Andar pelas ruas tem sempre a oportunidade de se aguçar sensibilidades.
Não importa se a gente anda apressado como na juventude ou na maturidade,
sempre existe aquele momento em que um detalhe nos desvia do olhar de sempre e
se percebe que ali existe algo diferente, um outro comportamento, por uma
mudança física ou alguém teve uma atitude diferenciada. Se já for um idoso, com
mais tempo para perceber os detalhes, a rua é uma escola de vida, a adrenalina
necessária para a curiosidade e o coração.
A ocasião em que o menino brincava na calçada com seu caminhão do lixo.
Atento para ouvir a chegada do pessoal da limpeza pública, que o conhece e faz
parada estratégica para receber da mãe um copo de água e um pedaço de pão.
Depois, por longo tempo, o piá olha o veículo dos seus sonhos se afastando e
seus amigos continuando a dura tarefa de recolher os resíduos das casas. A mãe
já sabe que, no Natal, os garis se aprontam para lhe dar um traje igual ao seu
e permitiu que o levassem numa volta pela quadra...
O momento em que o catador de lixo reciclável ouve o chamado do idoso por
detrás das grades. Na porta da residência, dois sacos cheios de vasilhas
descartáveis, higienizadas, que foram entregues, melhorando sensivelmente a
possibilidade do seu ganho. O senhor queria, apenas, alguns instantes de prosa,
no que era a necessidade dos dois: um outro que, simplesmente, prestasse atenção
na sua existência. O idoso faz parte da estatística dos esquecidos; o catador,
que percorre as lixeiras de rua, dos invisíveis socialmente...
A vez em que a mãe alcançava sacolas de roupas fruto do “desapega” para
uma pedinte que circulava em sua rua. Era conhecida e, por isso mesmo,
reservava peças do marido, próprias e dos filhos para a família. Foi
surpreendida pelo filho, que oferecia uma sacolinha de brinquedos, que a dona
da casa não viu quando fez, para as crianças que acompanhavam. Chegou a pensar
em pedir para ver o que tinha dentro, mas decidiu que era melhor não o fazer, sem
importar o que selecionara, e confiar no seu bom senso...
Ainda, a senhora idosa e viúva que gosta de cuidar das plantas na frente
da casa e fica atenta às varredoras de rua, quando estão por perto. Ao chegar
pelo meio da manhã ou da tarde, chama por elas para alcançar uma recheada e um
copo com café, para um lanchinho. Conta para as amigas que é um dos melhores
momentos do seu dia. Cuidar da casa a faz sentir-se ocupada; zelar por alguém
que, nos poucos momentos em que descansa, muitas vezes, “não tem com que ocupar
a boca”, a faz sentir-se solidária.
Histórias da vida real. Não são a regra, na maior parte das vezes são exceção.
Importar-se com quem exerce funções que sequer são reconhecidas como dignas e vivem
a sua fragilidade, é alerta para o resgate da cidadania. Uma legião de
brasileiros nas ruas denuncia a sociedade organizada que, por omissão, se torna
cúmplice deste sofrimento. As disputas político-partidárias não solucionam os
problemas, mas embotam os sentidos e se perde a capacidade de ter um olhar de
humanidade...
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