domingo, 27 de março de 2022

Os bons cheiros e gostos da vida

A crise econômica e a volta da inflação fazem o brasileiro mudar o cardápio. Com o preço da carne nas alturas, não somente do boi (ou da vaca), mas também da galinha e do porco, as donas de casa têm que voltar os olhos para antigas receitas de acompanhamento do arroz com feijão. Com as remarcadoras fazendo o seu crime nos preços, longe do bolso do pobre, o ovo torna-se presente. Como um, na chapa, pela manhã, com uma fatia de presunto, uma de queijo, pedaços de tomate e orégano, mais uma generosa fatia de pão. É um simples “breakfast” (café da manhã americano)…

Meu gosto pelo ovo vem da infância. Quando estávamos por casa, pela manhã, éramos brindados com um “fristique”. Cozido, no ponto em que a clara tomava consistência e a gema se mantinha “molinha”. A primeira etapa para degustar aquela delícia era, mantendo em pé, fazer um pequeno buraco na parte superior e, com uma colher de chá, colocar um pouco de sal. Depois, era do gosto do freguês, podendo utilizar a mesma colher para limpar a casca, ou, como eu preferia, ir injetando pequenas lascas de pão que voltavam untadas na gema e com pedaços da clara.

A gemada, naquele tempo, não tinha os efeitos afrodisíacos que tanto se apregoa hoje. Era manjar aprontado para um café da tarde, quando se tinha visitas. A gema, batida com paciência, ia tomando consistência. Era preparada e servida numa caneca grande da qual ninguém desgrudava os olhos até que a mãe ou minha irmã serviam as fatias do pão “cacete” untada por aquilo que, se soubéssemos então, deveria ter sido o resultado de um trabalho dos deuses! Falantes e brigões, naquela hora, o silêncio era dominante e se ouvia a crocância do pão se desmanchando em solenes mastigadas.

Éramos carnívoros. Quando não aparecia um naco de carne no prato, havia resmungos. Nos tempos das vacas magras (não que os bichos estivessem de regime, mas faltava dinheiro), era comum a gente ver carne servida em nossos pratos e os pais se contentando com um ovo frito. Eu queria os dois. Mas, começava a ter um pouco de bom senso e pedia a troca. O pai saia ganhando. Era dos poucos momentos em que não misturava tudo que era servido. Era bem melhor abrir uma vala pequena do lado do ovo e deixar o líquido avermelhado misturar com o arroz, separado do feijão!

E tem, ainda os fios de ovos… Meu Deus! Puro, ou misturado com algum outro doce, se possível com calda, tira qualquer um de um regime. O Ninho é dos meus preferidos na Fenadoce, onde nunca resisti em comer apenas um. Então, depois que diminuíram o seu tamanho, sempre fico com alguma vergonha (que passa logo) de alinhar diversos e gastar mais tempo na praça da alimentação. Nunca gostei muito de bolo, mas, quando colocam a mesa com diversas travessas em que o “amarelinho que faz bem” se faz presente, como se diz na gíria: “eu piro!”

O que hoje é prato para enfrentar a crise, na infância era manjar para lambuzar os beiços. Acho que exagerei, desculpem. Mas é assim mesmo. Com o passar dos anos, mais “experientes”, se diminui a ração, como dizia meu pai. Mas tem certas coisas das quais se prefere não abrir mão. Em especial, os bons cheiros e gostos da vida. Na lembrança de um ovo cozido, transformado em doce no pão, no prato feito ou símbolo do melhor da nossa terra... E nem falei das galinhas. E olha que um arroz com feijão, um bife de frango, saladinha básica e um ovo frito é um prato que tem lá o seu valor…

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