Crônica publicada no meu livro Remendos e Arranjos
Quando os deuses espalharam a
chama do saber, destilaram uma fagulha privilegiada para a poesia. E lançaram
uma maldição: os mortais não poderiam vulgarizar este dom. O homem teria que
merecer para ter acesso ao mundo que transcende a linguagem, onde significado e
símbolo se confundem.
Mas em sua curiosidade
infinita, o homem esqueceu da maldição e lançou-se, desenfreadamente, a tentar
captar o seu significado. Deixou-se tentar pela sonoridade das palavras, pela
cadência que se estabelece quando, lendo um poema, apreendemos um universo que
pode ser distinto do criado pelo autor. E julgou poder transformar tudo o que
pensava em poesia.
Esqueceu que este é o momento
em que o homem remexe nas sombras lançadas sobre as paredes das cavernas e,
mesmo não chegando à luz que lhe dá sentido, alcança a imagem e consegue,
timidamente, se apropriar de seu significado. Perigosamente, próximo ao
sentido. Consequentemente, próximo aos deuses.
A cada poema escrito, a cada
imagem transposta, há um sentimento de frustração a ser assimilado, partilhado
com o homem primitivo que, na noite, contempla as estrelas e tem medo do
desconhecido, de uivos, gemidos, sombras que não se concretizam.
Para o homem, nas palavras, se
revelam imagens que emergem quando se constrói um verso, socializam um
sentimento que, a ser guardado, perde a razão de ser.
Esta é uma parte da maldição.
Nunca poderemos estar plenamente realizados ao dar forma ao que é pura
expectativa. Por mais que o autor exprima o que sente, sempre haverá algo a ser
dito, deixando um quê de finitude - os deuses que se deleitam em nossa
carência, brincando com nossos arroubos de estender as mãos, em direção ao
Olimpo.
Ao acordar, a mão ainda
permanece estendida e, quase sempre, uma lágrima nos reconduz à mera condição
de mortais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário