As terras eram estranhas. A casa era estranha. Maria acompanhou o grande amigo de Jesus, João. Ainda na cruz, havia dito para o discípulo: "eis aí tua mãe!". E para a mãe: "eis aí teu filho". Registra a Bíblia que desde aquela hora haviam ficado juntos. Ajudaram a propagar a palavra que havia anunciado. Passaram por muitos lugares até chegar, enfim, a uma encruzilhada do Mundo. Ali era o lugar para onde convergiam os propagadores da Boa Nova, que estavam em todos os lugares conhecidos.
Apesar da idade, fazia todas as lides da casa. Pouco falava, escutava muito daqueles homens e mulheres que vinham sôfregos por saber como era "o mais lindo, o mais brilhante, o mais inteligente homem que já passara pela terra: seu filho, Jesus de Nazaré!" E era para Nazaré que voltavam suas lembranças quando percebia que dos seus não restara mais ninguém.
Durante um tempo recebeu o jovem Lucas que, a pedido de Paulo, queria escrever a vida de seu filho. Passaram muitas tardes sentados à sombra de uma árvore até que precisasse se recolher, cuidar da casa e fazer a refeição para quem estivesse de passagem. Cada lembrança era uma marca em seu corpo. Fechar os olhos era rever as imagens de uma criança que foi crescendo de forma absolutamente normal.
O coração da casa era a cozinha. Lugar onde iniciava a rotina do dia, ainda antes do raiar do sol. Era preciso reavivar o fogo, remexendo as cinzas e colocando gravetos e algumas aparas que José trazia da carpintaria. Era o momento em que podiam conversar sossegados. O menino estava dormindo e preferiam não fazer barulho para que descansasse mais um pouco.
Algumas lembranças eram tão vivas que até doiam... Era somente uma questão de tempo. Jesus intuía que estava chegando a hora do almoço. José, em seguida, viria da carpintaria, abriria a porta e liberaria o caminho. Precisava ter cuidado, porque entre a cozinha e a área de trabalho do marido haviam dois degraus no chão batido, perigosos para as mãozinhas e as perninhas que não tinham noção de espaço e se jogavam na certeza de que alguém haveria de recebê-lo.
Ao chegar, José colocava-o com a barriga sobre seu braço e o agitava em torno de sua cintura, enquanto um sorriso de puro êxtase emoldurava aqueles olhinhos amendoados em meio aos cabelos que teimavam em ficar despenteados. Depois, erguê-lo e jogá-lo para o ar. Uma, duas, três, quantas vezes os braços do pai aguentassem, ou o pedido fosse repetido, em meios a balbucios que já antevinham as palavras que, em breve, fariam a felicidade de quem esperava que fosse o primeiro a ser chamado de “mamãe”, “papai”, ao invés de um “tá”, “aham!”, ou outros tipos de gemidos.
Depois o tempo passou muito rápido. E lembrava dos momentos em que ouviu atenta as palavras do filho. Foram lindas. "Bem-aventurados..." e fez com que toda a história do seu povo fizesse sentido. Listou tudo aquilo que haviam conversado desde que um rabino estivera em sua casa e se encantara com o menino que fazia perguntas e, quando necessário, corrigia a falta de lógica entre o que era dito pelos entendidos e o que estava nas Sagradas Escrituras.
Lucas queria detalhes. Se encantou ao ver que as lembranças eram vívidas. Afinal, quando o evangelista encontrou Maria, ela estava com mais de 70 anos e se passaram cerca de 30 da morte de Jesus. Maria cruzava suas mãos sobre seu colo, perdia o olhar no horizonte e recitava de memória momento a momento, palavra por palavra, sentimento por sentimento dos quais havia sido testemunha fiel.
Levou um bom tempo para entender que presenciara um momento ímpar na História, e que ajudara a tornar mais “humana” a presença de um Deus que não se contentou em ser atemporal, mas encarnou num tempo em que a mulher, a criança, o doente, o estrangeiro eram os excluídos. Paradoxalmente, ele foi educado por uma mulher, privilegiou o olhar de uma criança, acolheu pessoas que se deterioravam com a Lepra e mostrou que aqueles que muitas vezes não seguem a cartilha dos religiosos têm um dedinho carinhoso na acolhida de Deus.
Foi da irmã Ivanete que ouvi pela primeira vez a expressão "Jesus, amado". Mas não posso deixar de pensar que Maria também a usou. Muitas vezes encantada, outras em tom de correção e, já no silêncio da ausência, sentindo muita saudade. Celebrar o nascimento do Filho viria a ser uma das grandes festas da Humanidade. Mas, naquele momento, era apenas uma mãe que desejava reencontrar na memória o carinho que recebeu. Exatamente como hoje: "Jesus, amado, feliz aniversário!"
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