domingo, 4 de outubro de 2020

O que a estrada oferece pela frente

Quando estava saindo de cirurgia para extinguir um câncer de próstata tive que focar em coisas que gostaria de fazer de forma prática, já que, ainda, com resquícios da anestesia, não conseguia concentrar em leituras e estudos. Das muitas "loucuras" que comecei a idealizar - enquanto aposentado - estava de encontrar miniaturas de carros que já tive, assim como de brinquedos que fizeram parte da minha infância e início da juventude. Claro que veio à mente o primeiro carro, que efetivamente comprei, um chevetinho ano 77, seguido do clássico de praticamente todos nós, o fuquinha...

Mas aí havia um engano. Puxando pela memória fui lembrar que não foram os primeiros meios de locomoção tanto da família, quanto das lides do seminário, para onde fui a partir dos meus 11, quase 12 anos. O primeiro veículo era uma charrete, que servia muito bem para todas as lides do "Bar e armazém Raulin", do seu Manoel, mas também para os passeios que se faziam nos domingos à tarde, depois que o pai fechava o boteco, ao meio-dia, e tirava sua sesta. Eram locais próximos, especialmente no verão, onde houvesse uma sombra e alguma água para a família se refrescar...

Já no seminário, desde que me conheço por gente, havia a "kombi do padre Guerino", que tinha a serventia de carregar mantimentos, transportar material de uso da casa, mas também para levar e buscar um grande grupo de meninos. Ainda não haviam regras tão rígidas de transporte como hoje e, então, em certas ocasiões, quando começavam a descer - e se fosse contar - facilmente passavam dos 10, faceiros por ir até a praia do Laranjal, pelo lado do Carmelo, ou vestir as fatiotas e participar de alguma cerimônia na Catedral de São Francisco de Paula.


Quando o pai iniciou a casa onde hoje moro, construiu uma garagem que abrigaria uma charrete. Depois que deixou de usar e passei a comprar carros, fui percebendo o quanto era estreita, ou, dito de outra forma, o quanto o motorista era ruim, já que, em todos os carros, ficaram as marcas de arranhões nos espelhos retrovisores, assim como nos para-lamas, especialmente dianteiros. Não sei quantos carros tive, alguns mais modernos, outros nem tantos, mas os que deixam marcas são aqueles que importam...

Por exemplo, o astra que cuidava por ser novinho e dotado de muitos recursos e conforto. Numa ida a Porto Alegre, tinha a intenção de ficar na capital e liguei para um amigo que saiu de Pelotas comigo. Percebi que não estava bem e combinamos retornar juntos. Próximo a Tapes tinha muita água na pista e o carro aquaplanou... Embora não lembre - minha última memória continua sendo passar por trás do mercado ainda em POA - paramos embaixo do último rodado de um caminhão. No frigir dos ovos, saímos ilesos, mas do carro sobraram a chave e o acionador de alarme que o Renan localizou em meio aos restos da preciosidade que virou sucata...

Com a minha amiga Jânea e o saudoso Vinícius aprendi a gostar das caravans. Aquilo não era carro, era uma casa ambulante! Servia para as atividades pessoais, viagens e os serviços da agência que tinha, então. A cachorreira era a alegria da criançada. Tinha espaço para que fossem à vontade, assim como mantinha sempre algumas almofadas no banco de trás que era a "cama" para meus sobrinhos quando, regularmente, ia a Porto Alegre e um deles, assim como um de meus pais, me acompanhavam.

Consegui ficar com a traseira do chevetinho presa em arames na estrada do Laranjal... ataquei uma coluna na rodoviária... bati num outro carro sobre uma ponte na Cascata, em direção a Morro Redondo, sem haver mais nenhum veículo na estrada... Mas também senti os opostos ao subir a serra: a vastidão dos seus vales, assim como a solidão da cerração... O encanto dos serros em direção a Bagé, com as suas curvas perfeitas e seu desenho do verde que se perde na paisagem... O nascer do sol por sobre pequenas lagoas na br 116, com a neblina evaporando no inverno e mostrando um espetáculo mágico de energia e da graça de Deus! 

Gosto de viajar com outros, mas também de percorrer estradas sozinho... sozinho, não: a certeza de estarmos eu e Deus. Uma ida para a serra, por exemplo, tem um ritual próprio. Cedo cair da cama, tomar café no Grill, passear e almoçar em algum shopping da capital ou de Canoas. E não ter pressa. O importante no passeio é encontrar situações que dão prazer e pessoas que amamos. O carro é o instrumento que ajuda a fazer caminho, este sempre novo "desconhecido", com o desafio da atenção e sorver o contorno de cada curva como se vive a própria vida: encantados e gratos por tudo o que já se recebeu... e o que a estrada oferece pela fr
ente! 

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