A cozinha da mãe e o armazém do pai eram as maiores peças da casa, que possuía mais dois quartos. Mesmo não sendo grande, agregava o lugar para receber visitas e o que se chama, hoje, de sala de janta. O fogão ficava sob a janela. Não lembro de pia ou balcão, mas, inicialmente, um fogão à lenha, que depois foi modernizado por um à gás. Uma mesa de madeira tosca, um banco contra a parede, serviam para as lides culinárias, fazer refeições e, ninguém é de ferro, debruçar-se para conversar, ouvir rádio ou jogar cartas.
Ali eu me espichava, sentado ou ajoelhado sobre o banco, para exercer uma
das minhas mais sagradas tarefas de infância: quando necessário, ler e repetir
para a mãe os pontos de alguma receita. Não que ela precisasse. Estudara até a
terceira série, se dava bem nas contas, na leitura e na escrita. Deliciava-me
com cadernos de receitas em que sua letra mais parecia com desenhos. Pela mesa,
anteriormente untada de farinha, se espalhavam as massas, e ganhavam contornos
que pareciam mágica, depois que saiam do forno.
Quando a tarefa demorava, recebia a honraria: manusear o livro de receitas, marcado por dedos lambuzados de gordura ou farinha, páginas amarfanhadas e amarelecidas. Descortinava-se um mundo onde, além do que estava impresso, haviam anotações diminutas nas entrelinhas e nas laterais, além de, muitas vezes, haver um pequeno bloco de anotações no final, para algum complemento ou informação adicional. Dependendo da ocasião, o livro ou o caderno inspiravam o preparo de doces ou salgados.
O livro e o caderno de receitas eram guardados numa gaveta na cozinha,
normalmente, entre toalhas, guardanapos, aventais e apetrechos culinários.
Embora fossem espaços sagrados da cozinheira, a curiosidade infantil não impedia
que se excogitasse, como um lugar de aventura, onde se encontravam bilhetes,
santinhos e fotografias... Não escapavam outras casas em que se fantasiava os
recônditos onde estas preciosidades estariam fora do alcance de nossas mãos, nas
casas de tias e amigas da família.
Enquanto as mães saiam para o quintal ou para a horta a fim de mostrar
canteiros de hortaliças, temperos e flores, percorríamos a cozinha em busca de
“tesouros”, que, muitas vezes, estavam encima de armários, onde, além dos
livros e cadernos de receitas, também podiam ser encontradas as temidas varas
de marmelo... Entre tombos, gritos e ameaças com chinelos, íamos entendendo um
pequeno mundo que centralizava a vida da casa: a cozinha, lugar de convívio e
aconchego, com a principal protagonista, a mãe.
Rogério Gaspar Xavier postou cópia do livro Doces de Pelotas (Globo,
1959). Traz a dedicatória de uma mãe desejosa de que a filha continuasse com a tradição
doceira. Antes de casar, minha irmã, Loci, já manuseava as anotações que
rendiam quitutes em ocasiões especiais. Infelizmente, não fui tão caprichoso ao
ponto de guardar estas referências das minhas saudades. Que bom que amigos,
como o Rogério, ajudam a manter vivas as memórias, com o doce sabor de que a
vida se eterniza em lembranças!
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