domingo, 7 de março de 2021

Sangas, açudes e saudades...

Nos bons tempos em que as férias de final de ano iniciavam no dia 1º de dezembro e iam até o dia 1º de março, quase sempre um dos irmãos da minha mãe vinha fazer uma visita e já levava, “na bagagem”, um ou dois sobrinhos. Era uma longa jornada que prometia ter, no seu final, o convívio com primos e tios, comer muita melancia, banhos em sangas e açudes. Na madrugada, a gente saia do antigo prédio da rodoviária, na esquina da rua Marechal Deodoro com Lobo da Costa, ainda pela estrada de chão que passava por Morro Redondo. Quase no fim da manhã, se chegava a Canguçu.

Na “baldeação” (sempre gostei desta palavra), tinha que se tomar outro ônibus daqueles que, pelo caminho, ia aceitando caixas com porquinhos e pintos; receber e entregar correspondência; passar e ouvir recados. Cada emissor ou destinatário fazia questão de subir a bordo e cumprimentar todos os “viventes” que não via há muito tempo e dar um minuto de prosa. Além de fazer o reconhecimento dos novos visitantes, sempre identificados pela origem: “mas não é o filho do fulano?”, “mas como cresceu!” e a gente já ficava se achando especial, porque estava se reencontrando com as origens.

Ao fim da tarde, desembarque nas Três Porteiras, sob o olhar curioso dos frequentadores do armazém do Antônio Mattos, de onde o pessoal vinha para a rua, aprumava a mão sobre os olhos para mirar melhor os viajantes. Ares e espaços conhecidos, percorridos de carroça ou a pé, tendo as araucárias como referências. Uma boa pernada até a porteira, velha conhecida, que servia de brincadeira cada vez que um de nós era escalado para abri-la, se pendurar e balançar no vai e vem, vendo a tia enxugar as mãos no avental e saber que a saudade seria sufocada por abraços e beijos.

Na casa do tio Ciano e da Tia Toninha, havia um moinho, movido por águas de um córrego. Um dos pontos nos fundos da casa - chamávamos de sanga - tinha múltiplas utilidades: o banho refrescante à tarde, colher e enterrar melancia na areia sob a água para resfriar e onde eram lavadas as roupas e, muitas vezes, nas pedras, colocadas para quarar. O passatempo era se catar todas as pedras possíveis e, num determinado ponto que não atrapalhasse, se construía uma represa que tornasse mais fundo o local de banho. No dia seguinte, pedras, madeiras e terra tinham sido levadas pela ação das águas…

Uma evolução foi quando o tio Graciano e a tia Dinoca construíram um açude para preservar as águas da chuva. Reserva para a plantação que ficava abaixo, assim como criadouro de peixes. Mas, também… um gostoso banho no que, para nós, era o mais próximo que conhecíamos de uma piscina. Em épocas de menos trabalho na lavoura, se passavam longos períodos desfrutando com a parentada que só se recolhia ao final do dia para tomar o chimarrão e sintonizar emissoras de rádio da capital ou de Canguçu, ouvir música tradicionalista e recados dados por parentes ou vizinhos.

Sangas, açudes e saudades… ouço as vozes e vejo tias e primas em afazeres domésticos. Do meu jeito atrapalhado, tento debulhar o milho e elas enchem o avental e percorrem o pátio espalhando para os animais… ou atrelar cavalos ao arado e seguir pela lavoura, revirando e renovando a terra, abrindo sulcos onde novas plantas prosperariam. Pedaços do passado, carregados de nostalgia, que o tempo enquadra nas gavetas da memória. Raízes da identidade, lugares que, de alguma forma, foram construindo nossas histórias e teceram as bagagens que levamos pela vida…

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