domingo, 3 de abril de 2022

Tamancos, chinelos e a roda da infância

Domingo à noite recebi um emoji (desenho para a internet) enviado pelo Lupi Scheer dos Santos. Uma palavra: “arrebentou”, acompanhada do desenho de um chinelo de dedo com a tira cortada na parte que fica entre os dedos do pé. Reação às fotos publicadas de um encontro em Porto Alegre, onde estive com grandes amigos: padre Attílio Hartmann, dom Carlos Rômulo e padre Pedrinho Guareschi. Respondi dizendo que dava pra colocar uma tachinha. Acrescentei que a piada era sem graça, “tu não és tão velho e nem foi tão pobre para arrumar o chinelo com um prego atravessado...”

Não uso emojis nas minhas mensagens, mas reconheço que algumas pessoas fazem uma bela ilustração com eles. Este me fez percorrer as lembranças de infância no interior de Canguçu e na Vila Silveira. Tendo como precursor um belo par de tamancos. Hoje, é apenas um artefato utilizado pelo sexo feminino como acessório de beleza. Na época, início da década de 60, era o que se tinha para caminhar com os pés protegidos. Plataforma de madeira com cobertura de couro. Havia um acréscimo de luxo que era um solado feito com borracha para impedir o “tec-tec” nos pisos.

Já devia estar com dez anos quando ganhei o primeiro par de chinelos de dedo. Eram fantásticos! Absolutamente silenciosos, fáceis de limpar e com mil e uma utilidades! Nos pés de crianças arteiras (de mau comportamento e não de artista) podiam ser a goleira dos jogos de futebol de rua, assim como a própria bola, ou instrumento de defesa e ataque nas disputas com outros garotos. Pilhados e elétricos, não havia roupa ou calçado que resistisse. Nem mesmo o corpo e acumulavam pernas quebradas (minhas foram duas) e braços quebrados (uma do meu irmão Cláudio).

O pior é que também podia ser o meio para que a mãe aplicasse uma “palmada pedagógica”, depois que fizemos desaparecer inúmeras varas de marmelo que guardava em cima de um armário. Não éramos caprichosos, mas sabíamos que era preciso cuidar para ter. A plataforma de borracha ficava gastinha, mas ainda tinha uso. O que não durava muito eram as tiras, que precisavam ser compradas e repostas. Numa emergência, quando a bolinha que segurava as tiras por baixo do solado se partia, achava-se um prego pequeno o suficiente para que se furasse de lado a lado da tira e segurasse o pé.

Não tenho lembranças da infância sem que um destes tipos de calçados estivesse presente, no verão e no inverno. Mesmo já maiorzinhos, a gente tinha os chinelos para o dia e, à tardinha, depois de lavar os pés (não lembro muito de banho durante a semana), recebia um par de meias e as tamancas indo para a cozinha fazer os temas, sabendo que, no frio, havia o calor do fogão a lenha e o aroma da janta sendo preparada. Lembro de um banco encostado à parede, ao lado da mesa, no qual subia, deixava os calçados escorregarem para o chão e as perninhas ficavam balançando…

Passei muito tempo usando calçados de todos os tipos para diversos afazeres. No entanto, somente os chinelos têm gosto de infância. Aposentado, é o que uso em praticamente todas as estações. Não preciso mais arrumar um prego para concertar um estrago, assim como são oferecidos muitos modelos que apregoam mais conforto. Ainda prefiro os comuns e antigos, estilo havaianas. Não se troca um amor antigo por muitos amores novos… eles têm a história que passou pelos nossos pés, ainda brincam com a imaginação e chegam ao lugar onde são guardadas as nossas saudades!

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