terça-feira, 29 de novembro de 2022

Educação: a hora é agora

Os administradores eleitos no estado e no país já estão bem alertados de que precisam voltar os olhos para a educação. É momento estratégico para realizar um pacto por um ponto de corte na linha do tempo do ensino. Eduardo Leite, eleito, se comprometeu com alguns partidos da sua base a implementar o ensino em dois turnos, em um número maior de escolas, afirmando que seu governo vai priorizar a área nos próximos quatro anos. E o governo federal traz nomes reconhecidos, tendo preocupação com o social.

O que é um “ponto de corte”? Não é novidade, países já o fizeram ao compreender que a verdadeira alavanca de qualquer processo de desenvolvimento se constrói priorizando a educação. Reação a um quadro semelhante ao atual: de infraestrutura, superlotação de salas de aula, evasão escolar, para citar alguns problemas agravados nos últimos anos pela Covid-19, que escancarou as diferenças sociais, já que, mal ou bem, escolas particulares conseguem sobreviver, enquanto a pública não tem como se manter.


Para quem acha que isto é conversa fiada, acesse a base de dados do Ministério da Educação. O Sistema de Avaliação da Educação Básica aponta que entre 2019 e 2021 o índice de crianças que não sabem ler dobrou. De 15,5% passou para 33,8%, entre alunos do 2º ano da educação infantil, na faixa entre sete e oito anos. O número mais trágico é apontado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância: dois milhões de estudantes, com idades entre 11 e 19 anos, no país, abandonaram a escola durante a pandemia.

Se já é preocupante a questão do conhecimento, fica mais difícil quando especialistas alertam que a Covid-19 foi elemento preponderante para a falta de sociabilização de parte dos alunos iniciantes. Houve recuo sócio emocional que afetou a individualidade e o desempenho na interação grupal. Com um ensino deficitário, foi atraso que compromete as futuras gerações. Escancara o pensamento de que o acesso qualificado à educação se transforma em privilégio de alguns e não num direito de todos.

Infelizmente, a relação entre cidadão e governo, no Brasil, é clientelista: a candidatura é oferecida, conquista-se o voto e se espera algo em troca. A pregação do “vamos fazer juntos” é somente discurso diante da realidade de uma população que, entre outras, lhe falta a educação política. Por desconhecimento, torna-se refém da própria ignorância. Não é à toa que, por se ter “políticos de estimação” os resultados das urnas são contestados pelo simples fato de que o meu grupo não foi vitorioso. Então, não vale...

Os discursos dos candidatos precisam deixar de ser apenas cartas de intenção e virar propostas concretas. Não importa em quem o senhor ou a senhora votou. A eleição dividiu o estado e o país e vai levar um tempo para sarar as feridas, se é que serão curadas. No entanto, engessar atividades públicas é causar prejuízo maior à parcela da população que sequer consegue entender o porquê do seu sofrimento. A mudança real inicia com a sociedade assumindo que a hora é agora para dar uma virada na educação.

domingo, 27 de novembro de 2022

Minha doce e louca amiga...

Quem chegava ao memorial da Irmã Dulce, em Salvador, na Bahia, nos últimos dias, encontrava como recepcionista uma velha conhecida da população pelotense: a jornalista Carmem Lopes, que por aqui atuou como repórter de geral, na RBS TV, e, depois, também, na cobertura esportiva, especialmente em futebol, sendo a primeira mulher nesta área. Em seguida, alçou outros voos pelo estado e também em nível nacional. Recentemente, reatamos contato pelas redes sociais e pelo whatsapp.

Como se diria antigamente, nos conhecemos em “priscas eras”. Eu assumia a assessoria de comunicação da Prefeitura de Pelotas, no governo do Bernardo de Souza, e a Carmem iniciava como repórter. Facilmente nos tornamos amigos, pelo respeito que tinha pela profissional que já se vislumbrava. Fazendo cobertura de política, era fácil fazer a troca de figurinhas que, se a beneficiavam, também me davam a ideia do quanto alguns assuntos já haviam se tornado público e qual a sua repercussão.

Aposentada, continua com o espírito perspicaz e não sossega. Qual não foi a surpresa quando postou o primeiro vídeo dizendo que estava a caminho de Salvador. Até aí, nada estranho, muitos vão para a capital do Axé fazer turismo, se deliciando com a acolhida e a culinária baiana. Mas não era este o motivo da viagem. Havia se oferecido para trabalhar como voluntária temporária no memorial da Irmã Dulce. Levou a sua competência, o espírito determinado, vestindo, literalmente, a camiseta da instituição.

Por um período, ficou junto ao complexo hospitalar onde um mutirão de solidariedade atende população carente, de forma gratuita, pelos serviços do Sistema Único de Saúde. Na chegada, contou: “foram 2h15 conversando com pessoas e me surpreendendo. É difícil jornalista se surpreender, mas a estrutura que vi num hospital filantrópico, que se mantém só com doações e verbas do SUS, não vi em nenhum hospital que conheci, até hoje”. De surpresa em surpresa, a gaúcha conhecia uma nova e desafiadora realidade.


Confesso, não sabia deste lado espiritualizado da Carmem e a capacidade de fazer promessa intercedendo por amigos. E não pensem que o trabalho é apenas burocrático. Foi convidada a fazer um tour por onde a irmã Dulce andava, pedindo doações durante o dia e, à noite, recolhia os pobres para alimentá-los. Não é um turismo convencional, mas a oportunidade de conhecer o outro lado daquilo que comumente se vê em Salvador e será oferecido àqueles que também sentem a necessidade deste desafio.

A Carmem tem uma “loucura” que só pode ser de Deus. Fotos, vídeos e textos trazem a felicidade que fica além das palavras, com o sentimento de paz e tranquilidade que seu rosto estampa. É mais do que coragem, é arrojo, determinação, sentimento de cumplicidade com quem se beneficiou da sua promessa e a instituição que a acolheu. Não creio que as Obras Sociais da Irmã Dulce já tivessem visto outra “carmem”, assim. Nós já. Mas a gente reparte. Juntando gaúcho com baiano, tá aí uma boa “baiúcha”!

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Partidas e despedidas

Senta aqui,

Senta aqui ao meu lado.

Na despedida, as palavras são desnecessárias.

O olhar, a lágrima, um carinho

Dizem mais, calam mais fundos,

Deixam a sensação de que partidas

Têm sempre a possibilidade do retorno.

 

Procurar motivos para a despedida é inútil.

Como buscar sentido no rio que corre,

Cumpre seu destino,

Deixa marcas nas costas de onde

Recebe vitalidade e torna fértil as terras?

 


Quando o trem apitar na última curva dos trilhos

E as cancelas começarem a ser levantadas

Para apaziguar o trânsito,

Ainda terás tempo de pegar tua bagagem

E tomar o rumo da plataforma.

Embarcar ou não vai ser uma decisão tua.

Deixarás para trás lembranças e saudades.

Não te prende a elas,

Mas também não te faz refém

Do que te trouxe tristezas ou alegrias.

 

Por onde andares, quando encheres os olhos

Com tudo o que o Mundo te proporcionar,

Ainda restará a possibilidade de uma volta.

No entanto, não te enganes:

Nada mais será como antigamente.

 

Quando me encontrares cansado e alquebrado,

No mesmo banco, na mesma estação de trem,

Pelos mesmos trilhos que te levaram e aos teus sonhos,

Seguiu o tempo que um dia te encontrará

Aqui, sentado neste mesmo lugar.

 

Serás testemunha de outras despedidas,

Agoniado com as partidas.

Perdendo um pedaço do teu próprio ser,

Sabendo que o trem que parte,

Mais cedo ou mais tarde,

É aquele que acaba voltando.

 

Senta aqui,

Senta aqui ao meu lado.

Um dia a gente parte,

No outro, partem aqueles que amamos.

O gemido do trem que se afasta

É o mesmo que, um dia, vai apitar na chegada,

Encher teu coração de alegria,

Pois já terás teus próprios fantasmas para

Mostrar que estás mais próximo

De embarcar na viagem que

Dá sentido a todas as partidas...

E a todas as despedidas!

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Guerra e ecologia: um roteiro de omissões


O que se pensou ser um pesadelo, infelizmente, se transforma em realidade: o sonho de paz de homens e mulheres de boa-vontade é destruído por mãos que potencializam a morte. Recentes episódios na guerra da Ucrânia e a realização da Conferência do Clima, no Egito, são a demonstração da incapacidade de alguns seres humanos para o convívio social. As provocações demonstram o perigo que é andar na fronteira da sanidade, com a possibilidade de que Rússia e Estados Unidos usem seus arsenais nucleares.

O encontro de preservacionistas – delegados dos países signatários da Convenção, que têm poder de voto; jornalistas e organizações não governamentais (ONGs) - precisa ser mais do que “turismo ecológico e político” para se transformar numa freada, já que sinais de alerta foram dados pela Natureza há um bom tempo, e se tem a oportunidade de que ações levem o mundo a conter o impacto das mudanças climáticas a um aumento de, no máximo, 1,5 graus centígrados na temperatura média da Terra.

Quem assistiu a filmes em que se mostra a devastação de áreas atingidas pelo impacto nuclear tem ideia dos efeitos de curto prazo, em áreas possíveis de serem delimitadas. Mas, a médio e longo prazo, todo o planeta irá sofrer naquilo que foi simbolizado por céus enegrecidos pela radioatividade, abandono das estruturas urbanas, formação de escombros, diminuição na produção industrial e agrícola. A consequência será a falta de serviços e uma multidão de famintos e esfarrapados perambulado desnorteados.

O ufanismo do século XX precisa dar lugar ao alerta. Pensar que os recursos do planeta são inesgotáveis é falácia. Embora a pompa política que envolve a Conferência Climática, um dado é fundamental: definir as capacidades e os limites do mundo e da sociedade para se adaptar às mudanças. Elas são fato e discutir é perda de tempo, atrasar medidas que já deveriam ter sido tomadas. Não é somente por nós, hoje, mas pensando nas gerações futuras, que não podem ser responsabilizadas por nossos erros.

A perspectiva é catastrófica quando se junta no mesmo roteiro a omissão de países e os discursos inflamados, mas sem substância, de quem usa de verborragia diante da mídia, mas não atua no concreto das necessidades sociais. Nossos problemas estão em áreas como preservação, reciclagem, água tratada, esgotos... e a relação é enorme e complexa! Imaginem, então, com os problemas que já se tem, ainda sofrer as consequências da insanidade de países que incentivam a produção armamentista e da guerra.

A humanidade se surpreende diante da televisão pela descoberta de formas elementares de vida no espaço e joga para baixo do tapete a fome na África, Ásia e América. Líderes políticos tiram casquinha do que hoje é pauta mundial, que iniciou em meados do século passado, quando “ecochatos” alertaram que seríamos arrastados para conflitos sem sentido se não aprendêssemos a cuidar dos nossos semelhantes. É um tempo difícil: nunca precisamos tanto falar – e praticar -  a solidariedade, a compaixão e a ternura...

domingo, 20 de novembro de 2022

Irmãs que fazem a “igreja em saída”


Não lembro desde quando ouvi falar da irmã Assunta. Os ecos das suas passagens eram sentidos em paróquias e comunidades. Em dias de atendimento, acorria gente das redondezas, mas também por onde uma vizinha ouvira falar e fazia a propaganda “boca a boca”. O destaque ficava por conta do atendimento fitoterápico - preparo de medicações e pomadas, em especial - também as célebres e benéficas massagens, assim como as entrevistas/consultas que serviam de orientação da saúde do corpo e da alma.

No dia 16 de novembro, a live Partilhando (da arquidiocese de Pelotas) conversou com as irmãs quem mantém uma comunidade no bairro Areal, congregação do Imaculado Coração de Maria. Era a nossa homenagem e uma despedida, afinal, religiosas que dedicaram sua vida inteira atendendo às populações mais pobres, nas periferias, agora têm o direito de descansar. Irmã Fiorinda, com 85 anos; irmã Assunta, com 98; irmã Ida, com 90, são “meninas” a quem devemos a nossa gratidão e muito carinho.

Quem primeiro me convidou para ir até o atendimento da irmã Assunta foram meus pais, seu Manoel e dona França. Não tenho muitas lembranças de outros lugares, mas a memória bem clara de quando estavam nas dependências do Anglo, onde hoje está a Universidade Federal. Depois, já na Casa do Caminho, em frente ao Jockey Club. Ali, sim, foram muitas visitas testemunhando os passeios pela plantação, as conversas sobre como eliminar lesmas, a troca de mudas e as dicas da melhor forma de usar cada planta.

O atendimento físico é acompanhado pela preocupação espiritual, atuando de forma ecumênica que a levou a investir em hortas comunitárias (ali existe uma) nas vilas e interior, sempre no sistema de trabalho conjunto e de partilha. Quando entrevistamos o pessoal da Pastoral Carcerária, uma informação chamou a atenção: antes que pensassem em atuar no presídio local, a irmã Assunta e sua equipe já estavam presentes fazendo o atendimento do corpo na sua integralidade e sendo uma semente de esperança.

Busco seguidamente própolis para meu uso e um sabonete anticéptico para minha irmã, a Leonice. Impossível não notar que pessoas chegam à Casa do Caminho, muitas vezes, depois de não terem conseguido respostas em outros lugares. São acolhidas, num tempo diferenciado da pressa com que queremos que tudo aconteça, ouvidas e alertadas de que, se estão fazendo tratamento, continuem com ele e saibam que o que lhes será oferecido é em apoio, muitas vezes para minimizar ou eliminar os efeitos colaterais.

Atender a periferia, a saúde, idosos e doentes é o que o papa Francisco chama de “igreja em saída”. As irmãs dão testemunho, sem buscar reconhecimento público. A irmã Assunta diz que já andou por muitos lugares e sempre voltou a Pelotas. Que bom, irmã, que assim seja: Podem ir, mas voltem, a diocese tem uma dívida de gratidão e, aqui, serão sempre bem vindas. Quem trabalhou com vocês, cada um daqueles que foram atendido gostariam que não fossem, mas se é preciso ir, que voltem um dia, nem que seja para uma visita... Rezem sempre por nós. E que Deus as abençoe!

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

A fronteira com a Eternidade

Hoje, eu pinto teus traços apenas nas telas das minhas memórias.

Foram muitos os momentos marcantes

Em que me deste o privilégio de conviver.

Teu derradeiro instante foi o coroamento de

Uma cumplicidade que me ensinaste a valorizar.

Quando te despedias, por um instante,

Quedei-me na intensidade do teu balbucio.

 


As mãos repousando sobre teu colo

Bastavam para contar a história

Que havia marcado teu corpo.

Na proximidade do fim,

O tempo escorria por teu rosto,

Em sinais e sulcos que faziam tua pele

Semelhante aos traços que desenharam teu destino.

 

Embora ainda estivesse no foco dos teus olhos,

O embaçado da despedida fizeram-nos

Perdido em algum lugar do passado

Em que revolvias as camadas do tempo

Revelando eras e misturando lembranças.

 

Que mistério se esconde naquilo

Que foge à compreensão humana?

O que ainda havia por aprender

Quando teu silêncio já não precisava das palavras,

Teus olhos gastaram o instante que ainda te restava

Como um último carinho,

Uma despedida da vida, da dor, do cansaço...

 

Em meus braços,

Não sei se tiveste tempo de reviver teu passado.

Mas, enquanto partias, eu me apegava

A cada instante em que murmurei o teu nome,

Senti tua falta, descobri a intensidade da palavra amor.

 

Levei um longo tempo para entender,

Mas o fardo com que meus amores foram

Se acumulando em meu coração

Deixaram os momentos que ainda me restam

Com a questão que somente consegui intuir:

Afinal, que mistério se oculta nas dobras

Em que o tempo faz fronteira com a Eternidade?

 

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Os reais princípios republicanos

A data de 15 de novembro propicia momento de reflexão sobre o sistema democrático. Passadas as eleições, estão sacramentados deputados eleitos ou reeleitos, um terço do Senado, governadores de Estados e presidente da República. A transição entre segundo turno e a posse, em 1º de janeiro, é período hábil para os que saem prestem contas e quem assume se familiarize. Não existe terceiro turno, então, quem foi eleito, o foi para atender a todos os gaúchos e brasileiros, independente da sua coloração partidária.

Vale a pena recordar que a cláusula pétrea da Constituição Federal do Brasil de 1988 dispõe sobre a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes, assim como os direitos e garantias individuais. Para que o princípio republicano não se desvirtue, é imprescindível que detentores do poder político sejam designados pelo povo, com mandato certo. A marca republicana de governo é a eletividade, pelo povo, de chefes do Executivo e o Poder Legislativo.

Princípio básico que foi mote da primeira administração do prefeito Bernardo de Souza e se encontra estampado no plenário da Câmara de Vereadores de Pelotas: “Todo o poder emana do povo”. Exercido por representantes eleitos, nos termos da Constituição. O preceito republicano, portanto, implica na necessária legitimidade popular do Presidente da República e dos Governadores de Estados. No caso atual, reconhecido pelo próprio presidente, assim como governadores e lideranças políticas e jurídicas.

Então, o que há para questionar? Houve eleições em que prevaleceram os fundamentos da democracia, ou seja: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político. As situações em que estes princípios foram prejudicados estão sob investigação de quem tem (ou deveria ter) competência para tal. O resto, infelizmente, mesmo através de atos previstos pela própria Constituição, é choro de perdedor, com tintas que beiram ações criminosas.

Bloqueios de estrada (direito de ir e vir) são atos em que se mostra o pior daqueles que estiveram alijados do poder e acreditavam mantê-lo de qualquer forma. Já praticamente sanado este problema, na segunda-feira da semana passada circulava o boato de que, naquele dia, o país “iria parar”. Não parou. Agora, corre a boca pequena que, depois do feriado, caminhoneiros (de novo) vão estacionar em postos de combustível impedindo o trânsito de cargas e prejudicando o abastecimento de todo o país. A quem isto interessa?

O melhor a fazer pelo Brasil fragilizado é voltar ao trabalho. A crise financeira, a pandemia, os poderes constituídos que não respondem à necessidade da população podem – e devem - se transformar em desafio para a iniciativa privada exercer o papel de motor para o desenvolvimento. Investindo em educação e real renovação política que mude o quadro atual. É triste pensar que brasileiros confrontando brasileiros são atiçados uns contra os outros, enquanto Brasília continua sendo a Ilha da Fantasia...

domingo, 13 de novembro de 2022

Com gosto de... vizinhança!

Dona Leonida mora com a filha numa casa pequena, na periferia da cidade. A cerca foi trocada pelas grades, mas não abre mão de ter os seus verdes e as suas flores no recuo entre a calçada e a moradia. Já não são muitos os vizinhos que as procuram e como a filha trabalha de plantonista, são diversas as ocasiões em que a senhora fica sozinha. Diz que não tem medo: entrega a sua confiança a Deus, seu Anjo da Guarda e Nossa Senhora. Como reforço, passa a chave nas portas e abre, apenas, as janelas gradeadas.


De vez em quando, aparece uma viva alma que chama do portão. Já é motivo para dona Leonida resmungar que “esta gente não sabe que tem campainha?” Era uma das vizinhas que não queria entrar, mas saber notícias da mãe e da filha. Conversaram por longo tempo, uma na rua, a outra do lado de dentro da grade. Ao se despedirem, a senhora tinha um sorriso no rosto e uma nova disposição. Quando a filha retornou, reparou que tinha acontecido alguma coisa e diz que quase se arrependeu de perguntar...

“Ô, mãe, tu viu passarinho azul!” Com cara de indiferente, a idosa respondeu: “que nada, o estorvo da vizinha apareceu só pra jogar conversa fora. Vê se tenho tempo pra isto? Ficou uma hora de lero-lero na frente da casa.” A filha sorriu e brincou: “mas a senhora gostou da visita?” De bate pronto, a resposta: “me respeita. Cheia de serviços e tendo que atender a uma desocupada.” Mas, durante os próximos dias, em meio às conversas sempre aparecia a citação de algo dito pela visitante que ficou na calçada.

Já falei das experiências que são feitas em condomínios populares que refazem relações que eram comuns nas experiências de moradores de vilas. Recentemente, ouvi histórias de quem reside nestes conjuntos a respeito da festa de Halloween. Tirando a discussão de que é uma “importação” cultural, fico com a ressignificação mais simples: motivação para que as pessoas circulem no ambiente em que moram, a aproximação das pessoas e das crianças, assim como a oportunidade para a festa e a convivência.

A festa acontece na vigília de Todos os Santos e precede o dia da memória dos mortos. Ganhou força na divulgação americana, mas que existe em várias culturas, envolvendo motivações religiosas e gastronômicas. Recuperadas em novos ambientes urbanos, infelizmente, já tem pouco da tradição religiosa, mas manteve o aspecto da festa e da gastronomia, assim como o fato de que se dá na noite em que o imaginário é fértil em recuperar histórias que transitam no limbo entre os vivos e os mortos...

A palavra comum nas histórias é vizinhança. Conceito meio esquecido, mas importante de se recuperar para humanizar as relações sociais. Morando em casa ou apartamento, ninguém é uma ilha, cercado pela humanidade. Estender pontes pode ser parar em frente a uma grade e chamar, estimular vizinhas a vestirem fantasias e participar da algazarra dos filhos. Quem sabe, sorrir, dar um bom-dia, no corredor do condomínio... Pequenos gestos de gentileza, capazes de deixar o dia mais leve, com gosto de... vizinhança!

O marear das lembranças...


Abro uma fresta na porta das minhas memórias.

O tempo mareia as minhas recordações

Que flutuam no embalo das ondas,

Dos sentimentos que insistem em

Jogar na praia os ecos que brincam com

A algazarra de vozes que teimam em voltar do passado.

 

Ao se recolher,

Fazem imergir no silêncio.

Não o silêncio da profundidade

Das águas turvas e revoltas,

Mas das superfícies lisas

Que espelham o céu e o que alcanço do Infinito...

 

Saborear as palavras.

Degustá-las como quem as experimenta,

No prazer de que, ao sorvê-las,

Há algo que não se revela e se mantém no Mistério.

Brincar com as palavras é, também, brincar

Com os silêncios do amanhecer que as ressignificam.

 

Andar pela areia no tempo em que o sol

Costura a alvorada com as cores da eterna primeira manhã.

Quando vozes e palavras são parceiras

Que alimentam memórias e delimitam horizontes,

Em que a palavra sempre está além.

Talvez não a palavra dita,

Mas a que está grávida do silêncio.

Aquela não dita

Que necessita da cumplicidade de quem

Compartilha significados.

 

Leva-se um longo tempo para perceber

Que, muitas vezes, são ecos de rostos

Perdidos nos recônditos das ausências.

O marear das lembranças silencia

Meus lábios e alcança a janela dos meus olhos.

Já não estou em busca de sonhos,

O rumo das águas se

Confunde com as palavras, as vozes, os rostos...

Assim como a lágrima que orvalha o caminho,

Trôpego das minhas certezas,

Certo das perguntas que movem meus passos,

Resgatando segundos que turvam minhas memórias

E são música no compasso da saudade!

domingo, 6 de novembro de 2022

Os doramas e o direito de adolescer...

Amigas e amigos psicólogos, estou urgentemente precisando dos seus serviços. Embora já tenha entrado naquela que é considerada a melhor idade – já contei, estou a caminho dos 68 anos - pasmem, estou adolescendo! Vocês não leram mal, não: nem eu acredito, mas “estou adolescendo!” Estou me dando ao direito de reviver a minha adolescência. Talvez não em todos os sentidos, mas naquela parte em que os sentimentos afloram por qualquer situação mais... delicada. E me vejo assistindo aos “doramas” coreanos.

Emocionado com dramas da idade e enxugando os olhos em diversas ocasiões. O que, diga-se de passagem, não é incomum quando sofre um jovem casal, uma criança ou um idoso. Recentemente, a Netflix jogou nas telas e telinhas uma enxurrada de produções asiáticas com destaque para dramas juvenis, com gosto de aventura, comédia, ficção e a sensação de que se acompanha o que já se viveu de alguma forma. Nostálgico, tenho a impressão de que reconstroem com exímia tecnologia vivências de épocas passadas.


As relações familiares, as relações afetivas, a descoberta do outro, na maior parte das produções têm aquele olhar casto e sensível de um tempo que, para nós, já ficou na saudade. É estranho ver a força do patriarcado, inclusive com agressões que hoje não cabem mais; a submissão da mulher, com expressões como: “eu vou sempre cuidar de ti”; assim como atitudes de intimidade em que beijos, proximidade, toque e o carinho estão longe dos chupões e amassos a que o cinema e a televisão nos acostumaram.

Com rostos que parecem bonecas de porcelana, são atores e atrizes que ganham vitrine no mundo do entretenimento, em contraponto às produções americanas e europeias, assim como de mercados descobertos neste novo mundo das relações pela internet. O realismo muitas vezes cru e angustiante de filmes e séries ocidentais dão lugar a romances melosos (Primeira vez amor) onde também pode estar presente a magia (Alquimia das Almas), bem como sofisticada tecnologia (Memórias de Alhambra).

De alguma forma, captaram o sentimento de que são produtos de entretenimento e, por isto mesmo, não precisam ser intelectualizados, assim como jogados para dentro de casa, onde se assiste de forma relaxada e receptiva. Antes que os politicamente corretos de plantão advirtam, creio, sim, que não existe uma proposta da Coréia do Sul de dominar o mundo com sua máquina de produzir doramas. É produto comercial que encontra comportamentos com reminiscências do século passado, que ainda se mantém.

Se você gastar seu tempo, à noite, e, ao invés de novelas, procurar no streaming estas séries, não se sinta culpado. Muito do que hoje é rotulado de “cultura” já teve época em que foi considerado “subcultura” e, até, desprezado. O passar do tempo sempre foi o melhor filtro para separar - do clássico ao popular - o que é bom e merece permanecer. Enquanto isto, aproveite: encoste-se no sofá, apronte o chimarrão, a pipoca e uma caixa de lenços... No resto, são bons risos, diversão garantida e, quem sabe até, algumas lágrimas!

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

A flor que rasga o asfalto

Engatinhar, andar ereto, usar uma das muitas bengala.

Faz parte das diversas etapas da vida,

Que se pode chamar de amadurecer

Ou, apenas, de envelhecimento.

É o tempo que passa:

Às vezes, da forma mais difícil,

Intui e tentei compreender

O outro e as suas circunstâncias.

Muitas vezes, pensando em ser “senhor”,

Tornei-me, apenas, escravo da arrogância.

 

A arrogância que se destila sobre a Natureza que agoniza

Enquanto sorvemos doses de vaidades:

- Na árvore ferida, que ainda geme

O seu incompreendido perfume de dor.

- No animal abatido,

Que tem os olhos súplices pelo socorro de quem o feriu.

- No rio em que homens e animais mataram a sede

E agora agoniza no assoreamento e poluição

Que lhe retira o brilho, a graça e a beleza.


 

Meus discursos, muitas vezes,

Não fizeram eco com as minhas práticas.

Convenci-me e tentei convencer

De que tenho as receitas necessárias

Para organizar os “mundos” que, se girarem,

Devem girar em torno a mim...

 

O outro é o depositário dos meus argumentos.

Quero fazer valer:

A prepotência do saber,

A prepotência da força,

A prepotência da cor,

A prepotência do sexo,

A prepotência sobre o diferente...

 

Custei a aprender que

Dialogar é sempre um processo de conversão.

Quando uma semente de sensatez

Rasga o asfalto e produz apenas uma flor.

Talvez não dure,

Possivelmente seja ignorada,

Mas está ali como possibilidade.

 

Preciso reencontrar olhares que não excluam,

Que respeitem, cuidem, acolham.

Para voltar a falar de flores, do tempo,

Das coisas simples que fazem a diferença.

É sempre uma opção:

Dificultar ou não o germinar em que

Vencer o isolamento é também vencer medos,

E dar à luz a possibilidade de florescer novamente...

terça-feira, 1 de novembro de 2022

O sonho de uma sociedade inclusiva

Na semana passada, um grupo de mães de autistas reuniu-se em frente ao Tribunal de Justiça do Estado chamando a atenção para o julgamento sobre a lista de procedimentos da cobertura obrigatória por planos de saúde no Brasil. A definição regula a obrigação em cobrir tratamentos e procedimentos. A mobilização é nacional, já que o julgamento esclarece se tratamentos e remédios devem seguir na lista ou não. Com a perspectiva de impedir atendimentos futuros, bem como interromper aqueles que estão em andamento.

Hoje, a Justiça decide depois que pacientes ou familiares acionam a solicitação de cobertura de procedimentos que não estão na lista. Normalmente, são caros e contínuos, colocando famílias em dificuldades de pagar por um tratamento que propicia o controle, a melhora na qualidade de vida e, em muitos casos, a sobrevivência dos pacientes. Pela lei que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA), esta já é uma obrigação constitucional do Estado.


Fiz resumo do texto apresentado em jornais da capital, porque o problema é maior do que esta reivindicação básica. Quem tem familiares ou amigos que cuidam de um especial, seja um autista, um portador da síndrome de down ou qualquer outro fator que o faça diferente, sabe o quanto estas pessoas têm sido incansáveis em batalhar por um lugar ao sol, o seu direito de respirar cidadania. Infelizmente, é peregrinação que se transforma em mendicância, mas que deveria ser o respeito a um direito conquistado.

Como em casos concretos, em especial a educação. Autistas matriculados em escolas particulares ou públicas devem ser acompanhados por monitores especializados. Necessitam de atenção que o professor apenas, em sala de aula, não consegue dar. As escolas particulares tem se desdobrado mas conseguem contratar e oferecer o profissional auxiliar. No caso da escola pública, pais e responsáveis peregrinam de porta em porta sem conseguir, na maior parte das vezes, um atendimento básico e necessário.

Recentemente, acompanhei depoimento de pessoa que falava a respeito do racismo. Fiquei pensando que a distinção de cor é um elemento que não se conseguiu vencer, mas também se torce o nariz para o pobre e o diferente. O preconceito está entranhado na nossa cultura utilitarista, consciente ou não. Não creio que se encontre alguém que, em sã consciência, reconheça, mas é comum ouvir em círculos restritos que “deveria saber o seu lugar”, “foi Deus quem quis assim” ou “é um doentinho, um coitadinho”.

É o sonho de uma sociedade inclusiva, que reivindica o cumprimento da lei. Muitas leis são feitas no ardor de discursos com pretensões político-eleitorais, que não encontram ressonância na prática. Uma injustiça praticada contra o futuro de um ser humano, assim como dos pais que somam ao seu dia a dia uma luta cansativa e inglória. Enquanto a sociedade os segrega, batalham pela consciência de que as crianças que não aprendem da forma convencional precisam, apenas, de carinho para aprender do seu jeito...