Já é repetitivo dizer que, muitas vezes, a realidade supera a ficção: inclusive de que até os ficcionistas não se animariam a imaginar algumas coisas que estão acontecendo, dos avanços tecnológicos à triste desfaçatez de figuras públicas. Avança-se nas conquistas científicas em que uma parcela menor se apropria dos benefícios (saúde, segurança, alimentação...), com investimentos que apontam para o espaço, enquanto “espaços” imensos sobre a terra ainda veem pessoas “apenas” lutando pela sobrevivência...
Quando ouço comentários sobre minhas recordações e
digo que meu público é feminino/geriátrico (obrigado, queridas amigas e
amigos), estou reconhecendo que, às vezes, o que me resta é me refugiar em
memórias de tempos passados. Não chego a me atrever a dizer que eram “bons
tempos”, porém, eram de relações mais simples, mais diretas, com menos
tecnologia, mas, com certeza, com bem mais humanidade. Uma humanidade que
transparecia pela proximidade física (vizinhança) e pelas amizades.
Por incrível que pareça, pensei nisto num final de tarde quando voltava para casa e vi um ônibus de linha que ia em direção ao centro da cidade. Espiei para dentro para ver se havia algum rosto conhecido. Despejou-se um balde de lembranças dos tempos em que, em qualquer horário, sempre havia alguém conhecido para abanar e sorrir. Óbvio que não vi quem me acenasse, mas cavouquei os tempos em que eram os “veículos oficiais” que levavam e traziam ao trabalho, aos estudos, aos passeios, ao futebol, às compras...
Em casa, o almoço era rápido e se partia para onde
se concentrava a turma para esperar o ônibus. Ali se davam as conversas, as
algazarras, as combinações de programas para o fim-de-semana, ir à avenida
Bento Gonçalves, as peladas pelos campos das vilas e interior e os namoricos...
Embarcar e se concentrar no fundo do carro, num ritmo que parecia de excursão,
até que, pelo caminho, um a um ia descendo, com a promessa de reencontrar o
pessoal no final da tarde ou depois das aulas, quando se voltava para casa.
Ninguém tinha carro, alguns tinham moto, a maioria
tinha bicicleta, própria ou dos pais. Alguns familiares trabalhavam com
caminhão. Então, já era certo de que, ali, em meio a vizinhos e conhecidos da
própria vila, ia se combinando roteiros de praia, passeios para fora, rodas de
samba, filar janta ou almoço na casa de alguém... Na carona de uma moto, ou na
carroceria de um caminhão, sob sol ou chuva, protegido por uma lona, o lugar
não importava, mas o fato da gente estar junto, brincando, se divertindo e
zoando.
Uma geração que viveu olho no olho de quem não se
precisava dizer que era amigo, porque o que importava era que se sabia que se
tinha amigos... Na azaração, nas frias, se se enfrentava juntos ou se fugia, juntos!
O ônibus que passou estava vazio de identidade, faltava calor humano, era
apenas “transporte coletivo”. Sou grato pela técnica que me faz ir mais longe,
alcançar mais gente. Porém, os ecos destas lembranças me dão a sensação de que
sacrificamos a nossa própria história no altar da tecnologia...
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