domingo, 9 de outubro de 2022

Um olhar de humanidade


Andar pelas ruas tem sempre a oportunidade de se aguçar sensibilidades. Não importa se a gente anda apressado como na juventude ou na maturidade, sempre existe aquele momento em que um detalhe nos desvia do olhar de sempre e se percebe que ali existe algo diferente, um outro comportamento, por uma mudança física ou alguém teve uma atitude diferenciada. Se já for um idoso, com mais tempo para perceber os detalhes, a rua é uma escola de vida, a adrenalina necessária para a curiosidade e o coração.

A ocasião em que o menino brincava na calçada com seu caminhão do lixo. Atento para ouvir a chegada do pessoal da limpeza pública, que o conhece e faz parada estratégica para receber da mãe um copo de água e um pedaço de pão. Depois, por longo tempo, o piá olha o veículo dos seus sonhos se afastando e seus amigos continuando a dura tarefa de recolher os resíduos das casas. A mãe já sabe que, no Natal, os garis se aprontam para lhe dar um traje igual ao seu e permitiu que o levassem numa volta pela quadra...

O momento em que o catador de lixo reciclável ouve o chamado do idoso por detrás das grades. Na porta da residência, dois sacos cheios de vasilhas descartáveis, higienizadas, que foram entregues, melhorando sensivelmente a possibilidade do seu ganho. O senhor queria, apenas, alguns instantes de prosa, no que era a necessidade dos dois: um outro que, simplesmente, prestasse atenção na sua existência. O idoso faz parte da estatística dos esquecidos; o catador, que percorre as lixeiras de rua, dos invisíveis socialmente...

A vez em que a mãe alcançava sacolas de roupas fruto do “desapega” para uma pedinte que circulava em sua rua. Era conhecida e, por isso mesmo, reservava peças do marido, próprias e dos filhos para a família. Foi surpreendida pelo filho, que oferecia uma sacolinha de brinquedos, que a dona da casa não viu quando fez, para as crianças que acompanhavam. Chegou a pensar em pedir para ver o que tinha dentro, mas decidiu que era melhor não o fazer, sem importar o que selecionara, e confiar no seu bom senso...

Ainda, a senhora idosa e viúva que gosta de cuidar das plantas na frente da casa e fica atenta às varredoras de rua, quando estão por perto. Ao chegar pelo meio da manhã ou da tarde, chama por elas para alcançar uma recheada e um copo com café, para um lanchinho. Conta para as amigas que é um dos melhores momentos do seu dia. Cuidar da casa a faz sentir-se ocupada; zelar por alguém que, nos poucos momentos em que descansa, muitas vezes, “não tem com que ocupar a boca”, a faz sentir-se solidária.

Histórias da vida real. Não são a regra, na maior parte das vezes são exceção. Importar-se com quem exerce funções que sequer são reconhecidas como dignas e vivem a sua fragilidade, é alerta para o resgate da cidadania. Uma legião de brasileiros nas ruas denuncia a sociedade organizada que, por omissão, se torna cúmplice deste sofrimento. As disputas político-partidárias não solucionam os problemas, mas embotam os sentidos e se perde a capacidade de ter um olhar de humanidade...

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