domingo, 3 de outubro de 2021

Um berçário de humanidades

O filme é um clichê romântico. Mulher abandonada resolve continuar com a ideia de uma segunda lua de mel (agora sem o ex) e parte para uma viagem pelo interior da África. Claro que, pelo caminho, aparece um mocinho, com alguma dor a ser curada, tendo purgado parte da sua tristeza e não acreditando mais no amor. “Resgate do coração” envolve pela história simples, humana, com belas imagens e animais, no caso, elefantes, na mira do seu pior predador – o homem – e as maiores vítimas são os mais novos, abandonados e precisando de um “berçário” para a subsistência.

A gente não pode viver somente de assistir estes filmes, mas, de vez enquanto… Fiquei mais aliviado, no final, sem deixar de pensar que se vive um tempo em que se precisa de um “berçário para humanidades...” Lugar onde se viva feliz e ajude outros a viverem bem. Uma utopia, desejo que dificilmente se realiza e, talvez mesmo por este motivo, dê o direito de sonhar. Não somos capazes de viver permanentemente da normalidade ou da suposta racionalidade de que se precisa agir sempre de forma correta, enquadrados aos papéis que a sociedade espera.

Discuti com uma amiga sobre a quantidade de vezes que bati e derrubei alguma coisa. Explicou que isto era consequência do avanço da idade. Lembrei do seu Borges, quando, numa ocasião o deixei com meus pais numa antiga vizinha e não conseguia abrir a porta do carro. Sugeri que tentasse com a outra mão. Deu certo. Brinquei: “coisas da idade!” Olhou debochado: “a outra mão tem a mesma idade!” Não sei se somos propensos para acidentes doméstico, sei que não é preciso tornar a vida um inferno com cuidados que afastam os perigos, mas também a graça e a ventura de se viver.

Uma idosa manda, todos os dias, vídeos de músicas orquestradas que fazem o seu gosto, com belas paisagens e lugares paradisíacos. Tenho que registrar, com muito bom gosto. Pensei: lugares que deve frequentar em sua imaginação. Quantas vezes pensou em percorrê-los, aproveitando sozinha ou na companhia de seus amados. No entanto, hoje, apenas estão presentes em seus desejos, que, infelizmente, nunca virarão realidade. Somos o nosso dia a dia e os nossos anseios sublimados. A realidade fica muito dura quando nossos corações não abrem uma janela para a fantasia e o Infinito!

Falo para grupos da importância de valorizar o “ludus” (brinquedo) e o “ágape” (partilha da comida – refeição). Especialmente para quem já andou por mais tempo nas estradas da vida e precisa que uma aragem de otimismo e felicidade apareça em seus olhos. Lembro da mãe. Deixava tentar todas as vezes que quisesse, mesmo que as anteriores tivessem dado errado. Não importava. Era seu jeito de mostrar que naquele corpo, se acabando com o tempo, para além das racionalidades, habitava um espírito incomodado com a forma como se transformam idosos e doentes em mortos-vivos.

Troco a frase: precisamos de um “berçário de humanidades”. Um lugar onde se reaprenda a viver e se facilite para quem pensa em desistir. A lágrima vertida diante da cena de um filme… a real felicidade pela imagem de um neto que se vê de longe… o dormitar à espera das promessas de vida que não se cumprem… as dores que aparecem nas juntas… E o olhar - o último espaço por onde transborda a fé. Quando o corpo dá sinais de que não tem mais forças e torna-se a luz de uma vela, trêmula, que passa por sobre as palavras, na esperança de receber um derradeiro gesto de carinho!

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