domingo, 17 de janeiro de 2021

Os vizinhos que vieram dos céus

Foi o meu pai, o seu Manoel, quem chamou a atenção pela primeira vez. Por esta época, os bem-te-vis vinham pousar no arvoredo e dali faziam rasantes sobre as águas da piscina. Um exercício em que apareciam quase sempre aos pares (não vou ser indiscreto e dizer que eram casais...), mas já houve casos de três e, numa ocasião, um solitário fazia as mesmas peripécias, mas não parecia ter o mesmo ânimo do quando estavam em grupo. Passavam um bom tempo entre a laranjeira, o pé de caqui e a escada da piscina. Enquanto um fazia o sobrevoo, os outros aguardavam.

Numa passada, seu Otílio fez o corte da grama e podas orientadas. Explico porque do “orientadas”: com carta branca, o bom velhinho poda o que deve e o que não deve. Sobram reclamações do tipo: mas esta “gramínea era uma flor”, “isto aqui era um chazinho”… Por precaução, percorro todo o pátio dando instruções específicas (até parece que sei alguma coisa de jardinagem!). Chamou a atenção para a laranjeira que, embora eu estivesse disposto a uma poda radical (desaparecimento), mostrou-me brotos de folhinhas e, pasmem, frutinhas que não chegavam ao tamanho de um dedo.

No entanto, havia mais surpresas: apontou para o lado da laranjeira, onde existe, hoje, a árvore mais frondosa do meu pátio, uma pata de vaca. Confesso que tentei de todos os modos acabar com ela. Mas, em priscas eras, muita gente usava as folhas para fazer chá e controlar o açúcar no sangue. Junto com o pé de louro, foram aquelas que eu podava indiscriminadamente, mas resistiram e o louro abastece a vizinhança que gosta de um tempero no feijão (Deus me livre!), ou numa carne assada no forno. Ainda poderia citar o pé de romã, uma das paixões da Daniele e da Noemi…

Mas vamos ao que interessa: no alto da pata de vaca instalaram-se (agora sim eu creio que é um casal) uma dupla de bem-te-vis que fez um dos ninhos mais feios que eu já vi… Nesta época, ao que parece, já estão com filhote, embora não se consiga escutar (nem entender) as suas conversas… O pai sai em jornadas maiores e volta com alimento. Mas a mãe dá suas “escapadas” nas proximidades, inclusive na piscina, mas sem os malabarismos aquáticos. Dali controla a entrada do ninho e sempre está na parte interna quando o seu parceiro volta.

Vizinhos que vieram dos céus. Construímos muros, paredes, grades, cercas e não nos damos conta de que as surpresas podem vir do alto. De todas as vezes que pensei em transformar minha casa em condomínio, já que ficou muito grande para apenas uma pessoa, nunca achei que contemplaria o que surpreenderia o seu Manoel e a dona França, que chegaram a ver uma casa de João de Barro instalada quando ainda tínhamos uma nogueira. Embora a porta estivesse no rumo do sol, foi abandonada porque é árvore que coloca as folhas mais tarde que as outras e encobriu a construção.

Em muitas tardes, o calor diminui e se pode sair para a rua, contemplar as atividades dos novos vizinhos. Até pouco tempo atrás, hora ideal para observar a formação de pássaros que voltam para o que resta do arvoredo junto a banhados e sangas... e passam a noite. Ao encerrar o dia, o casal ainda precisa cumprir tarefas, que tiram meus olhos do chão e atraem para contemplar seus graciosos voos: um alerta de que, humanos, não se pode perder a dimensão do divino… os pés estão na terra, mas um pedacinho do espírito clama pelos rumos dos céus, os insondáveis caminhos do infinito...

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