domingo, 17 de setembro de 2017

Sorver o gosto da vida

Meu pai foi o primeiro a chegar em casa com sua carteira de identidade contendo um selo onde declarava ser doador de órgãos. Discussões à parte, muitos de nós seguimos seu exemplo e passamos a contar com a identificação, assim como - enquanto me foi possível - me transformei em doador de sangue.
Uma matéria de televisão mostrou a senhora que iniciou tratamento químico e espera por uma doação. Mas quer casar. Entrou na igreja sem o véu, com uma bandana já que seus cabelos caíram. Abertas as portas, a surpresa: as madrinhas também estavam com uma bandana, ao invés de cabelos preparados e enfeitados para a ocasião!
Lembrei desta matéria ao acompanhar campanhas que lutam para que, de todas as mortes, ao menos algumas deem sentido àqueles que dependem de um gesto de boa vontade - especialmente da família de quem faleceu - para continuarem vivendo.
Uma delas mostrava a mãe arrumando a roupa do filho adolescente enquanto ficava atenta ao telefone para não perder a oportunidade do transplante e manter viva a esperança de uma vida saudável. De outro lado, a mãe que também acariciava as roupas do filho que não teve a mesma sorte.
Esperou o quanto possível, mas a doação necessária não chegou. Era tempo, então, de lutar por aquilo que tanto desejaram: fazer a morte do filho se transformar em vida. Seus órgãos foram doados. Um dia reencontraria aqueles que deles se beneficiaram. Era o jeito que seu menino lhe dizia para não desistir.
Encontrar esta motivação para viver pode estar na própria pessoa, mas também na solidariedade de quem está próximo e da sociedade. As mesmas pessoas que batalham por uma doação de sangue - individualmente, entre amigos ou grupos sociais - ou estampam em suas identidades que disponibilizam seus órgãos - precisam estar atentas para aqueles que, gradativamente, desistiram de viver.
Sorver o gosto da vida é uma experiência individual. Mas, com a mesma palavra, forma-se o verbo "conviver", que intensifica esta experiência, potencializa sua ação. O gesto das amigas da noiva, aqueles que convivem com a perda, ou aqueles que ainda têm esperança guardam o mesmo fio condutor: a solidariedade que nos faz mais humanos. É o que impede alguém de desistir e alimenta o sentido da esperança, único caminho possível de colocar no horizonte um pouco de felicidade.

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