domingo, 4 de fevereiro de 2018

A razão de não perder a esperança

Meio da tarde durante a semana. A campainha toca. Não é horário comum de visitas. Vizinhos e conhecidos sabem que é tempo de tirar a dona França da cama, fazer a higiene e o café. No portão, a alegre surpresa: dona Braulina, a vizinha com seus quase 90 anos, querendo fazer uma visita à sua amiga de longas décadas.
Nas mãos traz duas rosas e um pequeno embrulho. A primeira pergunta é se não está incomodando. Claro que não. Levo-a até a poltrona onde a mãe está recostada. Coloco uma cadeira de tal forma que fiquem quase frente à frente. A mãe em seu estado de letargia, na sonolência onde ouve, mas muito pouco fala.
Dona Braulina com dificuldade de visão (restou-lhe uma vista) e pouca audição, mas que faz questão de estar junto à amiga com a qual teve uma história de convívio na criação dos filhos, trabalhando juntas nos finais de ano nas fábricas de conserva e capacidade de atender àqueles na vila que precisassem de um pouco de atenção.
Duas rosas para serem colocadas na gruta de Nossa Senhora Aparecida - devoção comum - e no pacote um pano de secar louça, feito em saco de farinha, com desenhos de elementos da cozinha. As duas ainda colocam seu esteio na fé, ambas ainda sentem que estão numa casa, dela fazem parte e querem sentir-se úteis.
A visita já sabe que sua amiga pouco ou nada vai lhe falar. Mas vai escutar. Vivem a lição do quadro "Poesia com Rapadura", do programa Fátima Bernardes, onde o repentista poetou: "a vida é uma corrida que não se corre sozinho. Que vencer não é chegar, é aproveitar o caminho".
Elas já percorreram o caminho. Agora olham para trás e veem seus acertos e erros, alegrias e tristezas. Cumpriram - e bem - a sua parte, porque deixaram marcas nas famílias e nas comunidades onde viveram. Estão interligadas pelas teias da vida que as tirou do interior e as fez desbravadoras para buscar dias melhores para seus filhos.
Coloquei as flores no vazo em frente à imagem. Embora não saiba como era o rosto de Maria, creio que não ficaria incomodada se eu pensasse que tinha os traços e o jeito de dona Braulina. Mulher, mãe, que o sofrimento não foi capaz de alquebrar o espírito, ao contrário, as tornou mais experientes e mais capazes de enfrentar a vida.
No tempo que ficou junto da mãe poucas palavras foram ditas, mas muito amor foi sentido. As "Marias" de nosso tempo ainda hoje cumprem sua missão: a mãe continua sendo "mãe"... mesmo que hoje seja hora de retribuir todo o cuidado que já teve pelos filhos. Retribuindo com um doce olhar o carinho que recebe.
Dona Braulina ainda percorre as calçadas da nossa rua sem perder os elos que - muito mais do que a ligar ao passado - alimentam a certeza de que sua existência teve uma razão de ser. Das muitas perdas que foram ficando pelo caminho, soube - mesmo sentindo muita saudade - fazer do presente a razão de não perder a esperança!

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