terça-feira, 1 de março de 2022

A velhice, a inutilidade e o silêncio da morte

 

A notícia - Marinella Beretta morava em Prestino, na Itália. Seu corpo foi encontrado mumificado em uma cadeira, dois anos após a sua morte, reacendendo o debate sobre a solidão na velhice. Sem parentes, a polícia chegou à sua casa para verificar denúncia de árvores mal cuidadas que poderiam colocar em risco a população. Os vizinhos acreditavam que tivesse se mudado no início da pandemia, que atingiu fortemente o norte da Itália, a partir de fevereiro de 2020.

A Crônica - Marinella arrumou a mesa onde sentaria. Não lembrava bem do que tinha pensado em fazer para gastar o tempo. Mas, também, não importava muito. Havia ficado sozinha, sem família que a procurasse ou que ela achasse que valia a pena procurar. Os vizinhos até que eram respeitosos, mas não eram muito acolhedores. Afinal, era apenas uma velha senhora que morava sozinha e cada um tinha seus afazeres, entre os quais não estava se responsabilizar por alguém que não era familiar e sequer tinha privado do seu convívio.

Teve tempo de fechar toda a casa. Quando arrumou a cadeira e sentou, acariciou a toalha da mesa e tentou não se preocupar. Fora uma vida vazia e já estava cansada. O lugar não era dos piores, ninguém a incomodava, mas a solidão era sua única companhia, sem demonstrar interesse por quem estivesse fora da sua moradia. Vivera o suficiente para saber que já era chegada a sua hora. Não se preocupava em morrer, queria apenas apagar como tantas vezes fizera com as velas que acendia em frente ao seu pequeno santuário.

Ouvira muita coisa a respeito de idosos e da velhice. Quase sempre eram doutores e especialistas que deitavam falação sobre a melhor forma de chegar a uma idade avançada. Sempre sorria para a televisão e se perguntava: será que esta gente vai saber envelhecer? Lembrou da mãe que dizia que conselhos, se fossem bons, não deveria se dar, mas se vender… Todos tinham casas, uma família para a qual retornar, mas e quando tivessem que voltar e encontrar a porta fechada, o silêncio angustiante, a ausência que entristece?

Porque viver tanto tempo? Quem havia se preocupado em procurá-la e cativá-la? Isto já era a história daquele Pequeno Príncipe que falava: “tu te tornas eternamente responsável por aqueles que cativas!” Não fora cativada, sequer tivera uma mão estendida ou abraço que juntasse e curasse suas muitas feridas… Conhecia os personagens que a televisão mostrava, mas não conseguia identificar vizinhos que moravam próximos. Mesmo quando precisava sair, baixava os olhos e fazia seu percurso sem cumprimentar ninguém.

Alguém a encontraria. Falariam sobre como os idosos são tratados nestes tempos em que a comunicação de massa deixou de lado o cuidado com as pessoas; de que muros estavam sendo erguidos, mesmo nas pequenas comunidades, isolando os mais debilitados, doentes e velhos. Sabia que o número de idosos morando sozinhos já era um alerta de que há um problema social que os discursos não resolvem. Tinha a impressão de que saíra andando por uma estrada e, numa curva, deixou de ser vista e também de que sentissem a sua falta.

Cruzou as mãos sobre o colo e sentiu-se triste por perceber que a morte chegava. A memória brincou com lembranças de infância, juventude e idade madura. Era uma questão de culpa? Podia ser responsabilizada porque não soubera viver? Quando a inutilidade bateu à sua porta e se estabeleceu em seu corpo? Já desaparecera para os outros há tanto tempo que não faria diferença. Encontrariam o que restara dela. Não sabia para onde iria, mas queria descansar: a morte era simplesmente o fim para todas as suas preocupações…

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