domingo, 11 de julho de 2021

As duras marcas da ausência

Uma crônica com histórias verdadeiras e um personagem “fictício”...

“Dona Aninha”. Uma das cuidadoras de quando morava em sua casa começou a chamá-la assim e o diminutivo grudou. Ninguém mais a tratava por Ana Conceição. Somente a Nilza, sua filha, quando queria implicar com ela ainda a chamava por todo o nome. Esperava por ela todas as tardes. Aquela casa era estranha, mas pedia que as cuidadoras a deixassem na mesma poltrona, todos os dias, na sala imensa onde mais seis idosos eram acomodados, com uma grande televisão. Ficava em frente a um corredor, no fim do qual havia uma outra sala de recepção e de onde podia ver a porta da rua.

A filha raramente saía de casa, para onde se mudara com o marido e o filho, depois que o esposo de dona Ana faleceu. Mas quando batia a porta brincava perguntando por onde andava seu “pedacinho de fofura”. Na entrada do quarto, olhava com todo o carinho, mãos nas costas: “passei na padaria, adivinha o que eu trouxe?” Meio da tarde, era hora de sair da cama e pensar no café. Sempre havia um mimo, num pãozinho especial, ou num bolo feito de aipim e coco, o seu preferido. Em pouco tempo, a filha mesmo não resistia e mostrava a gostosura: “antes, vamos fazer a higiene.”

Sem problemas. Precisava usar a fralda geriátrica, porém eram os cuidados especiais e a companhia do único familiar que restara que dava sentido à sua vida. Limpa, roupa de baixo trocada, escolher o que vestir antes de passar para a cadeira de rodas. Mas tinha uma brincadeira costumeira: no verão, colocar uma camiseta era motivo para risadas, pois sentia muitas cócegas. No inverno, as mãos frias que vinham da rua em contato com a sua pele mais sensível fazia que tivesse calafrios e se encolhesse. Nos dois casos, era um jogo de gato e de rato para conseguir terminar a tarefa.

À noite, a cuidadora arrumou dona Aninha e ligou a televisão do quarto: “vou deixar a senhora descansar um pouco”. Enquanto ainda tinha forças discutiu com a filha. Não queria descansar. Já estava mais do que descansada. Fez tanto esforço para que houvesse gente alegre na sua volta e da sua família. Mas o tempo afastou uns, levou outros… Tinha presente os amigos da juventude que jantavam em sua casa e, depois, os colegas de trabalho do marido. Protegeu as mãos embaixo das cobertas e ainda deu uma última olhada para a fotografia do esposo e da filha sobre o bidê.

A cuidadora espiou da porta e viu que já estava dormitando. Em pouco tempo, voltaria para desligar a televisão e acionar o cd que ouvia todas as noites. Não tinha conseguido muitas informações do genro e do neto. Disseram que a filha é que sabia dos seus costumes. Não se sentiam em condições de cuidá-la, depois que Nilza morreu vítima da pandemia. Já ouvira tantas histórias parecidas. Com as sequelas físicas e psicológicas do coronavírus se juntava o abandono de idosos, que já eram descuidados em tempos normais e, agora, encontravam desculpa para se manter longe deles.

As duras marcas da ausência. Sentou na sala, na poltrona em que Aninha pedia para ser colocada… Pensou na mãe que cuidou por cinco anos, antes de falecer, em casa. Histórias que se apagam com as brumas do tempo. Gostava, quando a mãe era mais jovem, de vê-la entrar por aquela porta e dizer que o marido e os filhos esperavam no carro. Quanto tempo, desde que tudo isto aconteceu? Passam os anos e ficam marcas de uma longa e cansativa jornada, sinais das lembranças e da saudade, que se carrega no coração e, especialmente, nos vincos que vão marcando nossos rostos!



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