domingo, 31 de janeiro de 2021

A dança das palavras, o sentido do silêncio…

Pedro anda pelo mundo. Tem um estilo tranquilo de mostrar paisagens, costumes e construções - modernas e lembranças da história. Também, onde cada povo faz o seu cantinho, resguardado da sanha dos turistas, e preserva costumes gastronômicos, etílicos e lugares onde se diverte afastado dos olhares curiosos. Numa noite gelada na Islândia, enfrentou a madrugada congelante para ver a aurora boreal. Suficiente para se encantar com um povo que acredita em ogros, elfos e lhe apresentou uma beleza ímpar diante da qual exclamou: “dance por mim… dance para mim!”

Meu desejo por viajar fica mais no “desejo” do que na realização. Invejo amigos que embarcam em jornadas curtas ou longas, o suficiente para lhes dar ânimo e disposição e enfrentar a rotina do dia a dia. Infelizmente, me enquadro no grupo dos “bem-intencionados” - sabendo que é deles que o inferno está cheio! O jeito de sublimar é percorrer, com o olhar de uma câmera, paisagens apresentadas por diversos programas – já citei aqui – como “Mundo visto de cima” e “Brasil visto de cima”. Em muitas noites, companheiros para apaziguar o espírito e cair nos braços de Morfeu…

Minhas viagens acontecem pelos textos. As mal traçadas linhas que apresento nas mídias impressas e digitais são a minha liberdade de espírito. Embora admire, não tenho preocupação com a métrica ou estilo, mas apenas em deixar fluir aquilo que, creio, a maior parte das pessoas comuns - como eu - pensa e gostaria de colocar no papel. Recentemente, olhando algumas preciosidades publicadas por poetas e cronistas em páginas de espaços literários dei-me conta do quanto meus escritos são toscos. Mas, para o meu estilo, não será certamente aí que reside um pouco da minha identidade?

Não escrevo para receber elogios, escrevo por necessidade. Numa ocasião, admirei a casa de uma amiga que caprichou na escolha do estilo de cortinas com que fez a decoração. Meu primeiro pensamento foi: vou fazer algo igual. Passado um tempo, dei-me conta de que não poderia, não teria nada a ver comigo e ficaria estranho no cantinho onde me escondo. Assim como as palavras, que seduzem, encantam e, quando jorram em textos, representam o que vão despertar em quem curte, manda mensagem e alimenta meu espírito que necessita nem que seja de um sinal de fumaça...

A palavra ausente quando se despede de quem se ama: pessoa com a qual se conviveu por muito tempo; filhos que tomam o próprio rumo; pais que, sem dizer nada, cerram os olhos e, numa dor sentida, deixam marcas da saudade. O tempo vivido e o tempo passado calejam nossos corações com as marcas da ausência. Não tem mais jeito de seguir da mesma forma, se já diminuiu o número daqueles que nos acompanharam no início da jornada e a gente sente que este peso torna nosso caminhar mais lento - amparados nas inúmeras bengalas da vida - e o olhar mais sereno...

O andarilho Pedro dança na escuridão fria de uma região inóspita e clama pela “aurora!”. A busca da satisfação e do prazer, para além dos limites linguísticos, a expectativa do belo e do imaterial. Grito da palavra não expressa, o escrito dando a sensação de que não disse tudo, o entendimento e não o sentido, que se torna a nova palavra e o seu ressignificado! Instante em que o ser humano percebe as suas carências. Porque dançar, cantar, abraçar, olhar, sorrir fazem o conjunto de toda a comunicação que a palavra não reveste... o coração que se contenta com o próprio silêncio!



terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Pequenos gestos, grandes significados

Theo tem 7 anos. Como muitas crianças, junta moedas que pais e familiares lhes dão para comprar algo de seu interesse. A diferença começou quando em sua escolinha foi introduzida uma conversa sobre finanças pessoais e a necessidade de uma motivação maior para gastar. O “cidadão” não teve dúvidas: pediu aos pais que destinassem seus R$ 91,60 para o hospital de Carlos Barbosa, a fim de comprar equipamentos que auxiliassem os profissionais na linha de frente da pandemia. Surpresos, classificaram como “uma injeção de ânimo e esperança para os desafios que ainda estão por vir”.

Destaquei a atitude do menino “cidadão” por aquilo que representa: atos como este não acontecem do nada, são frutos de aprendizado que se faz ainda no colo dos pais e do entorno social em que se é criado. O momento difícil, sem perspectiva de solução a curto prazo, exige que os educadores repensem sua atuação, não apenas para os próximos meses, mas para os próximos anos… Analistas alertam que 2021 sofrerá com a necessidade de isolamento e prevenção. O que foi feito sem planejamento e grandes reflexões no ano passado, agora merece uma atenção mais do que especial.

Discuti com amigos que vai ser necessária uma pedagogia para o pós-pandemia. Embora muitos não gostem e ainda estejamos longe do “novo normal”, é certo que as práticas presenciais mudarão e se precisará investir num novo (ou recondicionar) processo educacional. É um alerta para o que foi flagrado pelo sistema educativo de que as classes sociais abastadas estavam preparadas tecnicamente, o mesmo não acontecendo com os mais pobres. Com um problema: ambas não tinham “monitores” em condições de atender aos alunos em todas as suas necessidades.

O núcleo familiar que deveria prestar este serviço através de pais ou de irmãos mais velhos sentiu na pele o estresse de acompanhar as crianças. Depois de terem terceirizado o processo de educação dos filhos - chegaram a suplicar pelo retorno das aulas - também porque se importavam pelo aprendizado, mas porque tinham um turno integralmente ocupados na escola e lhes dariam uma folga. Taí um serviço que não pode ser negociado ou oferecido para outros. A família que não acompanha efetivamente o aprendizado do filho está a meio caminho para negar a educação.

O site soescola.com listou o que se agrega em cada ambiente: em casa se aprende a cumprimentar, agradecer, desculpar-se, pedir licença… a ser honesto, pontual, não xingar, ser solidário, respeitar os amigos, os mais velhos, professores.. também é ali que se aprende a não falar de boca cheia, ser limpo, não jogar lixo no chão, organizado, cuidar de suas coisas, não mexer nas coisas dos outros, a ter limites. Vai-se para a escola para aprender português, matemática, geografia, educação física, história, ciências, línguas, enfim, conhecimentos gerais. E reforça o que se aprendeu em casa…

Regras que as crianças seguem nos jogos e exemplo dos pais cuidando a natureza ajudam a entender relações sociais e noção de ecologia, por exemplo. Achar que, porque é criança, não precisa chamar a atenção ou deixar que quebre galhos e flores é semear comportamento que se reflete nas demais etapas da vida. Theo é “cidadão” porque os pais, desde cedo, indicaram o caminho da solidariedade e compreensão das mazelas humanas. A entrega das moedas é um pequeno gesto, recoberto de significado, que marca seu desenvolvimento e, com certeza, vai marcar o seu próprio caráter!

domingo, 24 de janeiro de 2021

Fé e religião, os desafios para seguir a vida...

Mais de 50 anos se passaram desde que – no dia 20 de julho de 1969 – se ouviu pelo rádio a narração da primeira vez em que o homem pisava na lua. Os astronautas Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins contaram, depois, que devido ao número de protocolos que deviam seguir para segurança, sequer tiveram tempo de pensar em contemplar, de fato, o que faziam e onde estavam. Ficaram as cenas, como o primeiro pé que marcou a conquista do espaço pelos americanos e a frase: “um pequeno passo para o homem, mas um grande passo para a humanidade”.

Do outro lado do oceano Atlântico, o príncipe Philip, esposo da rainha Elizabeth, em crise nos seus quase 50 anos, assistia extasiado pensando que o feito americano sim dava sentido a uma vida e aos desafios de envelhecer… quando os astronautas retornaram, fizeram visitas pelo Mundo. Numa delas, tiveram um encontro privado com Philip que elencara uma série de questões existenciais, enquanto os jovens homens do espaço entendiam, realmente, era da técnica, seguir regras e curiosos, queriam conhecer o sistema palaciano, com seus amplos espaços e clima de “museu”.

Quem conta é a série The Crown (a Coroa – da Netflix). Acompanha a família real e atividades palacianas, especialmente, o esposo, príncipe Philip. Na ocasião, considerando o capelão ultrapassado, resolvem encontrar um novo, mais adequado... quando surge o diácono Robin Woods, que passa a morar no complexo do castelo e solicita ao príncipe a cedência de um espaço para uma casa em que reverendos possam enfrentar, especialmente, suas crises de fé e filosóficas. Resultou na St. George House, dentro do complexo de Windsor, hoje com mais de 50 anos.

Phillip, num primeiro encontro, está amargurado com a sua situação e cede para se livrar do diácono. Mas é “cassado” para participar de uma reunião, quando faz um desabafo cheio de contrariedades, sendo amargo com o que os reverendos iam fazer ali, porque homens de verdade não se deixam levar por discussões de fé e filosóficas, mas devem ser de ação… assim como os astronautas. Depois que os viajantes do espaço vão embora, a vida volta ao normal e reconhece que não alcançou as respostas que procurava e precisa de ajuda dos mesmos homens que desprezou…

Uma discussão era, então, a pouca presença, especialmente de jovens, em seus cultos. Que se acentuou e se tornou problema em tempos de pandemia. Recentemente, um professor pediu indicações do que ler para aconselhar jovens sobre fé e religião. Em síntese, repeti que a fé é inerente ao ser humano e a religião a prática de um grupo que defende um mesmo ideário. Mas que homens e mulheres de religião estão devendo uma participação e presença mais ativas em sociedade, muito mais por testemunho efetivo (e afetivo), do que por discursos doutrinários...

Fé e religião, são desafios para seguir a vida… Phillip e Woods ficaram amigos e os fatos não se deram exatamente na sequência cronológica da série (são liberdades de ficção…). Mas lembra que somos seres que precisam de ajuda para vivenciar socialmente a fé. Num templo, terreira ou sessão de mesa, se identificar no lugar do encontro. Thomas Merton dizia que “homem algum é uma ilha”: a fé se resolve no encontro com Deus, mas a religião liberta do isolamento e dá sentido para o existir - no outro - com virtudes e defeitos, onde se dá a revelação do próprio Sagrado!

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Ele não pesa… é meu irmão!

O Instituto de Menores foi uma das vítimas do mais recente temporal em Pelotas. Parte do telhado foi danificado, o que causou uma série de prejuízos. Uma campanha foi lançada (página do Instituto na Internet) pedindo colaboração. Precisa de ajuda para atender mais de 200 crianças e adolescentes (em sistema misto), de 4 a 17 anos, em sua maioria em situação de vulnerabilidade social. Para os que voltam - ou para os novos atendimentos - oferece refeições, acompanhamento nutricional e odontológico, procurando envolver pais e familiares dos assistidos em atividades de capacitação.

Das minhas lembranças de infância, início da década de 60, uma diz respeito às vésperas das festas de final de ano, quando vizinhos acampavam na praia – no Barro Duro. Quase sempre, a mãe e meus irmãos iam de carona. Ficava com o pai e, encerrado o atendimento no armazém, saíamos a tempo de passar a meia-noite. Não existia a avenida Ferreira Viana e se passava pela Domingos de Almeida. Lá estava o casarão do Instituto, em que, de longe, se via a fachada lateral com o desenho de duas crianças, a maior levando a menor nas costas e o slogan: “ele não pesa... é meu irmão!

Depois, quando ingressei no Seminário Diocesano, descobri para que servia. Era um internato, o que significava que os meninos ficavam permanentemente na casa, recebendo educação formal, mas também o aprendizado de uma profissão. Ao longo dos anos, conheci muitas pessoas que venceram na vida porque aprenderam ofícios como marcenaria, gráfica, tecelagem (malharia). Crianças em situação de risco, especialmente do fundo do Areal, em alguns casos rejeitadas pelas famílias e, em outros, quando os próprios parentes pediam ajuda para conseguir lhes dar uma educação...

Durante bom tempo, seu principal incentivador foi exatamente quem hoje lhe dá o nome: dom Antônio Zattera. O então bispo de Pelotas viajava em busca de recursos que ampliaram o atendimento do Instituto e ergueram a Universidade Católica. Tinha como passatempo fazer slides. As “vítimas”? Nós, seminaristas, que dormíamos com as galinhas (e acordávamos com elas). Depois das viagens, telefonava avisando que viria mostrar o resultado. Após a apresentação, éramos “agraciados” - em meio ao sono - com a reza de um Terço, ajoelhados no chão do refeitório…

Muitas histórias passaram por debaixo desta ponte… mudanças educacionais e financeiras tornaram quase impossível o regime de internato. A adaptação era necessária, num tempo em que a economia jogou ainda mais famílias para a pobreza e a miséria. Durante algum tempo, o prédio parecia estar dando o seu adeus... aumentou o número de bocas para alimentar e, em plena pandemia, o IMDAZ (Instituto de Menores Dom Antônio Záttera), como é chamado, se reinventou e atendeu não somente aos menores, mas também às suas famílias e àqueles que precisaram bater à sua porta.

“Ele não pesa… é meu irmão!” continua lá, com um apelo diferenciado: precisa da nossa disposição de ajudar. Verdade que o atendimento desta parcela da população deveria ser obrigação do estado. Mas, enquanto isto não acontece, as “forças vivas” da sociedade precisam se mobilizar. Em tempos de dificuldades, negar a continuidade deste trabalho é reconhecer que a sociedade falhou uma vez. Repete o erro se não propiciar condições do retorno de quem não tem noção do seu peso social, precisando de solidariedade e atenção para não ter que desistir do direito ao seu próprio sonho...

domingo, 17 de janeiro de 2021

Os vizinhos que vieram dos céus

Foi o meu pai, o seu Manoel, quem chamou a atenção pela primeira vez. Por esta época, os bem-te-vis vinham pousar no arvoredo e dali faziam rasantes sobre as águas da piscina. Um exercício em que apareciam quase sempre aos pares (não vou ser indiscreto e dizer que eram casais...), mas já houve casos de três e, numa ocasião, um solitário fazia as mesmas peripécias, mas não parecia ter o mesmo ânimo do quando estavam em grupo. Passavam um bom tempo entre a laranjeira, o pé de caqui e a escada da piscina. Enquanto um fazia o sobrevoo, os outros aguardavam.

Numa passada, seu Otílio fez o corte da grama e podas orientadas. Explico porque do “orientadas”: com carta branca, o bom velhinho poda o que deve e o que não deve. Sobram reclamações do tipo: mas esta “gramínea era uma flor”, “isto aqui era um chazinho”… Por precaução, percorro todo o pátio dando instruções específicas (até parece que sei alguma coisa de jardinagem!). Chamou a atenção para a laranjeira que, embora eu estivesse disposto a uma poda radical (desaparecimento), mostrou-me brotos de folhinhas e, pasmem, frutinhas que não chegavam ao tamanho de um dedo.

No entanto, havia mais surpresas: apontou para o lado da laranjeira, onde existe, hoje, a árvore mais frondosa do meu pátio, uma pata de vaca. Confesso que tentei de todos os modos acabar com ela. Mas, em priscas eras, muita gente usava as folhas para fazer chá e controlar o açúcar no sangue. Junto com o pé de louro, foram aquelas que eu podava indiscriminadamente, mas resistiram e o louro abastece a vizinhança que gosta de um tempero no feijão (Deus me livre!), ou numa carne assada no forno. Ainda poderia citar o pé de romã, uma das paixões da Daniele e da Noemi…

Mas vamos ao que interessa: no alto da pata de vaca instalaram-se (agora sim eu creio que é um casal) uma dupla de bem-te-vis que fez um dos ninhos mais feios que eu já vi… Nesta época, ao que parece, já estão com filhote, embora não se consiga escutar (nem entender) as suas conversas… O pai sai em jornadas maiores e volta com alimento. Mas a mãe dá suas “escapadas” nas proximidades, inclusive na piscina, mas sem os malabarismos aquáticos. Dali controla a entrada do ninho e sempre está na parte interna quando o seu parceiro volta.

Vizinhos que vieram dos céus. Construímos muros, paredes, grades, cercas e não nos damos conta de que as surpresas podem vir do alto. De todas as vezes que pensei em transformar minha casa em condomínio, já que ficou muito grande para apenas uma pessoa, nunca achei que contemplaria o que surpreenderia o seu Manoel e a dona França, que chegaram a ver uma casa de João de Barro instalada quando ainda tínhamos uma nogueira. Embora a porta estivesse no rumo do sol, foi abandonada porque é árvore que coloca as folhas mais tarde que as outras e encobriu a construção.

Em muitas tardes, o calor diminui e se pode sair para a rua, contemplar as atividades dos novos vizinhos. Até pouco tempo atrás, hora ideal para observar a formação de pássaros que voltam para o que resta do arvoredo junto a banhados e sangas... e passam a noite. Ao encerrar o dia, o casal ainda precisa cumprir tarefas, que tiram meus olhos do chão e atraem para contemplar seus graciosos voos: um alerta de que, humanos, não se pode perder a dimensão do divino… os pés estão na terra, mas um pedacinho do espírito clama pelos rumos dos céus, os insondáveis caminhos do infinito...

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Eu vou tomar a vacina...

A semana promete aumentar a discussão em torno da data em que começa a aplicação da vacina contra o coronavírus, no Brasil. Atrasados por disputas políticas, fomos devidamente colocados no nosso lugar: países que aceitaram as recomendações técnicas anteciparam as negociações e, hoje, estão chegando à segunda dose, o reforço necessário para a imunização. Por aqui, a antecipação da corrida presidencial do próximo ano levou a que já se tenha estoque suficiente para iniciar, mas travados na burocracia e em disputas que nos levaram a ultrapassar 200 mil mortos…

O país terá que lidar com uma lista de prioridade (ainda não haverá vacina para todos), começando por quem atua diretamente com a pandemia, seguidos de idosos que residem em casas geriátricas. Arrisco dizer que, na sequência, deveria estar o pessoal do comércio, exposto àqueles que apenas querem “dar uma voltinha e arejar a cabeça”... devidamente contaminados; assim como agentes da segurança pública, presentes em lugares que os colocam em situação de risco; e educadores, que voltam às atividades presenciais, em ambientes que prometem todos os cuidados, no entanto…

Quando se pensa que as coisas estão encaminhadas, voltam discussões que deveriam ter perdido o sentido… Pontuo que se negar a receber a vacina é diferente de negar a vacina: ninguém é obrigado a se vacinar. Porém, deve estar preparado para ser penalizado pois, enquanto cidadão, a responsabilidade social envolve um grupo e o que nele acontece. Negacionistas repetem argumentos utilizados quando da vacinação da gripe: querem matar os velhos para não pagar aposentadorias! Muita gente caiu nesta onda e sofreu pela irresponsabilidade dos pregadores de fake news.

Emblemática a postagem do casal que mantinha os pais em isolamento e achou que era tempo de afrouxar um pouquinho… em poucos dias, os dois estavam contaminados e mortos. Dias atrás, num programa de rádio, o comunicador ouviu pessoa que achava que algumas coisas já poderiam ser feitas e se exagera no uso de máscara, álcool gel e distanciamento. Ficou assustada quando pessoa da casa se contaminou e teve que se isolar. O radialista disse: “fulana, seguidamente conto casos de pessoas que viveram situação idêntica à tua”. Resposta: “ah, não prestei atenção…”

Uma população mal informada, desatenta e seguidora de lideres populistas interessados em dividendos eleitorais. A pouca memória da nossa gente faz com que o que for dito e feito hoje não seja lembrado no final do próximo ano… Aqueles que enchem o peito apregoando que o sul do Brasil é um resquício de povo consciente e politizado tem que corar de vergonha quando se vê que demos alguns dos piores exemplos no que se refere às necessidades básicas do isolamento social. Falhou o processo de educação que poderia ter feito o diferencial e, infelizmente, não o fez...

Eu vou tomar a vacina. Não pretendo correr a um posto de atendimento, mas aguardar a imunização da primeira leva. Saber que, depois da primeira, há uma segunda dose e o período que mature o efeito em meu corpo. Autoridades creem que diminuam os casos graves e índices de internação. É possível que, em maio, seja o início do fim deste pesadelo, fazer memória dos mortos e agradecer pela vida… de que o longe ou perto não impede que se compartilhe sonhos e esperanças, que deram sentido à espera e razão de enfrentar tempos difíceis e necessários que ainda vem pela frente…

domingo, 10 de janeiro de 2021

A neblina, a cerração e o silêncio…


O Cláudio Carrasco, da Padaria Estrela, postou foto no sábado (9), feita pela manhã bem cedo, momento em que se formava o nevoeiro característico de Verão, quando vale o dito popular de que “cerração que baixa é sol que racha!”. Brincou que parecia “clima londrino em satolep” (para quem não está acostumado com pelotentismos: Pelotas, ao contrário). O suficiente para recordar manhãs/madrugadas em que saia para o trabalho ou estudar e escolhia a região onde logo vai ficar o Quartier, com o astro rei encoberto e se contavam os palmos que se enxergavam diante dos olhos…

No Seminário Diocesano, avenida dom Joaquim com Fernando Osório, o horário que precedia as aulas era tempo para observar o movimento difuso em que carros pareciam riscos na penumbra e pessoas eram borrões que iam tomando forma na medida em que se aproximavam. As casas ao redor ficavam esmaecidas, assim como os antigos eucaliptos mantinham-se inertes, abrigando os ninhos das caturritas, que também respeitavam o ritual de um momento em que o dia ainda não despertara e haveria muito tempo para toda a sua algazarra que somente finalizaria ao anoitecer.

Mas, também, de outros efeitos com a luz, em tempos bem mais antigos, quando ainda se dependia de lampiões, na ausência da energia elétrica, para as atividades domésticas e o convívio social. No início da década de 60, as lanternas praticamente não existiam. Em alguns casos, o deslocamento nas ruas se dava pelo acompanhamento de um lampião. Lembro de três: o comum e o Aladim, em dois modelos – a querosene e a gás. Na nossa casa, existiam dois, um fixo no bar e armazém do seu Manoel, abastecido com gás, e o outro na cozinha, um modelo mais comum à base de querosene.

Num dia da semana, o pai encerrava o trabalho mais cedo e ia jogar cartas na casa do seu Borges. Saíamos em procissão pela rua escura e, na ida, ainda com algum movimento. O lampiãozinho valente era um “farol” que passava por diversos concorrentes de todos os portes e tipos. Mas havia um alívio quando dobrávamos a rua e enxergávamos a família inteira aguardando. O difícil era a volta: em muitas noites, baixava uma cerração que não permitia ver o coqueiro (que na verdade era um butiazeiro), no meio da rua, marcando a metade do caminho…

Nem é preciso dizer que o coqueiro era assombrado e, para as crianças, passar por ali, mesmo com os pais, tarde da noite, era ato de valentia que se contaria aumentando a história no dia seguinte, na escola. As sombras se tornavam mais densas pela escuridão e pelos medos. Na rua vazia, outro lampião vindo em sentido contrário poderia ser um fantasma, uma alma penada, o Saci, a Bruxa sem cabeça… ou um vizinho perdido na noite! Todas as nossas diferenças ficavam para trás e a gente só se desgrudava quando alcançava a porteira ao lado da casa e dava um suspiro de alívio.

A neblina antes do aparecimento do sol, lembranças da cerração na noite, propiciam momentos de intimidade e de silêncio. Tempo para a oração; meditar a própria pequenez; refletir realidades sociais que nos envolvem e, muitas vezes, condicionam… Somos a mistura de silêncios, pequenez, singularidade de virtudes e defeitos. Prontos para abrir o coração e mergulhar nos significados que a natureza oferece. Não se pode desistir de caminhar pois, enquanto apenas se escuta os próprios passos, é exatamente quando se alcança o sentido de ser e de fazer alguém feliz…

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Medo e ansiedade: o coronavírus acelera o futuro

Uma máxima utilizada por analistas é de que a crise é oportunidade de exercer a criatividade. Ao menos, em tese, uma chance para vislumbrar alternativas, focadas no conhecimento científico, realidades financeiras e criatividade de seus gestores. No entanto, o que se percebe é que também pode ser a chance das pessoas se acomodarem e repetirem os velhos e surrados bordões de que o brasileiro é um povo difícil, mal educado, sem cultura, incapaz de ser solidário, individualista, capaz de correr atrás da satisfação de suas “necessidades” em detrimento do social.

Menos… bem menos… Até concordo que se alguém disser o que está acima pode estar correto, mas não generalizar. Tem-se uma parcela da população que faz e é exatamente assim, mas também uma grande maioria silenciosa capaz de sacrifícios, determinação, empatia, já detectada, especialmente por governantes, que, em muitos casos, eximiram-se do básico dos básicos no atendimento social e financeiro, transformando o ano que passou num tempo em que, enquanto parcela da sociedade se organizava para responder ao grito agoniado dos mais necessitados, fazia um obsequioso silêncio.

O final do ano – com festas do Natal e Ano Novo – deu nova injeção de ânimo nas campanhas que arrecadam doações para cestas básicas, roupas e material de construção. No entanto, a capacidade da população de abrir mão de parte da renda para a solidariedade deixa de ser o que programou para gastos extras e começa a entrar no vermelho... Reconhecendo que, junto com o auxílio emergencial do governo, garantiu a subsistência e, agora, é a vez do governo cortar na sua carne, no que se refere a mordomias e ganhos que, repetindo, podem até serem legais, mas são imorais.

É necessário um passo adiante: mesmo precariamente, ainda havendo a necessidade de pressão sobre os governos para fazer a sua parte, é preciso alimentar o espírito! Este processo precisa da participação real de todos os segmentos que atuam na educação: professores, comunicadores, líderes comunitários, religiosos, enfim, toda e qualquer pessoa que é, na prática, um formador de opinião. As diferenças ficam gritantes quando o ensino a distância precisou de instrumentos que estavam à disposição dos mais abastados, ficando para os mais pobres as migalhas e as sobras...

Minha crítica não é para as pessoas de boa vontade que fizeram doações ou até reciclaram aparelhos. Para qualquer um, é difícil de aceitar que, em imagens de televisão, se vissem crianças em escritórios ou em salas com seus notebooks, assim como aqueles que num espaço comum de convívio de toda uma família sentavam-se num canto de mesa tentando cumprir tarefas utilizando a tela de um celular… O princípio é o mesmo: fizeram aquilo que os governos deveriam ter feito e se omitiram. Na falta dos administradores, o espírito comunitário falou mais alto e fez a diferença.

A discussão dos quesitos básicos não pode ofuscar a necessidade de se estabelecer horizontes possíveis. Como população, seremos mais pobres, sofridos, com marcas de acertos e erros (falo com relação à pandemia), também pela ação enquanto sociedade organizada, onde a omissão política já fez bastante estrago. O coronavírus acelera o futuro. Pelos próximos anos, sentiremos seus efeitos. O medo e a ansiedade precisam dar lugar à certeza de que estaremos juntos: a diferença entre soçobrar num projeto individual ou a perspectiva de uma sociedade, de fato, mais justa e solidária!

Manoel Jesus – Educador – manoeljss21@gmail.com

domingo, 3 de janeiro de 2021

Vilas e vileiros, olarias e saudades…

Mesmo um texto que tentou entender a distribuição urbana e suas consequências para quem, especialmente, mora em certas regiões por longo tempo, não fica isento de despertar outras – e porque não dizer – boas lembranças. Mexe com o baú afetivo das pessoas, num encadeamento de sensações que mistura o que é lembrado com as marcas de quem esteve conosco, às vezes de forma tão tênue que a saudade é capaz de trazer a sensação de que, em momentos da vida, não alcançamos a plenitude das recordações ou o lembrado não é absolutamente fiel ao que se viveu…

Falar das olarias que existiam na vila Silveira renderam mensagens pelas redes sociais e também o encontro com antigos moradores nas ruas e o desejo de recontar (já que não se pode reviver) as situações passadas em família, na maior parte das vezes, como parte das nossas infâncias. Os moradores eram pobres, como se dizia então: alguns remediados, mas não se tinha a sensação de diferença de classe, porque ainda não estava presente um espírito consumista. A preocupação dos pais era pela sobrevivência e, de alguma forma, o objetivo era dar um rumo na vida dos filhos...

Um dos núcleos de apartamentos mais recentes da vila Silveira se chama Granada. Ao lado, corria uma vala que dava vazão às águas acumuladas pela chuva. Beirando este canal, se ia em direção a uma das olarias. No início da década de 60, já estava abandonada, sem nenhuma atividade comercial, mas restou a estrutura, ainda com moldes para a produção de telhas e tijolos. No entanto, o caminho que levava até lá tinha ao menos quatro moradias que lembro: do seu Jorge, seu Bernardo, seu Surdo (juro que até hoje não sei o seu nome real) e a dona Maria (a mãe do Zezeca).

Os moradores antigos não existem mais, mas muitos filhos e netos ainda se encontram na vila. Quem olha para o antigo lugar das moradias não vê nem sinal da vala, substituída por tubulações e as trilhas foram sendo fechadas pela construção de uma casa e, o resto, a natureza recuperou o seu destino original… Era a ladeira de uma barranca, tendo, à direita, um paredão criado pela retirada do material necessário para a produção. Ao invés de um “laguinho”, uma ampla área onde, mais tarde, uma empresa passou a depositar restos de pêssego, assim como, de casca de arroz.

A encosta servia para os menores fazerem um “tobogã”, utilizando as valas criadas pelas chuvas como lugar para se acomodar e descer, aos trancos e barrancos... e os maiores aventuravam-se pulando dos lugares mais altos, já se exibindo para as meninas que andavam na volta e recebendo a admiração dos piás. Sobravam roupas rasgadas, arranhões e contusões que precisavam ser curadas até o dia seguinte, assim como as mães colocarem algum remendo para que se voltasse com os mesmos trajes, para se retomar as brincadeiras e as exibições…

Alguém disse que o vileiro pode sair da vila, mas que a vila não sai do vileiro… Verdade, é parte de nossa história, sem necessidade de saber se foi bom ou ruim, certo ou errado. Pessoas alimentando sonhos e esperanças… tristezas e alegrias… desejos e decepções. Gente humilde buscando um rumo e perspectiva, o norte para a fé, um caminho para a esperança… direito de remexer na caixa de afetos, querendo, apenas, ser feliz… Risos e vozes que ecoam por causos e histórias e, quando o presente é difícil, onde se aconchegar para não se esquecer, nem sepultar o próprio passado…