terça-feira, 11 de março de 2025

“Só queria ganhar um abraço…”

O menino cadeirante que está à margem do campo de basquete recebe uma bola no colo. Quem a recolhe percebe que a outra criança está marginalizada de atividades esportivas. Volta ao jogo e conta para seus colegas. Em seguida, a turma se dispersa. Na tarde seguinte, o cadeirante, ao sair de casa, encontra a bola na varanda. Coloca-a no colo e vai à cancha. Ali já estão os demais, agora, cada um “equipado” com um carrinho ou uma cadeira com rodinhas, de onde, sentados, compartilham a brincadeira com o mais novo jogador.

Seguidamente, aparecem curtas na internet em que pessoa porta cartaz, em plena rua, se oferecendo para receber e dar um abraço. Algumas vezes escrito: “Só queria ganhar um abraço…” A grande maioria passa batida e desconfiada. Mas sempre tem aqueles (e aquelas) que sorriem e aceitam o convite. Infelizmente, não são feitos depoimentos de quem deu ou de quem os recebeu. Superado o receio de fazer fiasco, quebradas as barreiras do preconceito, o abraço se torna uma válvula de escape para muitas “neuras”.

A mulher estava secando a louça na pia, quando se sentiu mal e se apoiou na bancada. O cachorro percebeu que a dona ia ter uma crise epiléptica. Em silêncio, escorou suas costas até que estivesse sentada no chão. Abriu a geladeira e alcançou água. Fechou a geladeira e procurou deixá-la da melhor forma possível para que repousasse. Só então alcançou o interfone e tocou chamando a portaria. Latiu e o porteiro entendeu que havia algum problema, pois tinham conhecimento do histórico de saúde da proprietária do apartamento.

Uma das primeiras frases que marcou a figura de Francisco, quando assumiu a cátedra de Pedro, foi: “Sempre que possível, dê um sorriso a um estranho na rua. Pode ser o único gesto de amor que ele verá no dia”. E também: “É preciso ter bom humor no dia a dia para não tornar-se ‘avinagrado’”. “Só queria ganhar um abraço” pode ser a demonstração de carência ou de ternura. E o cão cuidador demonstrou, por instinto e carinho, o que precisamos: gestos de solidariedade e de empatia, a “fofura” de que estamos carentes. 

A generosidade tem o poder de transformar o dia de alguém. Francisco, com palavras, gestualidade, expressão facial, atitudes, dá exemplo de que momentos de desprendimento tornam mais leve a vida, carregada de rotinas e mesmices. O cadeirante que entrou na quadra para jogar basquete, o desconhecido oferecendo um abraço, o cão convivendo e cuidando da dona foram imersos num estado de fofura (sensibilidade). Hoje, raros, mas necessários para que não se desaprenda que o melhor que ainda temos é a nossa própria humanidade…


domingo, 9 de março de 2025

Simplesmente assim: Ânsias

A ânsia é o desassossego do coração.

Quando os sentidos perdem o controle 

Das nossas possibilidades.

Nos escaldantes dias de verão,

Esperar pela brisa da noite em que

Um cobertor de estrelas aconchega sonhos.

A busca pelo reencontro desejado,

Acalentado em devaneios,

Sentido na penumbra da saudade.

 

Resistir à tortura da indiferença, 

Buscando razão para 

A noite que se fecha em breu.

Ansiar é manter vivas as expectativas,

Sabendo que os lábios ressequidos

E a alma que taquicardia

Esperam pelo direito de serenar.

Na possibilidade de saciar a fome

Dos grãos de trigo que apenas a terra germina,

Garantindo o direito de brotar, 

Desabrochar e, um dia, fenecer em paz…


sexta-feira, 7 de março de 2025

Mesmo que seja um amor atrapalhado

Não peça desculpa novamente.

Precisamos de um tempo para

Sondar nossos mundos interiores.

Sou surpreendido por nuances

Que revelam aspirações e pesadelos.

A ânsia por desvelar um ao outro.

No meio do caminho há ruídos que assustam,

Sem que sejam suficiente para nos afastar.

 

Meus fantasmas não têm pressa.

Ainda acreditas que uma 

Outra metade está esperando por ti?

Pois é, aguardei ao lado do caminho,

E agora sei como é ficar sem a pessoa que se ama.

Quando paro diante da porta dos meus medos, 

Percebo que o tempo passando 

Me deu a aparência de maturidade.


Em lugares onde a consciência não alcança

Aprisionou-se um menino 

Que esticou o olhar para a juventude,

Sem ter coragem de viver com um adulto.

A ausência das tuas palavras foi a falta

Do abraço que sussurrava por meu corpo.

Eram murmúrios não entendidos, 

Sentidos na agonia de te compreender…


Errar e ser perdoado é inerente ao amor.

O tempo ensina que as palavras não faladas

Também portam a compreensão e carícias 

De quem se atrapalha ao multiplicar o que é dito.

Um silêncio cúmplice encerra a compreensão.

Apazigua a alma, serena o corpo, 

Eleva o espírito ao patamar da beleza interior, 

Tornando um olhar travesso pleno de doçura. 


Mesmo que seja um amor atrapalhado. 

Pedir perdão, quantas vezes for necessário,

Por mal-entendidos, teimosias, 

O afastamento que endurece o olhar.

O direito à cumplicidade,

Quando as desculpas se tornam desnecessárias,

A intimidade dispensa formalidades,

Bastando apenas aconchegar o ser que se ama…

O calor do Sol que somente tu consegues me dar.

A certeza de que amar é o que dá sentido à vida!


terça-feira, 4 de março de 2025

Conclave: os bastidores da escolha de um papa

Coincidência analisar, em curto espaço de tempo, dois livros de vertentes literárias distintas. É inesgotável falar da obra de Saint-Exupéry, especialmente, a respeito do Pequeno Príncipe, com sua ternura e lições de humanidade. Mas há uma outra tendência no universo dos livros que fascina: a ficção, de onde emergiram, nos últimos anos, autores como Morris West (As Sandálias do Pescador), Dan Brown (O Código da Vinci, Anjos e Demônios…), Ken Follet (Os Pilares da Terra) e, agora, Robert Harris, percorrendo os bastidores da Igreja Católica, naquilo que tem de santa e pecadora (para os escritores, bem mais de pecadora).

Robert Harris é autor do best seller Conclave, adaptado para o cinema e, neste momento, em evidência pelas diversas indicações ao Oscar. Aborda uma temática que causa arrepios nos leitores que gostam quando se trata de teorias da conspiração, isto é, aquilo que expõe, desnuda negociações políticas, como a obra, falando a respeito da sucessão do papa (que se parece com Francisco…), numa época de abertura para as realidades sociais e sair do mundinho italiano para se tornar, de fato, universal. Isto na ficção…

Encontra terreno fértil neste tempo em que o papa Francisco, com 88 anos e a saúde debilitada, esforça-se para continuar sua obra, com uma garra que poucos religiosos com menos idade têm. Conclave é um livro que prende, descrevendo a morte do papa e a eleição de um novo, na Capela Sistina. Com a demonstração de ambição e mistérios que envolvem os principais “candidatos”. Quem narra é o cardeal Lomeli, decano do Colégio Cardinalício, que tem a obrigação de assegurar a lisura da sucessão, em meio aos seus próprios conflitos de fé. Na Missa que antecede o enclausuramento dos 128 homens para votarem, Lomeli desabafa:

“Oremos para que o Senhor nos conceda um papa que tenha dúvidas e que, pelas suas dúvidas, continue a fazer da fé católica uma coisa viva capaz de inspirar o mundo inteiro. Oremos para que ele nos conceda um papa capaz de pecar, e de pedir perdão, e de seguir em frente. É isso que pedimos ao Senhor, através da intercessão de Maria, a mais santa, Rainha dos Apóstolos, e de todos os mártires e santos, que ao longo do curso da História tornaram esta Igreja de Roma gloriosa através dos tempos…”

Gosto da temática, mas não pretendo dar spoiler, contando o final. Levei um baque nas últimas páginas. Embora se apresentem as vaidades e interesses escusos, para os religiosos católicos, há uma clara sugestão da ação do Espírito Santo. Contudo, também a discussão de questões ligadas à sexualidade e afetividade. A verdade é que o papa Francisco não tem fugido desta temática, mas, com certeza, serão necessários ainda alguns “franciscos” para que este rosto divino da sua Igreja se ajuste ao jeito bem menos santo de viver do ser humano…

domingo, 2 de março de 2025

Simplesmente assim: Como água com mel

Meus pés deixam marcas por sobre o sereno

Que ainda teima em permanecer sobre a grama,

Mesmo depois do nascer do sol.

Anda ao meu lado o sentimento de que

O tempo dilacera a espera,

Mas não é capaz de apagar as memórias

Guardadas na ternura de quem luta por não desistir...

 

Aprender a amar desnuda de tudo

Pela ternura do olhar de um filho,

O afeto pelo reencontro de um amigo,

Aconchegar a pessoa que dá razão ao meu sorriso.

As múltiplas formas de acolher e ser acolhido.

O desejo de que, em qualquer etapa da vida,

Transpareça o sentimento da partilha

Incandescendo o olhar.

 

Como água com mel.

O sentimento do que parece inutilmente simples:

Saciar a sede pelo privilégio de viver em paz…


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Com as agulhas dos meus sentimentos

Quando as lágrimas e os soluços

Transtornarem o meu rosto,

Tenho certeza de que logo, logo,

Vai florescer um sorriso.

Ainda sinto calafrios pelo

Inverno da tua ausência.

Nestes momentos,

Vou tricotando o tempo com as

Agulhas dos meus sentimentos e

as linhas das minhas lembranças.

 

Envelhecer é o privilégio de

Ouvir, degustando, as músicas que fizeram

A trilha sonora de toda uma vida.

Assim como reencontrar

Imagens capturadas

pela fotografia, desbotada, guardada

Nas gavetas da memória.

É quando acaricio os livros que dormitam

Na estante do meu quarto ou, pacientemente,

Aguardam à beira da minha cama.

 

A vida é feita de esperas.

Quando o tempo se acomoda num olhar,

Que já não tem pressa,

Investindo cada instante em redescobrir

Aquilo que embebeceu a alma.

Assim como as dores, tristezas e agonias

Que se apresentaram durante as tempestades

Para que aprendesse a valorizar a bonança.

E o raio do arco-íris que esperançou

Em meio às nuvens carregadas de incertezas.

 

Conquista-se o direito de sentar na varanda

Onde uma réstia de sol teima

Em transtornar as cores no horizonte.

As mãos conformam-se em repousar

No colo acalentando sentimentos e

Experiências de tudo o que foi tramado.

Harmoniosamente, ponto por ponto,

Laço por laço, fileira por fileira, 

No desejo de que, cobrindo um corpo,

Também aconchegue um coração…


terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Pequeno Príncipe: a nostalgia de todas as ausências

Sábado postei comentário na página “Que livro estás a ler?”: “Recentemente, um amigo (o padre Michel Canez) provocou-me a recordar a obra do "Pequeno Príncipe", de Saint-Exupéry. Não sei quantas vezes o reli desde que o professor Jandir Zanotelli me apresentou, nas aulas de Filosofia, no 2o grau. Para entendê-lo, não basta classificar como obra destinada a crianças. É um livro para "crianças de todas as idades..." Despertou para revisitar, também, do mesmo autor, "Terra dos homens" e "Cidadela". Por serem anteriores, ajudam a entender a parábola do menino que ensinou a amar e despertou a nostalgia de todas as ausências…”


O suficiente para descobrir uma verdade repetida: a gente nunca revê da mesma forma a saga do menino perdido no deserto e o aviador que tenta consertar a pane no seu avião. Minhas postagens, como a que fiz quando uma escritora insinuou a tese do suicídio, no seu desaparecimento, fez com que buscasse entendê-lo no contexto em que a obra foi lançada: durante a 2⁠ª Guerra Mundial - era o ano de 1943 - um ano antes da sua morte e dois antes do fim desta carnificina internacional. Com razoável condição financeira, pode buscar exílio por quase dois anos nos Estados Unidos, de onde lança ao mundo este que é um suspiro de humanidade.

As condições da Europa eram de miséria para a população civil. Ainda hoje, lamentam-se as mortes em combate ou das populações perseguidas (como judeus, ciganos e homossexuais…), mas pouco se fala dos períodos de fome passados em muitos países, também resultando em perdas de vidas. Pois é aí que se situa a simples frase da dedicatória, que pode ser a imersão numa análise sociológica:

“Peço às crianças que me perdoem por dedicar este livro a um adulto. Eu tenho uma desculpa séria: este adulto é o melhor amigo que eu tenho no mundo. Tenho outra desculpa: este adulto pode entender tudo, até livros para crianças. Tenho uma terceira desculpa: ele mora na França, onde tem fome e frio. Ele precisa ser consolado. Se todas essas desculpas não são suficientes, então eu quero dedicar este livro à criança que este adulto já foi. Todos os adultos eram crianças, primeiro (mas poucos deles se lembram dela).” O amigo era escritor e ficou no país ocupado, com os que restaram, em absoluta carência ou desejosos de migrar para outras terras.

O sublime do texto é pedir às crianças para corrigir a dedicatória: “Para Léon Werth, quando ele era ainda era criança…” Como muitas obras que se propõem a ser bálsamo nas feridas da humanidade, Exupéry apresenta a realidade em que trabalhava no que sempre amou - a aviação. Com a crueza de uma guerra que o obrigou a deixar o serviço à população civil para fazer prospecção de tropas alemãs. As águas do Mediterrâneo se abrindo quando caiu foi a porta em que o Pequeno Príncipe o esperava. O motivo do encontro? Elementar: Pedindo orientação aos astros ou migrando com os pássaros, a busca do voo perfeito sempre os conduziu no caminho para as estrelas…