da menina: "mana, tu já ligou para a vó e o vô pra dar um abraço de Natal?" "avós", corrigiu a esposa. "Verdade. Vamos fazer isto hoje, quando voltar para casa? E tenho uma proposta: quem sabe a gente procura uma imagenzinha de Sant'Ana e São Joaquim e colocamos em nosso presépio?"
Poderia ser a crônica de um Nata para os avós... Sant'Ana e São Joaquim não ficaram numa casa de repouso na velhice. Esta é uma marca da sociedade do nosso tempo, para o bem... ou para o mal. Parece tão pouco - um telefonema - mas para quem passa um longo tempo sozinho é aquilo que o Natal tem de melhor: a esperança, afago no coração de quem merece cerrar os olhos sabendo que plantou o amor em seus filhos e netos... E tem o direito de colher, ao menos, um pouco de carinho!

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Um tempo precioso para se viver

Ler ou assistir adaptações da obra de Charles Dickens, “Um Conto de Natal”, é mergulhar num mundo diferente para viver este tempo. Faltando uma semana para as festas de final de ano, o também chamado "Espírito de Natal" é convite a que se mergulhe na busca pela compreensão da própria história, desde encantamentos, passando por decepções e a capacidade de amadurecer, com o que é mais certo que se faz na vida: acertar ou errar, cair ou levantar, a busca por amar e ser amado...
A garota voltou para casa. Durante muito tempo abominara tudo o que sua família representava. Vagou pelo Mundo e mergulhou de cabeça na busca pela realização pessoal e profissional. Em todos os lugares, encontrava muita coisa que a satisfazia, mas também não conseguia deixar de comparar com o lugar de onde tinha saído. Era a sua "aldeia", onde era "vigiada", "aconselhada", e sentia "tolhida a sua liberdade".
A mãe acomodou-se na cadeira. O filho sofrera acidente de moto. Estava inconsciente, possivelmente passaria o Natal naquele leito. Ela não sairia dali. O seu "menino" andava em más companhias e pensava nas vezes que responsabilizara o marido por não ser mais firme. Um jogo de empurra/empurra em que ninguém saiu ganhando. As relações estavam desgastadas e seria difícil pensar em comemorações, até as religiosas.
A mãe cuidava da filha na cadeira, comendo com a colher. Algumas colheradas na boca e outras na volta. Doiam-lhe as costas, braços e o sono estava atrasado. Os filhos mais velhos estariam fora e o esposo trabalhava até tarde. Faria encomenda na padaria e que o marido pegasse o que serviria na ceia, para não esquecer a data. Foi atingida por uma colherada de comida e deu-se conta de que havia muita sujeira para limpar...
Véspera de Natal, tocou a campainha e esperou. Ouviu o cachorro do irmão, que, para implicar, chamava de vira-lata. E o tradicional: "já vou", da mãe. Quando abriu a porta, um susto e um sorriso. Apenas um murmúrio: "filha", sem mais nada a não ser um abraço. Estava de novo no que nunca entendeu, mas que sempre seria o seu lar!
A mão que a mãe segurou no leito de hospital reagiu pela primeira vez. Chorou baixinho pedindo a graça de não perder o filho... e tornar-se a mãe que, sabia, ainda poderia ser! E quando os foguetes espoucavam na rua, o pai abriu a porta do apartamento e se deu de cara com a cena: televisão ligada baixinho, a mulher dormindo na poltrona e a pequena sorrindo aconchegada em seus braços...
É o espírito de Natal: momento de voltar, de reencontrar a vida, de entender que nem para tudo o que se vive se precisa de explicação. Não são coisas novas que fazem valer a pena viver: há motivos para reencontrar velhas e surradas rotinas; entender a fragilidade da dor e do desamparo, sem perguntas ou "conselhos"; ou viver a "doçura sem sentido" de gastar uma vida para que outra se desenvolva. Um tempo precioso para amar e cuidar... Um tempo precioso para se viver!
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