domingo, 28 de fevereiro de 2021

Uma longa noite até o alvorecer...

A idosa foi internada porque precisava de respiração artificial. O quadro se demorou, fazendo com que filha e neta se revezassem no atendimento. A cuidadora havia sido chamada porque as duas precisavam de uma noite na semana para ficar em casa. Um tempo tranquilo, porque a paciente “tava gastinha” - definhava e não causava qualquer trabalho. Em alguns momentos, abria os olhos, olhava em volta e voltava a dormir. Uma vez ou outra estendia a mão por sobre o lençol. Sentindo o contato, tentava reconhecer de quem era, mas não conseguia e se conformava…

A enfermeira deixou o celular sobre a perna e contemplou as veias judiadas pelas vezes em que injetaram a medicação. Mãos calejadas, com histórias que ouviu da filha e da neta. As da filha vinham de longe, interior do município vizinho, onde viveram num sítio, vendo a mãe e o pai trabalharem na roça e, em casa, cuidar dos animais e do pátio. Na saída da casa, uma porteira acessava o jardim misturando flores da estação, chás e temperos. Pelas paredes e janelas, latadas improvisadas com arranjos e verdes. Como dizia: “a casa era simples, mas cuidada no capricho!”

Toda a vez que abria a porta da cozinha - em duas partes, conservando a de baixo fechada para que os animais de pátio não entrassem – havia um alvoroço entre galinhas, patos, porcos, que andavam próximo à casa, sentindo o cheiro da comida e esperando pela ração. A caturrita, que caíra de um pinheiro e lhe cortaram as asas, alertava para a chegada da dona e voava da porta-janela até a porteira da cerca do jardim. Ali chamava pelos cachorros e repetia os xingamentos que alguém lhe ensinara, recebendo a ameaça de que seria jogada na cacimba se continuasse com a boca suja…

Depois de alguns anos, migraram para a periferia da cidade grande. A idosa ficava em casa com a neta, que estudava, enquanto a filha trabalhava numa lancheria. Cuidava das tarefas domésticas e não descansava enquanto não visse a casa em condições de receber o casal. O tempo passou e, numa queda, perdeu a locomoção. Sabendo que a avó era ativa, ficaram com medo da reação. Mas ela se conformou e, dificilmente, ouviam reclamação. Somente pedia que a levassem ao pátio, onde ainda era capaz de dar opinião sobre o que plantar ou não e fiscalizar a pessoa que cortava a grama.

Preferia o arvoredo, o cultivo de flores, chás e temperos. A neta e o genro se revezavam fazendo a prática da jardinagem. E tinha os seus “senões”… plantar as flores lhe dava muito prazer, chegando ao ponto de fazer jornadas noturnas para acabar com os caramujos. Já dos chás e temperos, dizia que era por “precisão”… sempre havia alguém desejando uma murta, folha de laranjeira ou de pata de vaca… “Mas a senhora toma chá?” “não, isto é bobagem, uma xícara de água quente faz a mesma coisa”! “E os temperos?” “isto é pra vocês, eu nem gosto, mas podem botar na comida...”

Soltou a mão sobre a cama e levantou os olhos para o buque que trouxeram mais cedo. Não falou, mas sentia que eram os derradeiros momentos da idosa. Um pouco antes, janela aberta, uma abelha pousou sobre as flores e, depois, levantou voo, num tributo da Natureza... às mãos que empunharam ancinhos e enxadas e esperavam o tempo para se encontrar com o Criador. Em algum momento do sono, ainda chamou pela filha e pela neta. A despedida seria calma e serena: conquistara o direito de descansar. Valia a pena a vigília e estava preparada: seria uma longa noite até o alvorecer...

Nenhum comentário: