domingo, 6 de junho de 2021

As histórias que a História não vai contar

A pandemia vai deixando marcas pelo caminho. Ainda não se tem como afirmar que parcela da população aprende, com este momento, valores básicos da solidariedade, responsabilidade social e empatia. Alguns fazem uma comparação capenga de que são milhares de pessoas curadas e, em épocas como esta, sempre existem baixas. Pena que autoridades acreditem e os números são tratados como estatísticas, num quadro em que o Brasil se aproxima das 500 mil mortes. Isto sem contar com o número dos sequelados e diagnósticos que ainda não foram concluídos…

A mãe retornou para casa “curada”. Poucos dias atrás, deixou a UTI, dando graças a Deus porque não precisou ser entubada. “Está tudo bem”, com um detalhe: não sente o cheiro e o gosto dos alimentos. A primeira coisa que o filho de seis anos pediu, quando a viu em casa, foi um bolo de aipim com coco, o de pacote. Não é difícil, porque os ingredientes já vêm prontos. Mas ela sempre fazia dele um momento especial, porque assavam juntos e, quando estava praticamente pronto, a cozinha recendia do aroma. Brincavam, com o nariz empinado, que era um “manjar dos deuses”.

Os sintomas apareceram para a atendente pela noite, mas não acreditou. Chegou ao hospital e seus colegas disseram que sua aparência era horrível. Foi encaminhada para teste e a recomendação de que voltasse para casa. Fim da tarde, o anúncio: positivou. Reclusão e tratamento que passariam por mensagem. Sentiu-se mal e amanheceu sem forças e ânimo. Mas precisava reagir e arrastou-se até o banheiro. Deu-se conta de que seu quadro era difícil quando, para escovar os dentes, teve que sentar numa banqueta e realizar um esforço sobre humano. Sentiu na pele o que ouvira outros contarem...

Uma cena linda, mas as lágrimas que teimavam em rolar foram causadas pelo empenho para chegar até ali. Por detrás da cadeira de rodas que levou a senhora até a maternidade para ver a filhinha, pela primeira vez, haviam atendentes, enfermeiros e médicos. Que não descansaram enquanto a mãe positivada não esteve em condições de vivenciar aquele momento. Faltava uma etapa: que a neném pudesse estar no colo e recebesse todo o carinho e dedicação que o afeto proporciona. Aquelas coisas que somente uma mãe sabe fazer quando recebe o olhar de quem gerou e deseja amamentar.

A enfermeira que acompanha pacientes para a entubação perdeu a conta do número de pessoas que levou para um atendimento difícil e quase sempre irreversível. Quem não se conformava, se perguntava o que fizera, porque Deus permitia; havia aqueles que apenas rezavam... e muitos, mas muitos idosos que desistiram e tinham nos olhos a indiferença entre a vida e a morte. Tratava a todos de igual forma, mas seu coração ficava entristecido quando lhe pediam a mão... no dolorido sentimento de que eram as últimas – e o derradeiro carinho – recebido de um outro ser humano!

Possivelmente, estas sejam histórias (com “h” minúsculo) que a História (com “h” maiúsculo) não vai contar. Os registros, relatos e estatísticas, perdem a razão quando, separados, viram números e personagens. Os livros não relatam sentimentos vividos por pessoas próximas e que dão o sentido da própria vida. O aprendizado da dor do outro, presenciada ou compartilhada. Quando o tempo se limita a um olhar, uma lágrima, um afago… quem sabe, isolado em casa ou por trás da janela de vidro de uma enfermaria, apenas e tão somente, a necessidade e carência de um abraço…

Um comentário:

Martinho Lenz disse...

Crônica de grande sensibilidade humana, nesse tempo de pademia. Parabens, Manoel Jesus!